Sabotagem e dissimulação

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Roberto Amaral e Manuel Domingos Neto*

Bolsonaro mantém seu ardente apego ao projeto de destruição de traços solidários da convivência humana que alimentou ao longo da vida, e que persiste, sendo agora abraçado por uma razoável porção de brasileiros.

Na noite de 31 de março, o presidente da República fingiu mudar de posição, passando a endossar as recomendações da Organização Mundial de Saúde para que as pessoas fiquem em casa. Simulou abandonar a insensatez e a vilania que rapidamente o projetaram como figura execrável na cena internacional. Simulou abraçar a ciência, abandonar o desvario terraplanista e demonstrar empatia. Admitiu um agrado ao general Pujol, comandante do Exército, repetindo frase de sua recente manifestação. Tentou também, com extrema dificuldade, simular que governa.

Ingênuos e precipitados viram sua fala em rede nacional como um “recuo” diante da crescente reação de repúdio da sociedade; outros perceberam um “enquadramento” pelos militares. Houve ainda quem entendesse que o Presidente tentava driblar o atropelamento protagonizado por congressistas, governadores, prefeitos, procuradores, juízes e generais, todos procurando agir para atenuar o sofrimento da população.

Contraditado pela grande mídia e censurado pelos donos de redes sociais, Bolsonaro, apesar do jogo de cena, do arranjo das palavras e frases, na verdade não recuou: persistiu na crença de que a “gripezinha” não pode “parar o Brasil” e que todos devem voltar ao trabalho.

É a conclusão possível se considerarmos dois aspectos básicos: a manipulação da fala do diretor da OMS e a criminosa postergação da entrega dos recursos necessários para manter as pessoas em casa. A orientação da OMS, pela boca de Tedros Adhanom, seu diretor-geral, é a de que os Estados devem garantir aos mais vulneráveis meios de sobrevivência em casa. Do contrário, o isolamento não seria viável. Impossível milhões de pessoas aceitarem morrer de fome sem ir à rua. Bolsonaro omitiu o mais relevante da fala do dirigente da OMS.

Na manhã do primeiro dia de abril, acordou abrindo baterias contra os governadores e isentando-se de responsabilidade quanto às atribulações vividas pelo povo. Bolsonaro escamoteou as iniciativas parlamentares e as decisões judiciais de liberar os recursos necessários para enfrentar o vírus. Os parlamentares denunciaram imediatamente a demora do governo para sancionar pertinente decreto aprovado pela Câmara dos Deputados.

Na prática, esse atraso sabota e anula a orientação de isolamento. Milhões de trabalhadores formais e informais não resistirão reclusos. As pequenas empresas de prestação de serviços não resistirão a uma paralisação de mais alguns dias. Os recursos precisam ser liberados imediatamente, assim como cestas básicas para os milhões de brasileiros aglomerados em condições insalubres nas periferias das cidades.

O problema de Bolsonaro não é apenas sua índole terrorista, bem conhecida de seus instrutores nas escolas militares, ou o seu notório despreparo intelectual. Tampouco sua notável incapacidade de governar ou sua inapetência para a negociação e o entendimento político. O problema do Presidente não é ainda o seu reacionarismo extremado, sua cultura do ódio, sua aversão ao diferente.

O problema de Bolsonaro é seu ardente apego ao projeto de destruição de traços solidários da convivência humana que alimentou ao longo da vida, e que persiste abraçado por uma razoável porção de brasileiros. O homem é um sociopata que, para estarrecimento de muitos que julgavam conhecer bem a sociedade brasileira, encontra seguidores. Um significativo contingente persiste, entusiasmado, apoiando Bolsonaro.

Uma pesquisa recente encomendada pelo jornal Folha de São Paulo indica que 45% dos brasileiros são contra o impeachment do Presidente. Essa posição é endossada por 53% dos que ganham entre 5 a 10 mil reais. O apoio entre os evangélicos é disparado: 69% rejeitam a ideia. Enquanto 55% dos que se declararam católicos são favoráveis ao impeachment, somente 25% dos que se apresentam como evangélicos o aceitam.

Segundo a pesquisa, o apoio ao impeachment registrou um leve crescimento de 44.8% para 47.7% entre 18 e 25 de março, em que pese a inação diante das notícias aterradoras dos efeitos do Convid-19, o empenho da maioria dos governadores e prefeitos em esclarecer a sociedade sobre as ameaças que pairam sobre todos e o fato de 84% da população revelar medo de perder amigos e familiares por conta da doença.

As mulheres são mais firmes que os homens no apoio ao impeachment. O mesmo quanto aos nordestinos, relativamente aos sulistas e sudestinos. Neste caso, há um reflexo da ação conjunta dos governadores, além do fato de ser sempre o Nordeste que, desde as eleições, rejeita Bolsonaro com mais firmeza. Enquanto 55% dos nordestinos querem o impeachment, apenas 38% dos sulistas apoiam esta iniciativa.

A sociedade está estressada: 75% dos entrevistados estão em pânico. Os que têm medo de morrer são 39% e os tem medo de pegar a doença são 36%. Muitos ainda não sentem o emprego ameaçado. Só 9% dizem que já perderam o emprego. Coerentemente, a maior preocupação é com a vida das pessoas (72%) e só 21% priorizam a economia.

Apesar de sua magnitude, a pandemia ainda não estimulou percepções de cataclismo econômico. Para 43% dos brasileiros, a crise ainda não causou impacto sobre sua renda, mas 61% esperam pela recessão ainda este ano. Os dados relativos à renda são reveladores da percepção coletiva. Os apoiadores do impeachment são maioria apenas entre os que percebem até dois mil reais. Na medida em que a renda vai aumentando, aumenta os que querem a permanência de Bolsonaro.

Das revelações da pesquisa encomendada pela Folha, a mais significativa para a reflexão sobre o futuro imediato, que demanda arranjos políticos para enfrentar uma crise de proporções ainda não calculadas, diz respeito à imagem das lideranças. Sem referenciais políticos, fica difícil imaginar um entendimento emergencial legitimado pela sociedade. A pesquisa mostra um quadro muito favorável aos conservadores.

Para a pergunta “você tem uma imagem positiva ou negativa destes líderes políticos?”, a pesquisa apresentou uma lista com nove nomes. Moro é visto positivamente por 53% dos pesquisados, muito acima do segundo colocado, seu chefe Jair Bolsonaro, que empata com Paulo Guedes, ambos com 39% de imagem positiva. Lula amarga um quarto lugar, com 33% e Fernando Haddad com 27%.

Os outros nomes mencionados, com a exceção de Ciro Gomes (24%), formam o trio das “novas lideranças”, todas do campo da direita: Luciano Hulk (21%), Rodrigo Maia e João Dória, ambos com 20%.

Esse panorama, em seu conjunto, deve mudar rapidamente tendo em vista as previsões dos epidemiologistas. As notícias sobre o avanço da doença nos Estados Unidos certamente rebaterão sobre os brasileiros mais do que as calamidades da Itália e da Espanha. Ao que tudo indica, o comando do Exército prevê abalos de grandes dimensões. Disse aos seus comandados o general Pujol que a luta contra a pandemia seria a missão mais importante de sua geração.

Os analistas se dividem na interpretação de seu discurso. Alguns consideram que, mesmo contraditando o seu superior, no caso, o capitão afastado das fileiras e eleito presidente, Pujol emprestou-lhe apoio. O fato que ninguém de sã consciência pode negar é que Bolsonaro, o provocador incendiário, é um entrave para o estabelecimento de uma ação governamental minimamente razoável numa crise dessas dimensões.

Os hospitais ainda não entraram em colapso e os mortos estão sendo enterrados de forma ordenada. Como reagirá a sociedade com a rápida deterioração dos próximos dias? Se, como dizem alguns, o governo Bolsonaro morreu não foi, todavia enterrado. Quem governa, então?

Na tarde de primeiro de abril, em pronunciamento oficial no Planalto, Bolsonaro parecia não saber o que estava falando ou fazendo. O Presidente apareceu como um fantoche atarantado, cercado de generais. Paulo Guedes falou em seu nome, prometendo medidas provisórias, prevendo repasses para estados e municípios. Os recursos estão sendo arrancados a fórceps.

Logo veremos se a “tutela militar”, como alguns dizem, contém o Cavalão, apelido que os colegas de academia puseram na figura insana que hoje finge presidir a República.

*Roberto Amaral é ex-presidente do PSB e ex-ministro da Ciência e da Tecnologia.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Afrânio Catani Maria Rita Kehl Vanderlei Tenório Salem Nasser Marilia Pacheco Fiorillo Henri Acselrad Daniel Costa Remy José Fontana Eliziário Andrade Manchetômetro Lucas Fiaschetti Estevez José Geraldo Couto Luiz Eduardo Soares Lincoln Secco José Costa Júnior Ronald León Núñez Luiz Carlos Bresser-Pereira Dennis Oliveira Berenice Bento André Márcio Neves Soares Marcelo Guimarães Lima Carlos Tautz Rubens Pinto Lyra Matheus Silveira de Souza Daniel Brazil Vinício Carrilho Martinez Lorenzo Vitral Vladimir Safatle Fernando Nogueira da Costa Airton Paschoa Claudio Katz Liszt Vieira Annateresa Fabris José Machado Moita Neto João Carlos Loebens Paulo Nogueira Batista Jr Gerson Almeida Chico Alencar Everaldo de Oliveira Andrade Leda Maria Paulani Juarez Guimarães Julian Rodrigues Denilson Cordeiro Celso Favaretto Alexandre Aragão de Albuquerque Tarso Genro Priscila Figueiredo Jorge Branco Marjorie C. Marona Érico Andrade João Feres Júnior Francisco Fernandes Ladeira José Luís Fiori Slavoj Žižek Henry Burnett João Paulo Ayub Fonseca Renato Dagnino Atilio A. Boron Caio Bugiato João Sette Whitaker Ferreira Dênis de Moraes Gabriel Cohn Thomas Piketty Bruno Fabricio Alcebino da Silva Celso Frederico Andrés del Río Eleutério F. S. Prado Carla Teixeira Jean Pierre Chauvin Michael Roberts Benicio Viero Schmidt Alexandre de Lima Castro Tranjan José Raimundo Trindade Luiz Renato Martins Ricardo Fabbrini João Lanari Bo Sandra Bitencourt Armando Boito Bento Prado Jr. Anselm Jappe Milton Pinheiro Eugênio Trivinho Anderson Alves Esteves Marcos Aurélio da Silva Marcos Silva Eduardo Borges Rodrigo de Faria Leonardo Boff Daniel Afonso da Silva Ari Marcelo Solon Ricardo Musse Paulo Capel Narvai Antonio Martins Kátia Gerab Baggio Michel Goulart da Silva Otaviano Helene Marcelo Módolo Luís Fernando Vitagliano Chico Whitaker Elias Jabbour André Singer João Carlos Salles Mariarosaria Fabris Paulo Fernandes Silveira Luciano Nascimento Luiz Werneck Vianna Luiz Roberto Alves Valerio Arcary Antonino Infranca Leonardo Sacramento Osvaldo Coggiola Mário Maestri Walnice Nogueira Galvão Alysson Leandro Mascaro Paulo Martins Ronaldo Tadeu de Souza Ladislau Dowbor Fernão Pessoa Ramos Manuel Domingos Neto Antônio Sales Rios Neto Bernardo Ricupero Eugênio Bucci Ricardo Antunes Yuri Martins-Fontes João Adolfo Hansen Flávio R. Kothe Paulo Sérgio Pinheiro Ricardo Abramovay Michael Löwy Luiz Marques Fábio Konder Comparato Plínio de Arruda Sampaio Jr. Tales Ab'Sáber Leonardo Avritzer Gilberto Maringoni Gilberto Lopes Tadeu Valadares Heraldo Campos Rafael R. Ioris Luis Felipe Miguel Bruno Machado Jean Marc Von Der Weid Francisco de Oliveira Barros Júnior Sergio Amadeu da Silveira Flávio Aguiar Ronald Rocha José Micaelson Lacerda Morais Marcus Ianoni Marilena Chauí Luiz Bernardo Pericás Samuel Kilsztajn Francisco Pereira de Farias Andrew Korybko Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Dirceu Igor Felippe Santos Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Freitas Barbosa Eleonora Albano Boaventura de Sousa Santos

NOVAS PUBLICAÇÕES