A inevitável fraqueza da carne

Hans Hofmann, Combinable Wall I and II, 1961
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Wilson Gorj

Uma das ousadias mais provocativas da literatura contemporânea é pular a cerca que separa ficção de realidade, misturando técnicas narrativas que envolvem a autoficção, o relato documental e o depoimento em primeira pessoa. Ora carrega traços autobiográficos, outras vezes é disfarçada por um narrador onisciente, e não raro a trama é exposta para o leitor em cartas anônimas, testamentos, gravações ou até uma conversa no bar.

É preciso muita perícia para manejar todos esses recursos sem parecer um pastiche de obras famosas. Há vários autores consagrados que se valem destes artifícios, e até o Nobel premiou em 2022 a francesa Annie Ernaux, cuja obra é marcada pela autoficção. Ou seja, ninguém está sendo transgressor praticando um gênero que vem se tornando uma marca consagrada deste século. De Marguerite Duras a Lobo Antunes, de Cristóvão Tezza a Ricardo Lísias ou Rita Carelli, cada vez mais a vida dos autores se confunde com suas obras, não esquecendo de deixar semiaberta a porteira da ficção.

E é aí que mora a grande dificuldade: ser criativo num campo cada vez mais congestionado. Às vezes a saída é buscar uma linguagem original, embora também este seja um caminho espinhoso. Um bom argumento é meio caminho andado, e já vai longe o tempo em que os teóricos do nouveau roman apostavam as fichas numa história sem começo ou final. Na era do pós-tudo, todas as cartas estão na mesa, e o jogo literário pode lançar mão de qualquer recurso, até os consagrados.

O recém lançado romance de Wilson Gorj, A Inevitável Fraqueza da Carne, brinca – a sério – com este pular-a-cerca entre gêneros. Um pequeno prólogo revela dois amigos no bar, e um deles está escrevendo um romance “com fortes traços autobiográficos”. Logo entramos na parte 1, narrado em terceira pessoa. Uma história linear, enxuta e bem resolvida, que vai direto ao ponto: um homem recebe a notícia da morte do pai ausente, com quem nunca manteve qualquer contato.

A mãe, que sempre o isolou e protegeu, está terminando seus dias num asilo, com Alzheimer. O pai deixou uma chácara com herança, e ele vai conhecer o imóvel, no interior de São Paulo. Seu casamento de quatro anos vive um momento de instabilidade, com a mulher querendo ter um filho. A viagem propicia novas relações, com o caseiro e sua família, mulher e filha, a segunda mulher do pai, que ele nunca conheceu pessoalmente, e até uma jaguatirica que tenta várias vezes roubar uma galinha do seu quintal. É a inevitável fraqueza da carne que, no caso dos seres humanos, se entende como a tentação ao pecado carnal.

A trama é realista e despojada de julgamentos, à medida em que vai ganhando contornos rocambolescos. Antes que se pareça enredo de novela global, uma surpresa: após 114 páginas, surge uma segunda parte narrada em primeira pessoa, dando uma guinada estilística e assumindo um tom confessional. Mal nos refazemos do pulo-da-cerca e, 30 páginas depois surge um espantoso epílogo (ou “um posfácio com feitio de epílogo”) que embaralha tudo e nos remete novamente ao prólogo, pois é narrado por um editor.

É tudo verdade? É tudo mentira? Wilson Gorj, editor na vida real, autor de engenhosos minicontos (Histórias para Ninar Dragões, 2012), estreia na narrativa longa (mas não muito, são pouco mais de 150 páginas) mostrando que tem muita garrafa para vender. Sua escrita é fácil, aparentemente simples, mas embute armadilhas que nos encantam quando são habilmente reveladas.

O único autor citado no enredo – e tem um papel importante na trama! – é Milan Kundera, e duas partes do livro tem epígrafes do autor tcheco. Fica evidente que o título A inevitável fraqueza da carne é uma apropriação antropofágica de A insustentável leveza do ser. Sem querer se comparar, Wilson Gorj se apoia nos ombros do gigante para criar uma obra muito original, que certamente dará um nó na cabeça de seus leitores.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


Wilson Gorj. A inevitável fraqueza da carne. São Paulo, Penalux 2023, 162 págs (https://amzn.to/47y9gTa).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Liszt Vieira Antonino Infranca Remy José Fontana Francisco Pereira de Farias Vanderlei Tenório João Feres Júnior Marcos Silva Alexandre Aragão de Albuquerque Marcelo Módolo Leonardo Boff Celso Frederico Tadeu Valadares José Costa Júnior Jean Pierre Chauvin Ricardo Musse Marilia Pacheco Fiorillo Carla Teixeira João Adolfo Hansen Salem Nasser Igor Felippe Santos Ronald Rocha Alysson Leandro Mascaro Atilio A. Boron Luiz Marques Michael Roberts José Micaelson Lacerda Morais Luiz Eduardo Soares Gerson Almeida Gilberto Maringoni Jorge Luiz Souto Maior Julian Rodrigues João Carlos Salles Valerio Arcary Michael Löwy Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jean Marc Von Der Weid Fernão Pessoa Ramos Vladimir Safatle Kátia Gerab Baggio Carlos Tautz Jorge Branco Ronaldo Tadeu de Souza Daniel Afonso da Silva Lorenzo Vitral Plínio de Arruda Sampaio Jr. Airton Paschoa Daniel Brazil Mário Maestri Bruno Machado Milton Pinheiro Bernardo Ricupero Eleutério F. S. Prado Luiz Roberto Alves Henri Acselrad André Singer Ricardo Abramovay Caio Bugiato Slavoj Žižek Gilberto Lopes José Raimundo Trindade Osvaldo Coggiola Yuri Martins-Fontes Renato Dagnino Francisco Fernandes Ladeira Berenice Bento Priscila Figueiredo Alexandre Juliete Rosa Luís Fernando Vitagliano Armando Boito Luiz Bernardo Pericás Ricardo Antunes Claudio Katz Everaldo de Oliveira Andrade Matheus Silveira de Souza Paulo Martins Heraldo Campos Paulo Nogueira Batista Jr Marcelo Guimarães Lima Ari Marcelo Solon Ricardo Fabbrini Luiz Werneck Vianna Bento Prado Jr. Anselm Jappe Celso Favaretto Dennis Oliveira Manuel Domingos Neto Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ronald León Núñez Eugênio Trivinho Francisco de Oliveira Barros Júnior Andrés del Río Marilena Chauí Leonardo Avritzer Vinício Carrilho Martinez Walnice Nogueira Galvão Andrew Korybko Chico Whitaker Annateresa Fabris Juarez Guimarães Benicio Viero Schmidt Luciano Nascimento Michel Goulart da Silva Eugênio Bucci Eliziário Andrade Ladislau Dowbor Henry Burnett Afrânio Catani Mariarosaria Fabris Marcus Ianoni Chico Alencar José Geraldo Couto João Lanari Bo José Luís Fiori Marcos Aurélio da Silva Flávio R. Kothe Sandra Bitencourt Elias Jabbour Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Capel Narvai Antônio Sales Rios Neto Luis Felipe Miguel Tales Ab'Sáber Tarso Genro Otaviano Helene Luiz Renato Martins Antonio Martins Luiz Carlos Bresser-Pereira Leonardo Sacramento Rodrigo de Faria Lucas Fiaschetti Estevez Boaventura de Sousa Santos Maria Rita Kehl Marjorie C. Marona Dênis de Moraes Paulo Fernandes Silveira Paulo Sérgio Pinheiro Sergio Amadeu da Silveira Rubens Pinto Lyra Gabriel Cohn João Paulo Ayub Fonseca Flávio Aguiar André Márcio Neves Soares Leda Maria Paulani Samuel Kilsztajn Fábio Konder Comparato José Machado Moita Neto Rafael R. Ioris Thomas Piketty Daniel Costa Denilson Cordeiro Lincoln Secco Eleonora Albano Alexandre de Freitas Barbosa José Dirceu Érico Andrade João Sette Whitaker Ferreira Fernando Nogueira da Costa Manchetômetro Eduardo Borges João Carlos Loebens

NOVAS PUBLICAÇÕES