Por TARSO GENRO*
Considerações sobre uma conversa com Pepe Mujica e Lúcia Topolanski
“Luis ernesto lo envuleve em su afecto tentáculo \ de a ratos parece um buen ladrón del cine mudo \ seguro que es um fiel un pátria o muerte \ ojalá vivas marcos \ y se perde em el pozo”. (Mario Benedetti, 1971).
O querido companheiro Daniel Caggiani, senador da Frente Ampla no Uruguai, chama pelo telefone celular minha mulher Sandra Bitencourt e nos comunica que o ex-presidente Pepe Mujica gostaria de nos receber, no fim da tarde, para conversarmos com mais tranquilidade do que fizemos num evento do dia anterior. Era uma reunião de um conjunto de líderes políticos, ex-ministros, ativistas dos direitos humanos e intelectuais, programada paralelamente ao evento de Brasília, no qual Lula conversaria – no dia seguinte – com os presidentes sul-americanos sobre a questão democrática na América do Sul e a retomada do nosso processo de integração.
Há 52 anos, em 5 de fevereiro de 1971, uma experiência original de unidade política entre socialistas democráticos, comunistas históricos, democratas-cristãos, democratas progressistas de várias vertentes do republicanismo político do país – inclusive blancos e colorados – tinham fundado no Uruguai a Frente Ampla, cuja unidade invejável, capacidade política e disciplina consensual, perdura até o presente. Nada como o Uruguai, portanto, para abrigar uma reunião daquela natureza.
No nosso evento de “apoio” à reunião de Brasília, um dia antes – cuja sessão inicial teve a presença de Mujica e Lucía, sua mulher ex-senadora da República – debati com os participante os rumos da integração e a unidade frentista do campo democrático, contra os novos sonhos ditatoriais da extrema direita latino-americana. A reunião foi formada através de uma articulação de mais de um ano de reuniões e debates, presenciais e pela internet – organizada pelo Instituto Novos Paradigmas, Fundação Chile 21 e Fundação Seregni, com a participação dos ex-presidentes Mujica, Ernesto Samper e o ex-ministro Celso Amorim.
Carlos Ominami (ex-ministro da Fazenda do primeiro governo de Concertación no Chile), Monica Xavier (ex-senadora da República no Uruguai) e o professor Javier Miranda (ex-presidente da Frente Ampla), mais Pepe Dirceu e Paulo Abrão, do Brasil, foram fundamentais para o sucesso do encontro, cujo documento final foi exposto na reunião de Brasília pelo Presidente Alberto Fernández, da República Argentina.
A nossa frente política no Brasil é uma experiência contingente e necessária, num país em que as oligarquias regionais têm mais força do que os partidos, que os partidos – em regra – olham a nação a partir do seu espaço político regional, cujos interesses “superiores” – para eles – um dia irão se conjugar para formar um Estado nacional. O que interfere, decisivamente, na formação dos nossos governos democráticos, depois da Constituição de 88, é muito menos a força dos partidos de qualquer origem e muito mais as forças oligárquicas-regionais que, passam, ou não, para dentro dos partidos, em dependência do avanço da civilidade da política ali instalada.
O ex-presidente Pepe Mujica diz, ao meu ver corretamente, que as forças da direita se unem pelos seus interesses imediatos e as forças da esquerda e centro-esquerda se separam pelo que pretendem do futuro. Daí a sua conclusão que a esquerda deve trabalhar com “tempos curtos” – como diz Pepe Mujica – não por mais de cinco anos, para governar com coerência a previsibilidade, “mercadorias” escassas no Brasil, onde os presidentes formam a sua base parlamentar precária, depois de ganhar a eleição, com retalhos de partidos incoerentes, que acabam sempre surpreendendo o partido vencedor na eleição majoritária.
Estávamos todos orgulhosos da nossa empreitada política naquele dia do convite de Pepe Mujica, que especialmente para mim tinha um forte significado político. Ele fechava um “tempo longo” de militância política, através de dois marcos pessoais da minha trajetória: eu estava no Uruguai, em 1971, quando a Frente Ampla foi fundada e também quando Pepe Mujica saiu da prisão – por um túnel, em Punta Carretas –cavado num lugar próximo onde almoçávamos quando veio o telefonema de Caggiani. O mesmo Pepe Mujica, que eu recebera como governador do Rio Grande do Sul no Palácio Piratini, como presidente do Uruguai, e que também visitei – em meu mandato de governador – no Palácio presidencial em Montevideo.
Era uma época de um “tempo longo”, que naquele exato momento do convite se tornava “curto”: o tempo longo se tornava, no espírito, uma reta ascendente e longilínea – antes tortuosa e imprevista – que agora a memória transformava num tempo curto, espaço unificado de dor, de luta e também de celebração da vida.
Dia 30 de maio, terça-feira, às 19.45 hs, mais ou menos a 25 km do centro de Montevidéu na chácara-residência de Pepe Mujica e Lucia, no lugar denominado “Rincón del Cerro”, encerramos – eu e Sandra Bitencourt – a longa conversa com Pepe Mujica e sua mulher Lúcia Topolanski. Foi quando abracei carinhosamente o velho e querido combatente e lhe disse uma pequena frase de despedida: “Te cuida!” Que ele me respondeu com um “Hasta siempre hermano“. Sua despedida comovente logo me lembrou de Giovanni Arrighi, do seu O longo século XX, que – por seu turno – me fez aparecer na memória A era dos extremos, o breve século XX, de Eric Hobsbawm”. O longo e o breve: tempos longos e tempos curtos estavam ali, fundidos em duas gerações latino-americanas, se considerarmos que os tempos estão curtos; ou uma só geração, se considerarmos que os séculos continuam longos. Ao final da nossa conversa, já sem a gravação conscienciosa de Sandra Bittencourt, Pepe Mujica abre uma breve recordação do seu “tempo longo” nos calabouços da ditadura.
Encerrávamos uma longa conversa sobre as respostas da democracia liberal às ditaduras dos anos 1970, as relações de solidariedade entre os países da América do Sul, a experiência exemplar da Frente Ampla no Uruguai e as tentativas revolucionárias frustradas, no “curto” ou “longo” século XX, quando retorna – pela voz de Pepe Mujica – o enigma insondável do tempo. “Curto”, se considerarmos – como Hobsbawm – seu início histórico em 1914, no começo da Primeira Guerra Mundial, e o seu final na queda da Revolução Russa, em 1991; mas que é “longo”, se nos pusermos na perspectiva de Giovanni Arrighi, que supõe existir uma descontinuidade-continuada permanente, no tempo histórico, cuja flexibilidade se amplia no espaço do mundo face à evolução das regras impositivas do mercado.
Mas o tempo “longo” de Pepe Mujica remete diretamente, não para o mercado, mas para um calabouço, onde por mais de 12 anos a ditadura uruguaia pretendeu lhe aniquilar como ser humano, pelo silêncio, pelo medo imposto, pela tortura física e psicológica. E a ditadura perdeu.
Então Pepe Mujica falou com a tranquilidade grandiosa dos homens sofridos de todos os tempos, com a grandeza produzida por eles em todos os calabouços, onde foram jogados pelo destino que escolheram, falando por todos os que sobreviveram e assim venceram. Mas também por todos os tristes, os derrotados e os mortos, cujos vestígios estão tanto nos tempos longos como nos tempos curtos, onde só a consciência sobrevive e o espírito novamente volta para inquietar, construir e edificar um futuro para a Humanidade.
Ele é apenas um roteiro, que é apenas um caminho que nunca será encontrado. Mas que é tão só a própria incansável e despojada dignidade humana: “nos momentos de maior exaustão no calabouço procurei – disse ele – mais na antropologia do que na filosofia, algumas respostas que me fizeram sobreviver. Trata-se da busca do ‘disco rígido’ que deve estar no centro da subjetividade de todos os seres humanos e que deve, um dia, nos unificar para buscarmos um destino comum. É uma utopia”.
Penso que ela está presente, tanto nos tempos curtos da nossa vida, como nos seus longos tempos em que desaparecemos na poeira da história. Nos curtos caminhos da nossa vida inteira ou nos longos caminhos de todas as gerações, que não se cansam de lutar por uma vida melhor para todos os seres humanos.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).
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