Selva

Imagem: Paulo Pasta (Jornal de Resenhas)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o romance de Paulo Freire

Um dos encantos mais desafiadores – ou um dos desafios mais encantadores? – da literatura contemporânea é o convívio, nem sempre pacífico, de diversas formas e estilos. Estão definitivamente enterrados no século XX os últimos movimentos literários hegemônicos que caracterizavam uma época. Romantismo, Realismo, Modernismo e outros ismos continuam aflorando aqui e ali, porém misturados com novas formas de contar uma história.

É possível se aventurar nos limites da língua, implodir regras gramaticais, flertar com grafismos, buscar sonoridades inusitadas, cruzar as fronteiras entre prosa e poesia, assim como é possível explorar os caminhos da oralidade, da linguagem popular, da recuperação de mitos e tradições ancestrais, jogando novas luzes sobre veios ainda não esgotados.

O romance Selva, de Paulo Freire, se encaixa nessa última categoria. E é impossível não falar da biografia do autor, para uma avaliação mais precisa da obra. Paulinho Freire, como é conhecido, nasceu em São Paulo, em berço letrado. Estudou jornalismo, e motivado pela leitura de Grande sertão: veredas, viajou para o norte de Minas Gerais onde se dedicou ao estudo da viola caipira. Teve um mestre local, Seu Manelim, com quem aprendeu segredos do instrumento, além de roçar, plantar arroz na vazante e torar lenha.

De volta a São Paulo, estudou violão clássico, tocou com muita gente, animou bailes. Excursionou pela Europa e estudou na França, mas a viola e o sertão se impuseram na sua vida. Compôs trilhas sonoras, gravou vários discos, e foi desenvolvendo no palco a arte de contar histórias. Ou causos. Seus shows são um misto de narrativas e composições, onde filtra as várias influências, do erudito ao sertanejo.

O romance entrelaça duas trajetórias distintas. Uma família que abandona o sertão e vai para o Sul por sobrevivência, e que se pulveriza com a morte do pai. Uns morrem, outros se perdem, alguns retornam depois de algum tempo, carregando traumas que não se apagam.

A protagonista do romance é Maria do Céu, Céu, apelidada Selva. Uma jovem que sai de São Paulo, abandonando a família de forma abrupta, e “vira hippie”, nas palavras de uma tia. Experimenta drogas, relacionamentos fugazes, falta de grana e outros contratempos. Interessada em plantas e ervas medicinais, acaba indo parar no sertão do norte de Minas, onde vai estabelecer intensa relação com Teófilo, um dos sobreviventes da primeira saga.

Freire foge da obviedade de um enlace amoroso entre os personagens com um artifício engenhoso. Quando eles se encontram, ele é um sexagenário, e só então percebemos que as narrativas iniciais se dão em épocas diferentes. A relação que se estabelece, portanto, é a de um mestre conhecedor das ervas, cascas e raízes do sertão com uma aprendiz que procura fazer disso algo que dê sentido à sua vida.

Há outros personagens relevantes, como a velha Luduvina, mãe de criação de Teófilo, mestra suprema dos chás, unguentos e poções. Irmãos e irmãs vão ganhando perfil definido, e a sutil chegada de um camelô, uma veterinária e de estudantes de biologia vão alterar o frágil equilíbrio social da pequena comunidade. E os carvoeiros ameaçam no horizonte com a fumaça da destruição.

É claro que Paulo Freire colocou em sua personagem Selva muito de sua vivência, como qualquer bom ficcionista. A linguagem direta, sem floreios, busca a oralidade de seus causos, mas sem perder de vista a dimensão ficcional. Não é um neófito. Já escreveu outros romances, ensaios e relatos de viagem. Escritores que não tocam nenhum instrumento costumam torcer o nariz para músicos que escrevem. É um sentimento mesquinho, frustrado. Contemporâneos do escritor, dramaturgo e compositor Chico Buarque, prêmio Camões, deviam ser menos corporativos (ou invejosos?).

Selva não é um romance perfeito. Há aqui e ali alguma inconsistência, alguns episódios pedem mais detalhes, alguns personagens poderiam ser mais aprofundados. Mas não é assim com os saborosos causos que Paulo Freire está acostumado a contar nos palcos? Quando lemos um cordel, passa pela nossa cabeça que tal personagem deveria ser mais desenvolvido, ou que aquele nó dramático poderia ser mais explorado? Claro que não, embarcamos na fruição da história e só esperamos que seja bem contada. Essa reconquista da oralidade dá outro sabor à complexa elaboração do arco dramático de um romance de 360 páginas, e que emociona em alguns momentos. Como dizem os italianos, “se non è vero, è bene trovato!”

Paulo Freire acrescenta uma cereja ao bolo: em cada capítulo há um QR Code onde você pode ouvir uma trilha sonora, composta pelo autor, para incrementar o clima da leitura. Nem Chico Buarque pensou nisso…

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


Paulo Freire. Selva. São Paulo, Editora Bambual, 2021, 360 págs.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Mário Maestri Carlos Tautz João Feres Júnior Vanderlei Tenório Eleonora Albano Francisco Pereira de Farias Osvaldo Coggiola Julian Rodrigues Alexandre Juliete Rosa Marilena Chauí Rodrigo de Faria Fernão Pessoa Ramos Thomas Piketty Bruno Machado Érico Andrade Luiz Renato Martins Flávio Aguiar Annateresa Fabris Bernardo Ricupero Daniel Afonso da Silva Luciano Nascimento Tadeu Valadares Tarso Genro José Raimundo Trindade Francisco de Oliveira Barros Júnior Ricardo Fabbrini Liszt Vieira Rafael R. Ioris Luiz Carlos Bresser-Pereira Paulo Nogueira Batista Jr Rubens Pinto Lyra Afrânio Catani João Carlos Salles Gilberto Maringoni Claudio Katz Leonardo Boff Kátia Gerab Baggio Dênis de Moraes Priscila Figueiredo Samuel Kilsztajn Otaviano Helene Denilson Cordeiro Bento Prado Jr. Walnice Nogueira Galvão Valerio Arcary Sandra Bitencourt Igor Felippe Santos Celso Favaretto Lincoln Secco Francisco Fernandes Ladeira Elias Jabbour Jorge Branco Yuri Martins-Fontes Eduardo Borges Luiz Eduardo Soares Ari Marcelo Solon Eugênio Trivinho José Dirceu Manchetômetro Everaldo de Oliveira Andrade Celso Frederico Fernando Nogueira da Costa Anselm Jappe Daniel Costa Paulo Sérgio Pinheiro Marilia Pacheco Fiorillo Ronaldo Tadeu de Souza Berenice Bento Salem Nasser Jorge Luiz Souto Maior João Carlos Loebens Eugênio Bucci Marcos Silva Jean Pierre Chauvin Antônio Sales Rios Neto Luiz Roberto Alves Luiz Marques André Singer Vinício Carrilho Martinez Ricardo Abramovay Henry Burnett Alexandre Aragão de Albuquerque Andrés del Río Marcelo Módolo Alexandre de Freitas Barbosa Marcelo Guimarães Lima André Márcio Neves Soares Henri Acselrad Flávio R. Kothe Gerson Almeida Paulo Martins Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Costa Júnior Slavoj Žižek Milton Pinheiro Airton Paschoa Michael Löwy Ronald León Núñez Daniel Brazil Bruno Fabricio Alcebino da Silva Alysson Leandro Mascaro Tales Ab'Sáber Vladimir Safatle Chico Alencar Leonardo Avritzer Gilberto Lopes Dennis Oliveira José Machado Moita Neto Lorenzo Vitral Ricardo Musse Marcos Aurélio da Silva Eliziário Andrade Marjorie C. Marona Antonino Infranca Sergio Amadeu da Silveira Michel Goulart da Silva Leonardo Sacramento Caio Bugiato João Paulo Ayub Fonseca Luis Felipe Miguel Fábio Konder Comparato Heraldo Campos Boaventura de Sousa Santos Alexandre de Lima Castro Tranjan Andrew Korybko João Lanari Bo Atilio A. Boron Juarez Guimarães Matheus Silveira de Souza Gabriel Cohn Ladislau Dowbor Renato Dagnino Maria Rita Kehl Ricardo Antunes Marcus Ianoni Chico Whitaker Eleutério F. S. Prado Jean Marc Von Der Weid Lucas Fiaschetti Estevez Manuel Domingos Neto Luiz Werneck Vianna José Luís Fiori Alexandre de Oliveira Torres Carrasco João Adolfo Hansen Michael Roberts Ronald Rocha José Micaelson Lacerda Morais Luiz Bernardo Pericás Mariarosaria Fabris Paulo Capel Narvai Luís Fernando Vitagliano Remy José Fontana João Sette Whitaker Ferreira José Geraldo Couto Leda Maria Paulani Antonio Martins Carla Teixeira Benicio Viero Schmidt Armando Boito Paulo Fernandes Silveira

NOVAS PUBLICAÇÕES