Esse estado permanente de inquietude é poderoso em dilacerar nossa saúde mental e nosso bem estar. Talvez, o que mais nos incomode é não saber até quando isso vai durar. Essa angústia do confinamento guarda um elemento que nos é, portanto, desconhecido, incerto e indeterminado
Por Lucas Fiaschetti Estevez*
As cidades estão sitiadas em uma tentativa de conter a disseminação do novo coronavírus. Setores da elite e da classe média correram ao supermercado e estocaram desesperadamente comida, máscaras e álcool em gel (em mais uma mostra de seu inconfundível senso de responsabilidade e solidariedade social) e agora, depois de cumprido o home office, assistem atônitos de seus lares o caos no qual o país se afunda. Nas mesmas cidades, em direção às periferias, vemos hospitais ameaçados de superlotação e áreas favelizadas densamente povoadas, onde muitos dos moradores se perguntam de onde irão tirar seu sustento nos próximos meses.
Entre todas essas realidades, permeia-se uma situação urbana de exceção: decretada a quarentena, as vias e espaços públicos foram tomados pelo vazio e pelo silêncio, numa falsa tranquilidade que encobre todo sofrimento e ansiedade que vem sendo gestado no interior de cada lar. As metrópoles seguem num estado de paralisia precária, sob a imposição de um confinamento geral que, embora indiscutivelmente necessário, é para muitos financeiramente impossível. Vivemos, assim, num estado de silêncio inquieto.
As ilustrações do britânico Martin Handford, da famosa série de livros Onde está Wally?, até então serviam como ótimas alegorias de nossas metrópoles agitadas e desordenadas. Milhões de trabalhadores, autônomos e desempregados disputavam os escassos espaços vagos nos empregos, nas ruas e no transporte público. Agora, diante de um vírus que se espraia cada vez mais pelo país, o fluxo interminável de pessoas e mercadorias foi interrompido e forçosamente paralisado. Imagens impensáveis tornaram-se possíveis, como a visão completamente incômoda de uma vazia e insólita praça de São Pedro, no Vaticano. Mesmo assim, nos últimos finais de semanas, o Papa Francisco tem aparecido na janela do Palácio Apostólico e, diante do vazio, abençoa as estátuas dos santos e as pombas. A Times Square, geralmente tomada por manadas de turistas e símbolo do caos urbano, agora é atravessada por alguns poucos carros e raros pedestres.
Ao lado desses conhecidos lugares, o confinamento também se impõe crescentemente às áreas periféricas do globo, com seus bilhões de habitantes espremidos em pequenos e insalubres cômodos, vivendo em imensas áreas urbanas degradadas, sem infraestrutura e saneamento básico. A eles, confinar-se é sinônimo de ver sua renda, já escassa, desaparecer por completo. O silêncio das vielas tende a ser mais angustiante que o das grandes avenidas.
Este vazio que assola os centros urbanos pode ser encontrado, de forma sutil e ao mesmo tempo angustiante, no imaginário metafísico das pinturas de Giorgio de Chirico, que retratava amplos espaços urbanos vazios tomados por uma melancolia difícil de ser definida. Atacadas violentamente pela luz de um sol poente, como na tela O enigma de um dia (1914), as colunas das construções, o bronze negro das estátuas e o lancinante alaranjado do chão parecem tomados de um calor gélido, natimorto. A ampla praça é habitada por duas figuras humanas apequenadas pelo vazio que as cerca. Sua presença incomoda na mesma medida em que fascina: ocupam um lugar onde não há mais nada nem ninguém a ser visto, numa mescla de cidade esquecida pelo tempo e esvaziada por uma tragédia que se anuncia.
Os ruídos, cheiros e movimentos que rotineiramente habitavam as ruas da cidade agora dão lugar à uma retraimento forçado e necessário, em um confinamento onde muitos são tomados pela ansiedade, pela solidão e pelas dificuldades de se viver num mesmo espaço e com as mesmas pessoas por tantos dias. A ameaça da contaminação do mundo externo nos faz olhar para fora com um misto de desejo reprimido e inquietude que nunca cessa, numa solidão socialmente compartilhada por aqueles que tem o privilégio de não precisar se expor para sobreviver economicamente.
Nesse caso, parece que retornamos às telas de Edward Hopper, inigualável em representar o sentimento de solidão urbana. O olhar melancólico da figura feminina presente em Morning Sun (1952) parece um retrato fiel dessa angústia que agora compartilhamos. Sentada na cama diante de um sol que a ilumina por uma grande janela, um misto de admiração e terror lhe tinge o rosto. O mundo lá fora, luminoso e convidativo, se tornou suspeito. Nós, percebendo a ausência de muitos dos sons que antes tomavam as ruas durante os dias, somos tomados por essa mesma suspeita angustiante. Chega até a ser irônico que, numa sociedade tomada pela hipervisibilidade, o confinamento e a reclusão se impuseram como meios incontornáveis de minimizar a catástrofe. Uma sensação de incerteza quanto ao futuro se agiganta, e o eco do silêncio e do vazio gradualmente se transforma num incômodo sentimento de inquietude.
Esse estado permanente de inquietude é poderoso em dilacerar nossa saúde mental e nosso bem estar. Talvez, o que mais nos incomode é não saber até quando isso vai durar. Essa angústia do confinamento guarda um elemento que nos é, portanto, desconhecido, incerto e indeterminado. O medo diante do vírus, invisível, nos coloca numa situação de impotência. Sentir-se inquieto é estar diante de algo não inteiramente conhecido, sempre à espreita. Passamos, assim, a sentir uma mescla de medo, angústia e desconfiança diante daquilo que nos ameaça. Freud já se referia ao inquietante (das Unheimliche) como um sentimento que margeia o assustador, o inesperado. A inquietude diz respeito “àquilo que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu”[i].
Diante da ameaça do vírus, parece que algo que sempre esteve aqui – a possibilidade sempre aberta de hecatombes e outros eventos catastróficos – finalmente se fez real, impondo a nós um novo dia-a-dia em meio ao caos, pré-existente em nosso imaginário já dominado pelos bens exageradamente catastróficos e clichês da indústria cultural, como em filmes apocalípticos, tornando tudo estranhamente familiar.
O inquietante também nos angustia porque é marcado sempre pela inevitabilidade. Segundo Freud, fatos inquietantes sempre possuem um forte traço fatal, inelutável, que foge às regras do acaso. Embora forçosamente busquemos no sentimento da inquietude uma causa lógica e factual (por que tudo isso está acontecendo?), a força da realidade nos mostra sua incomensurabilidade. Saltamos da ordem do “ordinariamente inofensivo” dos fatos rotineiros para um estado de coisas trágico e incontornável, onde “a fronteira entre fantasia e realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos como fantástico”[ii].
O problema se intensifica quando setores da sociedade fecham os olhos à tal inevitabilidade. Se a contingência epidêmica passa a ser vista como um exagero, incluindo-se visões conspiratórias e falsas, assumimos que não há o que fazer porque não há com o que se preocupar. Ignorar os fatos e as recomendações médicas, rasgar os memorandos científicos em prol da recuperação econômica e do emprego torna-se um discurso suicida, tomado pelo mais destrutivo ímpeto do capital. Para este, o inquietante da pandemia é o risco que ela traz à sua acumulação sem fim. Vai tornando-se claro que a única forma verdadeira de escapar de uma tragédia maior, principalmente em relação às milhões de famílias carentes que ficarão desassistidas, é sacrificando as velhas diretrizes neoliberais do sagrado e intocável equilíbrio fiscal. Nesse sentido, apostar na inquietude enquanto “algo reprimido que retorna” é vislumbrar no vazio que agora nos cerca uma oportunidade de transformar o reprimido em potência social.
Embora a crescente insatisfação com o governo e seu contínuo isolamento possam apontar para uma futura mobilização popular, é necessário ter cautela. Setores organizados da direita também podem se movimentar a fim de encontrar seu caminho em meio ao caos, propondo falsas saídas. Faz-se necessário superar a lógica messiânica que comanda a política brasileira. É ela que tem nos jogado neste apocalipse de proporções incomensuráveis.
A pandemia enquanto fato novo da ordem mundial obrigou o incessante movimento do capital a diminuir a velocidade de suas máquinas, impondo à economia uma lógica que lhe é estranha. A sensação de que estamos sendo comandados por forças incontroláveis, por um vírus que impôs uma alteração profunda de nossa rotina, só tende a escamotear a profunda tragédia que nos assola, de fundo eminentemente político e econômico. Muitos tirarão proveito econômico do caos pandêmico, alargando ainda mais a distância entre os extremos da pirâmide social. O vírus é, inegavelmente, uma imposição da contingência. Porém, grande parte daqueles que irão morrer e daqueles que terão as suas vidas tragadas a uma pobreza ainda mais destrutiva o serão devido à obra humana, a um arranjo socioeconômico que principalmente em seus momentos de maior crise expõe suas leis imutáveis. A “terra arrasada” também fornece lucros e dividendos.
Guilherme Wisnik em seu recente livro Dentro do nevoeiro (2018) sustenta a tese que nosso tempo é dominado por uma concepção enevoada, incerta e desfocada do mundo, onde a verdade factual da realidade é colocada em xeque, em um estado de suspensão das certezas. Assim, voltamos à questão de que estaríamos colocados num constante estado de inquietude diante daquilo que não se conhece por inteiro.
Segundo Wisnik, uma das principais consequências desse novo modus operandi é a incerteza profunda que sentimos a respeito do futuro e de suas possibilidades. Para o autor, “vivemos hoje sob a permanente sensação de uma tragédia recalcada”,[iii] numa sociedade onde a todo momento temos a “eminência silenciosa de algo diverso prestes a acontecer”[iv]. O surto pandêmico no qual fomos colocados parece ter revelado tal tragédia enquanto um novo fato de dimensão disruptiva.
Em 2001, quando ocorreu o atentado terrorista às Torres Gêmeas, milhões de pessoas assistiram atônitas àquelas imagens. Até hoje, os vídeos e fotos daquele momento possuem um poder hipnótico e, ao mesmo tempo, trágico. Nos debates a respeito do impacto daquele fato na consciência da população e em sua percepção do mundo, muitos apontaram que a tragédia rompeu a tal nível com a letargia da rotina e da aparente normalidade que tornou possível a irrupção de ““algo real” em oposição a toda rede de simulacros e de virtualizações que caracteriza nosso mundo”[v], ou seja, tornou visível uma realidade que ultrapassou a ficção e suas representações antes relegadas aos filmes e à arte.
A diferença para nossa situação é de que nossa tragédia é lenta e invisível. Mesmo assim, é necessário ver nesse vazio aparente uma potência possível: ao olhar as cidades tomadas pelo vazio e ao nos depararmos com esse sentimento da inquietude e do abandono, devemos mobilizar as forças políticas progressistas que ainda restam na sociedade e despertar de um sonho hipnótico no qual, até então, estávamos neutralizados diante de tanta violência e barbárie. Estamos diante de uma sensação semelhante àquela de quando a energia acaba e percebemos o quão dependentes somos dela. Agora, diante de sua crise, a cidade reivindica atenção às suas feridas: cabe a sociedade civil e ao debate público a defesa intransigente de Sistema Único de Saúde, de melhores condições nas áreas mais pobres da cidade, de assistência e subsídio governamental aos autônomos e desempregados.
Temos que tomar de assalto tal inquietude, tomá-la a nosso favor. Devemos ter em mente que a contingência do real criou uma espécie de sublime estético trágico, que embora desolador, guarda em si uma potência capaz de formar uma crescente insatisfação em diferentes setores da sociedade. A questão, destinada à política, é como canalizar tal insatisfação em prol de uma mudança para algo melhor.
Submersos nessa sensação de inquietude e em meio a espaços esvaziados e silenciados, temos que encontrar formas de solidariedade social e de mobilização de afetos que impeçam que a angústia se transforme em desespero, caminho ideal para avançarmos ainda mais à irracionalidade. Devemos resguardar nossa saúde mental diante desse redemoinho que parece querer nos engolir sem trégua. Em Uma descida no Maelström (1841), Edgar Allan Poe brilhantemente descreve a aventura de um pescador norueguês que mesmo tendo sido sugado pela força incomensurável de um redemoinho marítimo que destruiu seu barco, sobrevive à tragédia e transforma sua história de horror em um relato sublime, porém trágico, de ter visto a morte de perto e dela ter escapado. Embora tal redemoinho tenha o “violento e perturbador sentido de “algo novo””[vi], é necessário deixar claro desde agora que as terríveis consequências que tal situação pode nos deixar como herança não possuem nada de novo. Longe de ser um castigo divino, estamos encarando mais uma vez a gélida face do neoliberalismo. Para seus ideólogos, se todos estiverem mortos, mas as contas em dia, está tudo bem. Diante de todos os esforços suicidas dos setores mais retrógrados da política e da elite brasileira, é necessário ver no vazio a oportunidade da presença. É necessário evitar o espetáculo da dança macabra que se avizinha.
*Lucas Fiaschetti Estevez é mestrando no departamento de sociologia da USP
[i] FREUD, Sigmund. O inquietante. In: Obras Completas, Vol. XIV. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.338
[ii] [ii] FREUD, Sigmund. O inquietante. In: Obras Completas, Vol. XIV. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.364
[iii] WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p.265.
[iv] WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 255.
[v] WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p.159.
[vi] POE, EDGAR ALLAN. Uma descida no Maelström. Clássicos Estrangeiros, Vol. 47. Free Books Editora Virtual, 2018, p.13.