A Pedra de Roseta

Pedra de Roseta
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Segundo o Museu Britânico, a Pedra de Roseta, ora reivindicada pelos egípcios, é o objeto mais visitado da ilustre casa em toda a sua história

Quem disse que o bom exemplo não frutifica? A descolonização progride: após a volta do dinossauro Ubirajara a seus pagos, a Dinamarca devolveu um manto cerimonial tupinambá de plumas vermelhas de guará, o mesmo que deslumbrou a Exposição dos 500 Anos, no Ibirapuera.

Vamos a outros casos na mira da descolonização.

Hiram Bingham, o “descobridor” americano de Machu Picchu, depenou a cidadela e levou embora tudo o que se mexia, num total de 40 mil peças. Algumas para a Universidade de Yale, onde estão até hoje, mas muitas mais para particulares que financiaram suas expedições. Há tempos o Peru procura reaver seus tesouros.

Segundo o Museu Britânico, a Pedra de Roseta, ora reivindicada pelos egípcios, é o objeto mais visitado da ilustre casa em toda a sua história. E isso apesar de ficarem ali ao lado os Mármores Elgin, extraídos do Partenon a serrote, com cerca de 200 estátuas em tamanho natural. O suficiente para lotar 22 navios. E objeto de pedidos de retorno, há tempos.

A Pedra de Roseta foi encontrada na cidade portuária epônima, no delta do Nilo. Quem a achou foram os franceses da invasão napoleônica, logo derrotados pelos ingleses, que a arremataram no butim da vitória. Traz uma inscrição tríplice, em hieróglifos, em egípcio demótico e em grego: um “Abre-te. Sésamo” para a decifração.

Foi baseado nessas inscrições que o francês Jean-François Champollion, hoje enterrado no Panthéon e considerado o Pai da Egiptologia, levou a cabo a missão, pois intuíra serem os hieróglifos uma mistura de ideogramas com alfabeto fonético – empreitada de importância gigantesca. Só a partir daí é que a história milenar do Egito começou a ser compilada, pois apenas se conhecia o que diziam viajantes e cronistas estrangeiros. E é uma história que ultrapassa os 5 mil anos. Outras decifrações se seguiram, como a da escrita maia, tirando do olvido uma das mais notáveis civilizações do mundo. Os maias eram tão avançados em astronomia e matemática que inventaram o zero, façanha exclusiva de apenas dois povos, eles e os hindus.

O relatório que Champollion, poliglota das línguas da Antiguidade, escreveu em forma de Lettre à M. Dacier, minuciosamente esquadrinhando todo o processo, felizmente para nós está online.

Quando se pensa em tantos retornos em curso, e tão discutidos no momento, vem à mente o vocábulo “nostalgia”, inventado em 1688 por um médico suíço. Palavra “artificial”, isto é, inventada com um certo propósito, e que “pegou”. Muitas não pegam, como aquelas que, numa investida em prol de uma língua pura, sem nódoas forasteiras, levou gramáticos e filólogos do Brasil a criarem várias palavras, em geral horríveis e que não vingaram.

Mas os estrangeirismos foram se disseminando a tal ponto que se tornaram palavras legitimamente brasileiras e expulsaram os neologismos patrióticos. Monteiro Lobato gostava de zombar da empreitada – veja-se Emília no País da Gramática – pois sabia muito bem que a língua é imprevisível, não adiantando impor padrões a ela. Entre esses neologismos estava ludopédio para substituir futebol, que então ainda se escrevia grifado e em inglês (football). Ou então lucivelo, para substituir o francês abat-jour, mas o que pegou foi abajur.

A palavra nostalgia, que é novíssima mas juraríamos ser grega da época clássica, tem sua entrada no léxico português datada de 1838 pelo Dicionário Houaiss. O vocábulo é um neologismo que juntou nostos (= regresso, ou viagem de regresso) a algos (=dor), resultando mais ou menos em “a dor do regresso”. Nostos, dos quais poucos chegaram até nós, mas são atestados na Antiguidade, era um gênero literário dedicado aos muitos regressos ao lar dos heróis da coligação grega que lutaram na Guerra de Troia, evento maior que marcou toda a literatura e as demais artes na Grécia. O grande exemplo, é claro, é a Odisseia, narrando tudo o que aconteceu nos 10 anos que durou a viagem de volta de Ulisses a Ítaca – dez anos em contagem mítica, é claro.

Mas a descolonização tem seus desdobramentos imprevisíveis. Por estes dias, o rei do povo bamum, da República dos Camarões, circundado por seu séquito, entrou no Museu Etnológico de Berlim e sentou-se acintosamente no trono que fora roubado de seu bisavô há mais de um século. Testemunhado e fotografado, o gesto sobranceiro foi executado pelo rei em toda a majestade de seus paramentos realengos.

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Bernardo Pericás Claudio Katz Marcelo Guimarães Lima Denilson Cordeiro Paulo Capel Narvai Jean Pierre Chauvin Rodrigo de Faria Caio Bugiato Remy José Fontana José Machado Moita Neto Alexandre Aragão de Albuquerque Leonardo Avritzer José Raimundo Trindade Antônio Sales Rios Neto João Adolfo Hansen Sandra Bitencourt Julian Rodrigues Renato Dagnino Priscila Figueiredo Afrânio Catani João Carlos Loebens Flávio Aguiar Jorge Luiz Souto Maior Luciano Nascimento Daniel Brazil Benicio Viero Schmidt Anselm Jappe Andrés del Río Sergio Amadeu da Silveira Walnice Nogueira Galvão Matheus Silveira de Souza Manuel Domingos Neto Yuri Martins-Fontes Mário Maestri Carla Teixeira Rafael R. Ioris Ronaldo Tadeu de Souza José Luís Fiori Fábio Konder Comparato Lorenzo Vitral Paulo Nogueira Batista Jr Tadeu Valadares João Sette Whitaker Ferreira Érico Andrade Leonardo Boff Tales Ab'Sáber Eugênio Bucci Eleonora Albano Valerio Arcary Luiz Marques Vanderlei Tenório Paulo Sérgio Pinheiro Alexandre de Lima Castro Tranjan Ari Marcelo Solon Luiz Renato Martins Eugênio Trivinho Henry Burnett Carlos Tautz Kátia Gerab Baggio Atilio A. Boron Annateresa Fabris Maria Rita Kehl Alysson Leandro Mascaro José Costa Júnior Plínio de Arruda Sampaio Jr. Lincoln Secco Dennis Oliveira Ricardo Fabbrini Fernão Pessoa Ramos Alexandre Juliete Rosa José Dirceu Armando Boito Luis Felipe Miguel Chico Alencar Celso Frederico Marjorie C. Marona Antonino Infranca Marcos Aurélio da Silva Gilberto Lopes Luiz Werneck Vianna Celso Favaretto Ronald Rocha João Paulo Ayub Fonseca João Feres Júnior Tarso Genro Elias Jabbour Boaventura de Sousa Santos Manchetômetro Leonardo Sacramento Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bento Prado Jr. Eliziário Andrade Samuel Kilsztajn Heraldo Campos José Geraldo Couto Dênis de Moraes Paulo Fernandes Silveira Lucas Fiaschetti Estevez Bruno Machado Juarez Guimarães Gabriel Cohn Michael Roberts Igor Felippe Santos Ricardo Abramovay Eleutério F. S. Prado João Lanari Bo Slavoj Žižek Mariarosaria Fabris Vladimir Safatle Chico Whitaker Henri Acselrad Rubens Pinto Lyra Andrew Korybko Luiz Carlos Bresser-Pereira Marilena Chauí Marcus Ianoni Luiz Roberto Alves Daniel Costa Flávio R. Kothe Alexandre de Freitas Barbosa Ricardo Musse Airton Paschoa João Carlos Salles Michel Goulart da Silva Jorge Branco Gilberto Maringoni Vinício Carrilho Martinez Marcelo Módolo José Micaelson Lacerda Morais André Singer Otaviano Helene Paulo Martins Michael Löwy Everaldo de Oliveira Andrade Thomas Piketty Francisco Fernandes Ladeira Liszt Vieira Fernando Nogueira da Costa Ladislau Dowbor Gerson Almeida Leda Maria Paulani Francisco Pereira de Farias Milton Pinheiro Eduardo Borges Luís Fernando Vitagliano Osvaldo Coggiola Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcos Silva Salem Nasser Bernardo Ricupero Daniel Afonso da Silva Luiz Eduardo Soares Berenice Bento Francisco de Oliveira Barros Júnior Marilia Pacheco Fiorillo Ronald León Núñez Jean Marc Von Der Weid André Márcio Neves Soares Ricardo Antunes Antonio Martins

NOVAS PUBLICAÇÕES