Por MATHEUS SILVEIRA DE SOUZA*
O núcleo da classe média que aderiu à extrema direita por encontrar uma vazão para seus ímpetos racistas, misóginos e classistas não irá aderir aos governos de esquerda
Nos últimos 10 anos a classe média teve um papel central na cena política brasileira, explicitada pela sua participação decisiva no golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e na eleição de Jair Bolsonaro. Alguns dados ilustram esta afirmação. Nas manifestações em São Paulo a favor do impeachment de Dilma em 2015, era predominante o perfil de classe média, com 70% dos indivíduos com diploma de ensino superior e de 40 a 50% com renda mensal superior a 10 salários mínimos[i].
Nas vésperas do segundo turno da eleição de 2018, a intenção de voto em Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, respectivamente, eram as seguintes: 63% x 28% na faixa de 5 a 10 salários mínimos e 62% x 31% entre os que ganham acima de 10 salários mínimos. Entre os que possuem diploma universitário, a diferença foi de 55% em Jair Bolsonaro e 34% em Fernando Haddad.[ii] Embora uma expressiva parcela das classes populares também tenha votado em Jair Bolsonaro em 2018, é evidente como o perfil de classe média fica destacado no referido voto.[iii]
Há diferentes teses que buscam explicar os motivos que levaram uma boa parcela desta classe a aderir ao antipetismo e apoiar as candidaturas de Jair Bolsonaro e de políticos da extrema direita, de modo que retomá-los pode ser um bom ponto de partida para nossa discussão. O ressentimento das classes médias pode ser explicado por pelo menos quatro motivos, que estão conectados: (a) reação às políticas sociais do PT; (b) perda dos espaços de distinção social, como universidades e aeroportos; (c) medo da proletarização; (d) diminuição dos ganhos materiais em termos de renda.
A classe média, embora também sobreviva da venda da sua força de trabalho e dependa de um salário, costumava dispor de ambientes de distinção social que, intimamente, lhe dava a sensação de superioridade moral sobre o restante da população. O médico e o advogado bem remunerados, embora não possam andar em um jatinho particular, como o dono da Ambev, não precisavam dividir o espaço em rodoviárias com o povão, dispondo de aviões e de aeroportos para encontrarem seus semelhantes e realizarem suas viagens para a Disney.
Pois bem, quando as passagens aéreas ficam mais baratas e os aeroportos são acessados pelas classes populares e pessoas não brancas, há um pânico por parte da classe média brasileira. Essa insatisfação é retratada por Paulo Guedes ao comentar o período em que o dólar estava baixo no Brasil: “todo mundo indo pra Disneylandia, empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada”.[iv]
Na coluna escrita por Luiz Felipe Pondé no jornal Folha de S. Paulo, nos idos de 2012, podemos ver esse ressentimento pequeno burguês de forma escancarada: “O aeroporto se transformou numa espécie de churrasco na laje, parece uma rodoviária”.[v] Em outra coluna, dispara o sábio pensador: ‘‘Os aviões cada vez mais se parecem com ônibus cheios de gente mal-educada tirando fotos de si mesmos enquanto berram sobre seus planos de visitar dez cidades em dez dias pagos em cem vezes. Esses neobárbaros transformaram a antes deliciosa experiência de viajar para conhecer novos mundos numa visita a um shopping center de periferia e suas praças de alimentação”.[vi]
Outro ambiente que tipicamente funcionava como local de distinção social da classe média brasileira é a Universidade, com ênfase para as instituições públicas. Com a consolidação das necessárias políticas afirmativas – cotas raciais e cotas sociais para alunos de escola pública – está em curso uma progressiva democratização das universidades públicas no Brasil, cujo perfil de alunos já não é apenas de brancos, de alta classe média e oriundos de escolas particulares.
As universidades públicas permitem que as classes médias garantam aos seus filhos profissões de prestígio e com elevadas remunerações, ocupando locais privilegiados na estrutura social. Dito de outra forma, as universidades são aparelhos de reprodução social desta classe. A relativa perda de exclusividade deste espaço causa impactos não apenas simbólicos, mas também materiais às camadas médias, pois as universidades garantem tanto o capital cultural institucionalizado como a inserção na rede de contatos que garantirá boas posições no mercado de trabalho e, consequentemente, bons salários.
No filme Que horas ela volta há uma cena que ilustra como o cruzamento dessas fronteiras entre classes pode criar um ressentimento para a pequena burguesia. Val, empregada doméstica de uma família de classe média alta, está consolando Fabinho, filho da patroa, por ele não ter sido aprovado no vestibular. Em seguida, Val recebe a ligação de Jéssica, sua filha, informando sobre seu ótimo desempenho e provável aprovação para ingressar na universidade. Quando Val volta animada ao quarto e fala sobre o resultado positivo da filha no vestibular, vemos a reação amargurada de Fabinho e da patroa. No Brasil contemporâneo, a empregada doméstica faz parte da família, desde que sua filha não se atreva a “roubar” a vaga da universidade do filho dos patrões.
Um dos privilégios típicos das classes médias brasileiras é a possibilidade de contratação do trabalho doméstico por baixos valores. Esta é uma peculiaridade do Brasil, pois o país é o segundo maior contratante de serviços domésticos do mundo e, além disso, o valor pago por uma faxina no país é menor do que em outros países do continente.[vii]
Ora, não é uma surpresa que parte da classe média não ficou muito satisfeita com a aprovação em 2013 da PEC das domésticas, emenda constitucional que garantia a estas trabalhadoras os direitos trabalhistas assegurados, há mais de 70 anos, aos demais empregados com carteira assinada. Esse fato evidencia um traço típico da classe média brasileira – de herança escravocrata e colonial – que é a valorização do trabalho intelectual e o desprezo pelo trabalho manual, embora esta classe se valha, com frequência, do trabalho manual de empregadas domésticas, porteiros, jardineiros, motoristas, entre outros.[viii]
Se alguns serviços que as camadas médias costumavam explorar, como o trabalho doméstico, teve uma inflação no seu valor em virtude dos direitos conquistados, por outro lado, ouve uma redução nos ganhos de renda de parte da classe média nas últimas duas décadas. No período de 2006 a 2012, embora tenha ocorrido uma diminuição da desigualdade no Brasil, a redistribuição de renda não ocorreu do 1% mais rico para os 50% mais pobres, mas sim das camadas médias para os mais pobres.[ix] Ou seja, os mais pobres viram seu padrão de vida melhorar, a burguesia continuou com a maior fatia do bolo e as classes médias sentiram uma estagnação de seus ganhos materiais.
Esse fato remete ao medo de proletarização por parte das classes médias e, somado ao conservadorismo e ao moralismo desta classe, cria um terreno fértil para o fortalecimento da extrema direita. A precarização das relações de trabalho das camadas médias – advogados e psicólogos uberizados, pejotização de médicos e engenheiros, proteção trabalhista cada vez mais frágil, ampliação de trabalhos intermitentes – engrossa o caldo do conservadorismo político.
Logo, segundo a lógica desta classe, a multiplicação de trabalhos precários não é culpa da burguesia financeira, industrial e comercial, que viram seus lucros aumentar com a aprovação de reformas neoliberais, como a trabalhista, mas da classe trabalhadora, que começou a colocar seus filhos e filhas nas universidades e frequentar aeroportos.
A apertada disputa eleitoral de 2022 também foi marcada por um voto expressivo das classes médias em Jair Bolsonaro e com a população que ganha até dois salários mínimos votando majoritariamente em Lula. A tabela abaixo ilustra essa diferença, mostrando que quanto mais subimos no nível de renda, maior a intenção de voto em Jair Bolsonaro e menor em Lula.
2 salários mínimos ou menos | 2 a 5 salários mínimos. | 5 a 10 salários mínimos | Acima de 10 salários mínimos | Total | |
LULA | 57% | 43% | 40% | 34% | 49% |
BOLSONARO | 36% | 52% | 55% | 59% | 45% |
Ao que parece, Lula está atento sobre a importância de disputar politicamente as classes médias e algumas medidas anunciadas ou já implementadas por seu governo corroboram essa afirmação. A redução no preço de carros populares (com valor de até 120 mil) por meio da concessão de créditos tributários às montadoras é uma das medidas que podemos destacar. Outra ação que acena às camadas médias é a criação de um novo teto no programa Minha Casa Minha Vida, incluindo imóveis de até 350 mil reais. A promessa de isenção do imposto de renda para quem recebe até 5 mil reais também atende a baixa classe média.
Obviamente que o núcleo da classe média que aderiu à extrema direita por encontrar uma vazão para seus ímpetos racistas, misóginos e classistas não irá aderir aos governos de esquerda, considerando o saudosismo que sentem do período colonial e escravocrata do país. Entretanto, esses traços reacionários não pertencem às camadas médias como um todo, de modo que o campo progressista deverá estar atento para a importância de disputar politicamente as classes médias caso não queira que a extrema direita retome o poder nas próximas eleições.
Matheus Silveira de Souza é doutorando em sociologia pela Unicamp.
Notas
[i] ORTELLADO, P; SOLANO, E; NADER, L. “Pesquisa manifestação política 16 de agosto de 2015”. Disponível em: https://gpopai.usp.br/pesquisa/160815/.
[ii] DATA FOLHA, 27 de outubro de 2018.
[iii] Embora haja um extenso debate sobre o conceito de classe média, adotamos como critérios o nível de renda, acesso ao diploma universitário, desempenho de um trabalho não manual qualificado e apego à ideologia meritocrática. Para um aprofundamento nesta discussão, conferir o artigo de Sávio Cavalcante e Santiane Arias, cujo título é “A divisão da classe média na crise política”.
[iv] PODER 360. Paulo Guedes critica dólar baixo: “empregada doméstica ia para a Disney”. Publicado em 12 de fevereiro de 2020.
[v] FOLHA. Aeroporto se transformou em churrasco na laje, diz Pondé. Publicado em 08 de abril de 2012
[vi] FOLHA. Churrasco na laje em Paris. Coluna de Luiz Felipe Pondé. Publicado em 11 de jan 2010.
[vii] UOL. “As diferenças de ser doméstica no Brasil e nos EUA”. Publicado em 16 de setembro de 2021.
[viii] CAVALCANTE, Sávio Machado. Classe média, meritocracia e corrupção. Crítica marxista, São Paulo, n. 46, p. 103-125, 2018.
[ix] MEDEIROS, Marcelo: SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de; CASTRO, Fábio Ávila de. A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil, 2006 a 2012: estimativa com dados do imposto de renda e pesquisas domiciliares, Ciência & Saúde Coletiva, 2015.
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