Por LISZT VIEIRA*
A frustração com o regime democrático, que concentra renda nas mãos de uma ínfima minoria e aumenta a desigualdade social, está na raiz da ascensão da extrema direita que chega ao poder pelo voto.
Muito já foi dito sobre a eleição na Argentina, com a vitória surpreendente do candidato de extrema direita Javier Milei nas prévias eleitorais de 13 de agosto. Do ponto de vista puramente eleitoral, o gráfico abaixo fala por si só. O peronismo perdeu o interior do país, com exceção de uma faixa no Noroeste e outra na periferia de Buenos Aires.
“Qualquer um dos três pode terminar como presidente, mas a onda vem a favor de quem terminou em primeiro”, afirma o diretor da Consultoria Escenarios, para quem, independente do candidato que venha a ser eleito presidente, nenhum partido terá maioria no Congresso. Javier Milei se apresentou como um outsider da política e canalizou a seu favor o voto de protesto. Trata-se de um fenômeno mundial, como mostram os exemplos de Trump, Bolsonaro e Bukele, entre outros. Milei, com um discurso contra a “casta política parasitária, corrupta e inútil” capitalizou o descontentamento da sociedade e obteve 30,3% dos votos nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (PASO). Ele afirma que vencerá no primeiro turno e alcançará 8 assentos no Senado e 35 na Câmara dos Deputados. Para muitos analistas, o resultado não foi surpresa, tendo em vista a inflação atual de mais de 100%.
Uma projeção mecânica e imediatista levaria à previsão de vitória de Milei no primeiro turno. Mas a ameaça de um regime fascista na Argentina assustou tanto a esquerda quanto a direita não fascista. Não digo direita liberal, porque os chamados liberais, na América Latina, têm o mau hábito de apoiar ditaduras militares quando seus interesses econômicos são ameaçados. Nesses casos, a direita engaveta seu discurso liberal e apoia a ditadura. Guardam apenas a dimensão econômica do liberalismo, ou seja, Estado mínimo e privilégios ao Mercado. No caso atual da Argentina, porém, nada garante que os empresários irão apoiar Milei, receosos do tumulto e da falta de previsibilidade econômica num quadro político gravíssimo de ingovernabilidade.
Apesar da vitória confortável de Milei nas prévias, o resultado do primeiro turno, em 22 de outubro próximo, é imprevisível. Afinal, a experiência desastrosa do fascismo bolsonarista também teve ecos na Argentina, onde, durante décadas, o peronismo e a direita liberal se alternaram no poder. De uns tempos para cá, problemas antigos retornaram, como a hiperinflação, por exemplo. Nesse quadro de desgaste econômico e político dos partidos tradicionais, cai como uma luva o discurso anti sistema que apela somente à emoção dos eleitores. A reflexão, o pensamento racional, a argumentação política, tudo fica em segundo plano em favor de palavras de ordem compactas objetivando a adesão cega de quem busca um líder para obedecer. Já vimos esse filme com o bolsonarismo no Brasil.
A questão que se coloca é determinar quais são as condições favoráveis ao advento de uma onda vitoriosa de extrema direita. A primeira delas, e talvez a mais importante, é o desgaste dos partidos tradicionais, seja de direita ou de esquerda. Isso está claro na situação argentina, e não só. Afinal, a ascensão da extrema direita é um fenômeno global.
A chamada democracia representativa liberal fracassou ao não atender às necessidades da maioria da população. A frustração com o regime democrático, que concentra renda nas mãos de uma ínfima minoria e aumenta a desigualdade social, está na raiz da ascensão da extrema direita que chega ao poder pelo voto, e implanta a seguir um regime autoritário que viola a divisão de poderes e o respeito à diversidade sociocultural.
É verdade que, uma vez no poder, a extrema direita sofre um desgaste pela violação das liberdades democráticas, pela ineficiência desastrosa de seus governos e pela corrupção de seus líderes. Mesmo assim, fora do poder, a extrema direita mantém uma sólida base de apoio. Nos EUA, por exemplo, Trump, ameaçado de prisão, é fortíssimo candidato à presidência, talvez o favorito, mesmo se estiver preso. Já no Brasil, Bolsonaro, por sua boçalidade e incompetência gritante, acusou o sistema eleitoral de fraudulento, tentou o golpe e foi declarado inelegível, deixando o espaço aberto a outro líder político que venha disputar o apoio do eleitorado de extrema direita.
De qualquer forma, a prudência recomenda não desprezar o fortalecimento da extrema direita pelo desgaste dos partidos tradicionais. No caso brasileiro, o governo Lula, eleito por uma frente ampla que reuniu esquerda, centro, e direita não fascista, ganhou a eleição para a Presidência, mas perdeu para o Legislativo. Não faltou quem recomendasse ano passado ao candidato Lula uma campanha política para pedir votos aos candidatos a deputado e senador alinhados com a chapa Lula/Alckmin. Isso não foi feito ou foi feito de forma insuficiente. O resultado é um Legislativo dominado pela direita.
Para governar e ter votos no Congresso, o governo Lula cede espaços políticos importantes ao Centrão, onde se alojam direitistas e corruptos de toda espécie. Em função disso, cargos importantes nos Ministérios estão sendo ocupados por políticos ou técnicos que apoiaram o impeachment da ex presidente Dilma, apoiaram a Lava Jato e suas decisões, entre as quais a prisão de Lula. O Governo atual do presidente Lula vai provavelmente enfrentar problemas, em termos de ineficiência e corrupção, no que se refere aos cargos ocupados por indicados do Centrão.
Em que pese os acertos já alcançados pelo Governo Lula na área social e econômica, sabemos todos que as concessões feitas ao mercado vão limitar a possibilidade de grandes êxitos nos planos de desenvolvimento econômico que, como regra, exige investimento público forte do Estado. Isso, porém, parece bloqueado, pelo menos parcialmente, pelas medidas fiscalistas adotadas. O grande risco é o Governo Lula, por mais acertos que tenha na área social, cultural, diplomática, na defesa dos direitos humanos e mesmo na área econômica, acabe gerando uma decepção em grande parte da população, principalmente na classe média que, como ocorreu no passado, se assusta quando os pobres se aproximam e os ricos se afastam.
Os ricos, embora contemplados, a classe média, assustada, e parte dos pobres, mesmo beneficiados, por razões diversas tendem a apoiar uma proposta de extrema direita se o Governo for decepcionante, a seus olhos. Acrescente-se a isso uma campanha da mídia e o apoio financeiro internacional aos grupos neofascistas.
Um fator importante para o desgaste e descrédito do regime democrático é a questão da segurança pública das populações de baixa renda em bairros populares. Os massacres perpetrados nesses bairros pela PM do RJ, da Bahia e de São Paulo, para citar os últimos casos de chacinas não punidas, levam ao desgaste e ao descrédito desses Governos Estaduais, mas também do Governo Federal, junto às populações atingidas e desprotegidas.
Assim, o resultado da eleição na Argentina é importante para o Brasil e para toda a América Latina. Ou a democracia se aprofunda e avança, eliminando seus inimigos – entre os quais destacam-se, no caso do Brasil, os militares e as PMs de um lado, e o capital improdutivo de outro – ou a onda neofascista se avoluma e volta a ameaçar a democracia.
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).
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