As mudanças climáticas, o marco temporal e a vida

Imagem: Brett Sayles
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GERSON ALMEIDA*

O Marco temporal aprovado pela maioria da Câmara dos Deputados deve ser entendido como mais uma demonstração da intolerância do neoliberalismo

Em fevereiro deste ano, o litoral de São Paulo sofreu com as maiores chuvas já registradas na história no país em 24 horas, e Bertioga as chuvas alcançou incríveis 683 mm, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Os imensos deslizamentos ocorridos na região tiraram a vida de 64 pessoas em São Sebastião e a massa de terra destruiu tudo aquilo que encontrava no seu caminho.

Sete meses depois, a população da cidade do Rio de Janeiro suportou um calor de 41,1 °C e uma sensação térmica de 58,3 °C – algo que não ocorria deste 2009; enquanto no sul do país choveu o “triplo e o quádruplo da climatologia normal para o mês de setembro”, segundo a MetSul, e cidades como Muçum, foram totalmente destruídas.

Eventos climáticos extremos como esses não estão mais limitados a nenhum continente ou região e tendem a ficar cada vez mais intensos, como é possível perceber a partir dos dados divulgados pelo Climate Reanalyzer da Universidade do Maine (EUA), que registraram um aumento espantoso das temperaturas nos polos da Terra. Em partes da Antártida foram registradas temperaturas de 40ºC acima do normal e 30ºC acima da média no Ártico, o que fez Antártida ficar 4,8ºC mais quente, em média, do que a temperatura de referência entre os anos 1979 e 2000.

Ao analisar esses dados, o reconhecido cientista do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos (NCAR), Kevin Trenberth, concluiu que esses eventos extremos já podem ser considerados como o “novo normal”.

A combinação do aumento das temperaturas nos polos da Terra e a diminuição das áreas cobertas pelas florestas tropicais são determinantes para acelerar o desequilíbrio das temperaturas e a consequente ocorrência de eventos extremos. As emissões das florestas, por exemplo, cumprem a função de esfriar o clima e “derrubando as florestas, acabamos com este efeito esfriador, e aumentamos o aquecimento global”, segundo o físico Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP. Entender isso torna mais fácil compreender a razão pela qual estamos diante de uma das piores secas jamais ocorridas na Amazônia, enquanto no Sul temos chuvas inéditas.

Marco temporal

É exatamente neste momento que a maioria na Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei sobre o marco temporal da ocupação de terras por povos indígenas (PL 490/07). Esse projeto restringe a demarcação de terras indígenas àquelas tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição federal e impede o reconhecimento de que qualquer área que não estivesse ocupada antes desse marco temporal, de ser reconhecida como dos povos originários, independentemente da causa.

Além disso, o projeto prevê a permissão para plantar cultivares transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas; a proibição de ampliar terras indígenas já demarcadas; adequação dos processos de demarcação em curso às novas regras; e a nulidade da demarcação que não atenda a essas regras.

O projeto é tão abjeto que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o caracterizou como evidente “violação do Direito Originário dos Povos Indígenas”, que é reconhecido desde o Brasil Colônia. “É uma tradição do direito brasileiro, com disposições semelhantes na primeira Lei de Terras do ano de 1850 e nas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967”. Em outras palavras, o “desenvolvimento” defendido pela atual maioria na Câmara de Deputados é um retrocesso ao período anterior ao Segundo reinado, sob Don Pedro II.

Enquanto os modelos de aquecimento global eram apenas projeções para o futuro próximo, a incapacidade das elites com poder decisório de realizar as ações necessárias para evitar o aquecimento global poderia ser interpretada como uma espécie de síndrome de São Tomé, o santo católico que só acreditava naquilo que conseguia ver.

Agora, todos estamos vendo que os modelos apresentados pelos cientistas do clima só erraram em um único ponto: os eventos extremos estão ocorrendo numa escala maior e mais cedo do que foram previstos. Isso, no entanto, não impede que mais recursos e esforços sejam destinados à fabricação e desenvolvimento de tecnologias para a guerra, do que para proteger as milhões de pessoas que estão sendo duramente atingidas pelas consequências do aquecimento global.

A civilização que produziu uma tecnologia para viver

Ao invés de atacados, os povos originários deveriam ser vistos como fonte de aprendizado sobre como construir uma civilização capaz de aprender a conviver em interação com as florestas e constituiu a sua identidade sem precisar cindir cultura e natureza. Diante da aceleração dos problemas ambientais para níveis alarmantes e das desigualdades sociais que condenam milhões de pessoas a viverem em situação cada vez mais precárias, não é mais racional identificar a realidade do mundo atual como o triunfo da civilização contra a sua negação, a barbárie.

Os conquistadores de outrora e os seus sucedâneos na atualidade sempre se autodefiniram como os portadores da “civilidade” e, assim, legitimaram a destruição de culturas e civilizações diferentes ao longo da história. Nos dias de hoje, essa retórica beneficia apenas o 1% dos hiper-ricos da população, cuja causa única é a defesa de um modelo de sociedade que interessa a eles mesmos. Tanto que, apenas na última década, concentraram 50% da riqueza mundial, segundo a Oxfam.

Quando os defensores do capitalismo dominado pela financeirização fala em “liberdade”, se referem tão somente às medidas necessárias para “libertar” o capital de qualquer controle por parte do Estado e/ou da sociedade e, assim, dar curso à sua natureza destrutiva. Essa necropolítica não tolera a diversidade e precisa sabotar permanentemente toda forma de democracia e não titubeiam em desestabilizar governos que fogem do seu controle e de financiar golpes, basta para isso que os 1% dos muito-ricos sintam que seus interesses correm riscos.

A concentração de tanta riqueza e poder nas mãos de tão poucos é a principal razão da sabotagem de todas as formas de democracia em curso no mundo. Uma ordem tão hipertrofiada só pode ser mantida por meio da negação de tudo aquilo que é diferente e possa desnudar a legitimidade de uma sociedade que, em nome da civilização e do progresso conduz aceleradamente a humanidade para a barbárie.

O Marco temporal aprovado pela maioria da Câmara dos Deputados deve ser entendido como mais uma demonstração da intolerância do neoliberalismo para com tudo que pode produzir alternativas e um ato de fúria contra a civilização que desenvolveu a mais imprescindível das tecnologias: a de como preservar a vida.

*Gerson Almeida, sociólogo, ex-vereador e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES