Palestina e as condições objetivas para produção da fúria

Imagem: Khaled Hourani
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BERENICE BENTO*

O drama do povo palestino não começou há uma semana. São 75 anos de perambulação

A imprensa repete: “Nada justifica matar civis!” para se referir aos ataques do Hamas nos últimos dias. Eu concordo. Mas por que Israel nunca foi condenado e exposto a um massacre midiático por seus crimes contra os civis palestinos? A cobertura sionista tem uma estrutura que se repete: corte cirúrgico para os fatos dos últimos dias. Negam-se a fazer qualquer reflexão, qualquer enquadramento mais amplo. O objetivo é claro: isolar os atos de um contexto anterior que o determina. E ao fazê-lo, o caminho está aberto para a patologização e a criminalização dos palestinos. Ou seja, mediante a absolutização do caso, se preserva a estrutura política, no caso, o colonialismo israelense.

Ainda assim, não há como escapar de alguns dados: 70% da população dos dois milhões e trezentos mil habitantes de Gaza, a maior prisão do mundo, é formado por refugiados. O que isso significa? O Estado de Israel as obrigou a deixar suas casas, as expulsou e as entregou para colonos sionistas. Vamos tentar ligar as pontas, tentar contar uma história. Só existem milhões de palestinos refugiados porque há uma política continuada de colonização e genocídio por parte do Estado de Israel.

O drama do povo palestino não começou há uma semana. São 75 anos de perambulação. A ONU já determinou o direito dos palestinos que tiveram suas casas roubadas por Israel, em 1948, a voltarem para suas casas. Essa e tantas outras Resoluções da ONU são letras mortas para um Estado que trata o povo palestino como barata, como lixo. Matar civis configura-se com ato terrorista, foi isso que aprendemos ao longo dessa semana. Se Israel tem matado civis palestinos há 75 anos, não nos resta outra alternativa que uma conclusão lógica: Israel é um Estado terrorista. Agora mesmo está cometendo um crime de guerra, nos termos das leis internacionais, ao punir coletivamente a população de Gaza. Para o Estado de Israel, no entanto, “palestinos” e “civis” são termos que não se encontram, são como água e azeite. Os israelenses são civis, têm vidas que merecem viver, os palestinos… bem, como disse Ayelet Shaked, ex-ministra da Justiça israelense, são “pequenas cobras”, para se referir às crianças palestinas.

Não tenho dúvida: se alguém viver um dia, apenas um dia, como um palestino, seja em Gaza ou na Cisjordânia, se colocará a mesma questão que me perseguiu naquele inverno de 2017: como esse povo suporta? Eram 5 da manhã e a fila para atravessar o controle militar israelense era enorme. São quase 800 quilômetros de muro de concreto, com 8 metros de altura. Trabalhadores/as que se amontavam em currais de metais para serem submetidos/as a mais um ritual de humilhação; do outro lado, o escárnio nos rostos dos/as soldados/as. Um senhor, diante da minha perplexidade e do meu choro, me fez um pedido: “Conte ao mundo o que você está vendo”.

É impossível entender a erupção da fúria dos palestinos no último final de semana sem contextualizá-la em marcos mais amplos. Nas revoltas das pessoas escravizadas aqui no Brasil, era comum o assassinato do senhor, da família e do feitor. Os jornais dos senhores escravocratas da época, antecipando o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, afirmavam: “Estamos lutando contra animais e agindo de acordo”. Na mesma entrevista em que fez o diagnóstico da “não-humanidade” do povo palestino, o ministro Gallant determinou o “cerco total” à Faixa de Gaza: punição coletiva. O único direito que o oprimido tem é não ter direito. Mas a fúria chega. Será que os dominadores não aprenderam nada com seus crimes e fracassos? O mantra sionista de que a palestina era uma terra sem povo, transformou-se em estratégia política. Assim tem sido desde 1948: expulsar, matar, torturar, apropriar-se das vidas e dos bens palestinos.

As condições objetivas para produção da fúria foram sendo gestadas diariamente por Israel. E, como uma barragem que está cheia de rachaduras no interior, mas que não aparece na dimensão externa, rompeu. Com ela, vemos emergirem todos os senhores e senhoras escravocratas. Apenas o/a senhor/a tem direito de vida. E os animais-palestinos? Morte total. O processo de desumanização do povo palestino repete a mesma estrutura responsável pela manutenção de seres humanos na escravidão: não são pessoas, são animais, são terroristas. E aqui está o motivo pelo qual a imprensa não fala, não televisiona, não entrevista as mães que perdem seus filhos, suas crianças, para o terror israelense: não são seres humanos. Não tenho dúvidas de que se fosse possível para as mães brasileiras (principalmente aquelas que perdem seus filhos executados pelo terror do Estado brasileiro), olharem nos olhos das mães palestinas, elas diriam “eu também sou palestina”.

Não entenderam nada do sentido da fúria do/a oprimido/a? Quantas intifadas serão necessárias para que o mundo ocidental e Israel entendam que o povo palestino não irá desistir, que o pulso ainda pulsa? Quando um palestino diz: “eu não aguento mais”, não é voz uma isolada. São gerações que falam, são ecos que chegam ao presente, é o passado tornando-se “agora”. Então, não nos peçam o impossível. Nós, apoiadores da luta palestina pelo direito ao retorno dos/as refugiados/as às suas terras e à autodeterminação, seguiremos contando a história da mais longa ocupação militar da história moderna, seguiremos fazendo o passado falar no presente.

Me recuso a discutir o Hamas sem enquadramentos históricos mais amplos. Me recuso a fazer um recorte histórico que aponta Netaniyahu como o princípio do mal absoluto. A solução parece simples: bastaria eleger um israelense de esquerda e a situação do povo palestino seria resolvido. O atual governo não é antítese dos anteriores. Ele não existiria sem a Plano Dalet, sem Levi Eshkol Shkolnik, sem Golda Meir. Os assentamentos ilegais não foram uma invenção de Benjamin “Bibi” Netanyahu. Nada nele é original. Tudo é cópia e continuidade.

Ilan Pappé, um historiador israelense, concluiu: “depois do início da Operação ‘Chumbo Fundido’, em 2009, optei por chamar à política israelita ‘genocídio gradual’”. O respeitado jornalista israelense Gideon Levy, do Haaretz, afirmou em 8 de outubro de 2023: “Pensávamos que tínhamos permissão para fazer qualquer coisa, que nunca pagaríamos um preço, tampouco seríamos castigados. Prendemos, matamos, maltratamos, roubamos, protegemos colonos massacradores, disparamos em pessoas inocentes, lhes arrancamos os olhos e destruímos seus rostos, os deportamos, confiscamos suas casas, terras, saqueamos, os sequestramos em suas camas e praticamos uma limpeza étnica…”.

A fúria desses últimos dias foi alimentada com os banhos de sangue dos massacres de Tantura, de Deir Yassim, Dawayima, de Sabra e Chatila, pelos gritos dos 800 mil palestinos expulsos de suas casas. Teve a presença das almas dos que perderam suas vidas nos 31 massacres que acontecem em 1948, dos moradores das 511 aldeias destruídas para construir casas para os colonos sionistas. A fúria tem o sangue que jorrou da cabeça da jornalista Shireen Abu Akleh, da morte dos 230 palestinos civis esse ano, da morte de 2.410 civis em 2014 em Gaza. O mundo ocidental já perdoou Israel. Mas os crimes contra civis não são imperdoáveis? A fúria, ao contrário, do que os sionistas querem, não é algo desumano. É o não-inteligível na gramática do colonialismo. Fúria é aquilo que senti naquele checkpoint em Qalandia e que tive uma vontade imensa de, aos berros, com pulso para o alto, clamar por “Free Palestina!”. Afinal, não gritei, fiquei com medo. Mas, sigo contando o que vi. Eu vi o terror diante dos meus olhos.

*Berenice Bento é professora de sociologia na UnB. Autora, entre outros livros, de Brasil, ano zero: Estado, gênero, violência (Editora da UFBA). [https://amzn.to/3PU5WK1]

Publicado originalmente no site Outras Palavras.

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Eduardo Borges Chico Alencar Milton Pinheiro Daniel Brazil Fábio Konder Comparato Dennis Oliveira Ricardo Fabbrini José Machado Moita Neto Marcos Aurélio da Silva André Singer Osvaldo Coggiola Matheus Silveira de Souza Valerio Arcary Michael Löwy André Márcio Neves Soares Tadeu Valadares Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bruno Fabricio Alcebino da Silva Priscila Figueiredo José Dirceu Luiz Renato Martins Marilena Chauí Samuel Kilsztajn Flávio R. Kothe Walnice Nogueira Galvão Antonio Martins Ricardo Antunes Heraldo Campos Manchetômetro Vanderlei Tenório Antônio Sales Rios Neto Leda Maria Paulani Otaviano Helene Ronald León Núñez Ricardo Musse Ronaldo Tadeu de Souza Lucas Fiaschetti Estevez Francisco de Oliveira Barros Júnior Alexandre Aragão de Albuquerque Chico Whitaker Rafael R. Ioris Lincoln Secco Luciano Nascimento Paulo Martins Tales Ab'Sáber Alexandre de Freitas Barbosa Marcelo Guimarães Lima João Carlos Loebens Elias Jabbour Boaventura de Sousa Santos Bento Prado Jr. Carla Teixeira José Costa Júnior Paulo Capel Narvai Rodrigo de Faria Anselm Jappe Rubens Pinto Lyra Lorenzo Vitral Salem Nasser Mariarosaria Fabris Bernardo Ricupero Leonardo Avritzer Daniel Costa Juarez Guimarães Leonardo Boff João Lanari Bo Jean Pierre Chauvin Benicio Viero Schmidt Gabriel Cohn Armando Boito João Sette Whitaker Ferreira Gilberto Maringoni Vinício Carrilho Martinez Érico Andrade João Adolfo Hansen Gilberto Lopes Marjorie C. Marona Vladimir Safatle Sandra Bitencourt Antonino Infranca Luiz Eduardo Soares Annateresa Fabris Eugênio Bucci Liszt Vieira Afrânio Catani José Micaelson Lacerda Morais Caio Bugiato Marcos Silva Slavoj Žižek Bruno Machado Dênis de Moraes Marilia Pacheco Fiorillo Francisco Pereira de Farias Alysson Leandro Mascaro Gerson Almeida Luiz Werneck Vianna Remy José Fontana Kátia Gerab Baggio Andrés del Río João Feres Júnior Fernão Pessoa Ramos João Paulo Ayub Fonseca Jorge Branco Marcelo Módolo Flávio Aguiar Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luís Fernando Vitagliano Francisco Fernandes Ladeira Renato Dagnino Eleutério F. S. Prado Luiz Roberto Alves Julian Rodrigues Everaldo de Oliveira Andrade João Carlos Salles Leonardo Sacramento Alexandre Juliete Rosa Luiz Bernardo Pericás Claudio Katz Paulo Fernandes Silveira Luis Felipe Miguel Celso Frederico Eliziário Andrade Tarso Genro José Raimundo Trindade Paulo Nogueira Batista Jr Alexandre de Lima Castro Tranjan José Geraldo Couto José Luís Fiori Ari Marcelo Solon Denilson Cordeiro Eugênio Trivinho Eleonora Albano Fernando Nogueira da Costa Luiz Marques Paulo Sérgio Pinheiro Berenice Bento Luiz Carlos Bresser-Pereira Michel Goulart da Silva Daniel Afonso da Silva Celso Favaretto Andrew Korybko Yuri Martins-Fontes Sergio Amadeu da Silveira Atilio A. Boron Mário Maestri Ricardo Abramovay Manuel Domingos Neto Ladislau Dowbor Airton Paschoa Ronald Rocha Igor Felippe Santos Jean Marc Von Der Weid Henry Burnett Jorge Luiz Souto Maior Maria Rita Kehl Thomas Piketty Marcus Ianoni Michael Roberts Carlos Tautz Henri Acselrad

NOVAS PUBLICAÇÕES