Estado teológico miliciano

Imagem: Kushnir
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Por LUÍS FERNANDO VITAGLIANO*

A falta de freios ao avanço religioso sobre o Estado tem levado ao seu sequestro e colocado em risco as liberdades de grupos sociais que são minoritários

O Brasil caminha para se tornar um Estado teológico miliciano. Teológico porque cada vez mais o que fundamenta a sociabilidade geral é a religião. Miliciano porque cria seus próprios mecanismos de construção da ordem que não passam pela ideia de República e cada vez menos pessoas sabem o significado concreto do conceito.

Em geral a religião evangélica se radicaliza nas práticas e discursos (mas não só, o catolicismo também) e, somados, a moral cristã tem tomado as instituições políticas elegendo políticos ligados à pauta religiosa ou apoiando outros atores que vão intensificar os temas de costumes e pautar as decisões do país ao ponto de que é possível que em algum momento possa transformar a frágil representação republicana em teologia política.

Quando se discute os excessos teológicos no Brasil hoje, logo se atribui ao fato do crescimento das religiões pentecostais e neopentecostais. Mas, longe disso, outros elementos devem ser levados em conta para tratar do tema. As raízes do cristianismo político brasileiro estão tão entranhadas na nossa cultura que sequer nos questionamos.

Foram praticamente 400 anos de monarquia; portuguesa e brasileira, onde a perseguição política tinha fundamento religioso: dizimar índios e perseguir a cultura afro-brasileira é a prática, não exceção da nossa história. Perseguir, desconsiderar os direitos e desterritorializar índios foi prática da nossa marcha para oeste; convertê-los ao cristianismo era o limite da nossa prática benevolente.

Portanto, não se trata de reduzir a questão e falar única e exclusivamente do crescimento evangélico no Brasil. Pelo contrário, o evangélico, fiel em si é uma pessoa que lida com seus problemas e agruras do dia a dia. O problema é o sentido da história: antes, a influência da religião na política apresentava uma tendencia de diminuição e de reconhecimento da separação. Em algum momento, entre o final do século XX e, principalmente, início do século XXI, a tendência se inverteu e há uma cobrança maior por parte da manifestação teológica do Estado brasileiro.

Lideranças religiosas que hoje representam um projeto político claramente conservador no Brasil têm agido no sentido atribuir às instituições medidas de foro moral. Sujeitas a essas lideranças que usam do status social e moral para se cacifar, a participação popular e as manifestações de radicalização das massas podem ser vistas mais como consequências a partir das posturas de líderes messiânicos; sintomas das coisas, que como causas de uma radicalização popular – mas esse é um limite que não deve ser ultrapassado, se essa liderança conseguir conquistar apoio popular incondicional, teremos sim mudanças de ordem republicana.

É importante que tenhamos olhar atento para as causas da recente radicalização social e aumento da coalizão em torno do olhar teológico. Essas causas estão mais ligadas a crise social e política ao qual o Brasil esteja imerso. É mais por falta de opção do que por opção ou concordância. As carências sociais são um problema prático que todo fiel está enfrentando e recorrendo ao possível e ao impossível para sobrevier. No geral, a crise de sociabilidade é tão grande que a representação social das Igrejas tem ganhado espaço entre os focos de agregação existentes.

No capitalismo industrial, a organização operaria fez mexer o sistema de representação em favor de um Estado social. As formas de sociabilidade giravam em torno do trabalho fabril. Creches, escolas, sindicatos, clubes etc. se organizavam em torno da disciplina do trabalho na fábrica. Com a automação e a transição para uma sociedade de serviços, as sociabilidades se dispersaram. Até mesmo nos estudos sociológicos vieram teses defendendo o fim da centralidade do trabalho na vida social.

Essas interpretações acertaram o tema, mesmo manipulando a crítica. Obviamente o trabalho nunca perdeu a centralidade social. Os defensores de tamanho absurdo tinham como alvo a crítica aos direitos de trabalhadores e a retirada de proteção social. De certa forma, conseguiram. O trabalho perdeu consistência, foi fragmentado e com isso, também perderam solidez as formas de organização dos trabalhadores e a rede estatal em torno da proteção ao trabalhador e ao trabalho. Como consequência, deixa de existir a socialização que se formava em torno das relações trabalhadoras principalmente organizadas segundo a dinâmica das fábricas.

O mundo agrícola e o mundo fabril colocam as pessoas em um mesmo tempo e lugar trabalhando por dias inteiros e juntos. A sociologia chamou isso de divisão do trabalho social. O mundo contemporâneo flexibilizou espaços e fragmentou a proximidade das pessoas. Outras formas de socialização ganharam espaço. As Igrejas como conhecemos hoje é diferente da Igreja tradicional. O que nos permite entender que as Igrejas evangélicas ganham espaço no Brasil porque oferece mais que simplesmente conforto espiritual. As igrejas evangélicas se preocupam com o bem-estar econômico e social dos seus fiéis e criam redes de apoio social.

O grande mérito dessas Igrejas é recompor a sociabilidade em torno de demandas concretas e da vida prática. Escolas, creches, bazares, indicações de emprego, negócios, namoros, relacionamentos; tudo virou assunto da Igreja. O sagrado e o profano se misturam porque não há mais o lugar separado para a política, para o trabalho e para o culto. O culto é para o espírito como também para o econômico, o amoroso, o político.

A democracia defende a livre manifestação de credos e valores. Porém, um dos seus principais pontos críticos é que se pode confundir a democracia como a exclusão das liberdades de grupos sociais que são minoritários. Para evitar que aconteçam injustiças em nome de valores específicos da maioria é que se garante direitos civis para as minorias. Chamamos de radicais aqueles que não reconhecem os direitos dessas minorias. E nesse ponto parte das elites pastorais evangélicas consideradas radicais tem um projeto político que inibe o direito das minorais.

Esse projeto implica na expansão de poder e dominação que passa pelo assalto ao Estado, elegendo cada vez mais político que representam sua visão de mundo. Conquistando a maioria política, podem confundir a população na medida em que confunde o fato de eleições e votações como sendo o fundamento da democracia. Não é democracia quando a maioria aprova a opressão e o cerceamento das liberdades civis das minorias. Neste caso, viola os direitos fundamentais das minorias (que é o segundo e principal pilar das democracias), disfarçando a democracia através de uma ditadura da maioria.

Para que esse projeto tenha espaço, os radicais cresceram politicamente no Congresso e nos cargos estatais como buscar ajudar fiéis a passar em concursos para o judiciário. Além disso, os acordos e participação em governos e coalizões. Estima-se que em poucos anos 30% da sociedade brasileira seja evangélica, somadas aos católicos, somos o principal país cristão do mundo com mais de 80% da população. Como a Igreja católica é bastante burocratizada, tem menos flexibilidade que evangélicos há diferenças.

As Igrejas neopentecostais fortalecem sua base social com a criação de instituições que prestam serviços ao Estado. É normal que ONGs e OCIPs criadas por Igrejas prestem serviços ao setor público. Creches, escolas, políticas sociais, tudo isso está no radar de instituições evangélicas que, em troca, compartilham seu apoio político a lideranças. Esse mecanismo tem alimentado fortemente a capacidade de controle da base social por parte de mecanismos religiosos e permite que os evangélicos cresçam inclusive entre os fiéis de outras religiões.

No sequestro do Estado se soma outro problema grave: a falta de freios ao avanço religioso sobre o Estado. A direita democrática e parte das esquerdas têm alimentado esse processo, aceito e entrado no jogo sem medir as consequências. Em troca de apoio político e de olho em votos, muitos governos têm sustentado essa prática e contratado com dinheiro público serviços que estão dentro das Igrejas, quando não, pior, estimulado essa prática paga ganhar votos e confiança entre pastores.

Nos EUA, qualquer instituição que queira isenção de impostos tem que guardar distância da disputa eleitoral. Igrejas são instituições de interesse social no Brasil que contam com isenção de tributos e que, por coerência, não poderiam participar ativamente de eleições. Porém, não só participam ativamente como indicam candidatos ou até mesmo pastores se candidatam e ocupam cargos públicos. Quando se elegem ou quando tem votações expressivas, isso aumenta seu valor social que os faz ganhar cada vez mais contratos com os governos que estão de olho nessa base política. Isso é um conflito de interesses enorme que a sociedade não tem discutido e é claramente prevaricação. Um diretor de compliance de qualquer empresa se escandalizaria com tamanho conflito de interesses – no setor público seria ainda mais escandaloso e no Brasil a normatização e o silencio sobre isso são ensurdecedores.

A prevaricação cria a possibilidade nichos sociais dominados por líderes políticos messiânicos travestidos de pastores. Nem todos os pastores entram nesse jogo, mas para separar o criminoso do honesto é preciso que se imponham leis que separem as coisas. Porque o crescimento em escala desse processo já ameaça a democracia.

O fato de lideranças dos vários espectros políticos flertarem com essa prática demonstra que o sistema está fora de controle. Considerar apoio religioso e manter nichos políticos controlados por ONGs ligadas ao esquema de instituições que sequestram o cidadão através da sociabilidade oferecida em Igrejas é um jogo perigoso por parte dos democratas que assim colocam em risco a própria democracia.

Outro ponto que requer atenção nessa disputa por controle territorial é a formação de milícias. Para se contrapor ao poder do tráfico principalmente em comunidades carentes, lideranças religiosas tem se associado às milicias. Ao contrário do tráfico de drogas, as milícias têm buscado negócios nas áreas do seu controle que vão além do uso de drogas e da defesa de ‘valores’ sociais. Isso, somado as igrejas traz elementos de pacificação e apoio popular que se busca em contraste com as comunidades tomadas por tráfico de drogas baseados em bailes funks e violência.

Já existe mais segurança privada no Brasil que segurança pública. Sem contar o fato de que parte dos agentes públicos recorre a bicos privados para complemento de renda. Segundo o fórum nacional de segurança pública, são mais de 600 mil trabalhadores da segurança privada registrados. Somados com os números clandestinos, estima-se que exista mais de 1,1 milhão de pessoas trabalhando como segurança armada no Brasil. Mais que os cerca de 770 mil membros das forças de segurança pública.

Há algum tempo, esses grupos estão criando sinergia entre valores morais e ação repressiva orientada pela visão de mundo teológica de comunidades facilitando a construção de uma ordem excludente. As religiões afro-brasileiras têm sofrido horrores com essa aliança. Muitas vezes expostas a depredações, expulsas ou oprimidas. Assim como aqueles serviços que não pagam as propinas exigidas por grupos que monopolizam serviços as comunidades. Fugir da sociabilidade entre igrejas e milicias nas periferias das grandes cidades é apenas para as classes médias das regiões centrais. Os serviços privados e públicos das periferias já passam pelo crivo de milicianos e pastores. A dúvida é “quando” (e não “se”) vai chegar nas regiões nobres assistidas pelos equipamentos públicos.

Lei e Ordem unidas contra o Estado. Esse é o ponto. Lei teológica e ordem miliciana formam sociabilidade radical ao qual muitas das comunidades brasileiras já estão sujeitas. Os empecilhos à expansão desse processo são as regiões onde ainda há Estado. Onde existe uma saúde pública universalista, uma educação assistida, creches funcionando, residências regularizadas, empregos formais. Para avançar esses grupos tem como projeto transformar suas sociabilidades privadas em interesse público e o neoliberalismo tem facilitado esse caminho na medida em que prega a desregulamentação dos empregos, a ausência do Estado e o fim das funções públicas sociais.

Sem um Estado que permita a sociabilidade e crie condições de convivência para a população, a tendencia é o crescimento desses grupos privados em torno da ideologia religiosa.

Aqui um parêntese é fundamental. Não há nenhuma crítica à caridade ou a assistência que as religiões oferecem aos carentes. Isso existe e não há problemas em existir porque até mesmo cumprem funções sociais importantes. O problema começa onde essas ações passam a querer substituir a ação pública estatal. Amplia-se o problema quando isso tem resultados financeiros consistentes a partir de recursos públicos. E piora tudo quando politicamente os interessados começam a concorrer por cargos públicos e exercê-los. Confundir o trabalho de caridade com votos é um veneno social ao que estamos sujeitos hoje. Mas, não precisa ser assim e temos uma história e muitos exemplos de instituições que não são isso.

Hoje, pastores ligados a milícias, padres que fazem acordo com segurança privada, representantes do judiciário e do governo que defendem valores teológicos em detrimento da laicidade da República ou representantes da segurança pública que agem clandestinamente como milicianos e representantes da moral evangelista estão tornando o processo de distinção entre o público e o privado; entre o laico e o religioso mais difíceis e restringindo o limite entre o que é particular e o que é direito individual.

Por isso, é preciso reverter o jogo. Isso requer ações drásticas e muitas vezes conflituosas. Mas, se não ocorrer, a tendencia é o crescimento do Estado teológico. Os governos, independente da direita ou esquerda, aderiram à lógica dos cultos eleitorais. Aceitaram que pastores representam ativos políticos e tem dado a eles tratamento especial. Assim, não importa quem ganhe as eleições, o sistema está girando e, mesmo quando seus principais representantes não vencem, não há retrocessos.

Ainda é tempo de impedir que se desvirtue o país e se comprometa a democracia. Assim como é preciso manter a região entre os religiosos e a segurança nos agentes públicos. É preciso trabalhar em duas lógicas. Primeiro limitar o poder e a atuação de qualquer instituição que preste serviço público – que realiza ação pública não toma partido. Quem é de partido governa quando eleito.

Segundo: é preciso recolocar a centralidade da sociabilidade pública. A centralidade do trabalho não diz respeito apenas às formas pelas quais ele ocupa espaço central na vida das pessoas. Mas, também é preciso considerar o entorno. Quando temos uma sociedade trabalhando em fábricas. O início da jornada do trabalho e o final, das 8h às 18h, o intervalo etc., deve considerar também a jornada de escolas, creches, clubes, comercio etc. Quando cerca de 30% da força de trabalho é empregada em shoppings, em lojas e no setor de serviços em geral, é preciso considerar que o trabalho aos finais de semana é uma realidade, que a jornada é variada, que os ganhos são variados ao longo do ano e que os horários são cambiantes.

É muito fácil fazer a crítica aos trabalhos de aplicativo. Mas, entender que eles se ajustam a realidade instável dos trabalhadores e a flexibilização da jornada de trabalho é mais fácil que mudar a legislação. Fazer com que os patrões entenderem que a vida se ajusta ao ambiente de trabalho é possível quando se tem apoio e projetos púbicos para isso. Se o governo não entender a flexibilidade do mundo de hoje e não organizar os serviços públicos em torno da nova realidade do trabalho.

Se não provocar mudanças que permitam a colocação e recolocação de trabalhadores no ambiente profissional e se não entendermos que o contingente de desempregado, flexível e sem perspectiva cria um ambiente de instabilidade que não interessa a ninguém, realmente vai ser difícil escapar dos sequestros da vida social por gangues interessadas no nosso patrimônio social.

As Igrejas já entenderam o contexto, seus políticos também. Cabe às esquerdas e aos setores progressistas apresentar propostas que deem conta de sociabilizar a nova realidade, ou a sociabilidade dessa nova realidade será forçada por milicias e ocupada pela visão teológica de mundo.[1]

*Luís Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário.

Nota


[1] agradeço os comentários de Rodrigo Marçura e Marlus Alexandre.


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