Por RICARDO ABRAMOVAY & ALESANDRA MATTE*
As atividades econômicas tendem a ser rastreadas, dada a necessidade de acelerar a luta contra a erosão dos serviços ecossistêmicos dos quais a vida no planeta depende
Rastreamento e certificação marcam de maneira cada vez mais importante os mercados contemporâneos. A alocação dos recursos por meio do sistema de preços não é capaz de sinalizar aos agentes econômicos a urgência de mudar comportamentos que respondem pelos três maiores desafios ecossistêmicos do desenvolvimento sustentável: as mudanças climáticas, a erosão da biodiversidade e as diferentes formas de poluição atmosférica, terrestre e aquática.
O foco do rastreamento e da certificação dos produtos agroalimentares concentrou-se, ao longo do século XX, nas preocupações de natureza sanitária. Embora este foco seja ainda fundamental, o rastreamento dos dias de hoje (e sua comprovação em certificações) vai muito além. As atividades econômicas, no seu conjunto, tendem a ser rastreadas, como consequência da necessidade de acelerar a luta contra a erosão dos serviços ecossistêmicos dos quais a vida no planeta depende.
Esta exigência não se limita à agropecuária. Ela está na raiz dos mais importantes tratados comerciais globais, ela altera a lógica da Organização Mundial do Comércio e tem repercussão decisiva no Acordo Mercosul-União Europeia. Longe de se constituir em modalidade disfarçada de protecionismo ou de barreira não comercial, o rastreamento e a certificação dos produtos da economia estão entre os mais importantes instrumentos para enfrentar a crise climática, a erosão da biodiversidade e as diferentes formas de poluição.
Estes instrumentos envolvem sempre uma mistura de determinações legais, de atuação governamental e de iniciativas vindas tanto das empresas como de organizações da sociedade civil. É cada vez mais frequente que as empresas se organizem no sentido da gestão antecipada da contestabilidade, assinando protocolos e compromissos, tanto com o poder público como com organizações da sociedade civil. É mais que uma questão de marketing ou de imagem.
Existem sistemas de legitimidade que permitem justificar as ações empresariais e cuja ausência amplia de forma extraordinária a incerteza de seus horizontes futuros. Estes sistemas são tanto mais importantes quanto mais a área de atuação das empresas é densa em bens coletivos. Não é por acaso então que a produção de commodities (e não só agropecuárias) é objeto, no mundo todo, desde o início do século XXI de mesas redondas envolvendo empresas, associações empresariais, mas também organizações da sociedade civil e representantes de movimentos sociais. Estas articulações exercem influência sobre diferentes esferas do Estado, tanto legislativas, como judiciárias ou executivas.
Na União Europeia, o Carbon Adjustment Border Mechanism exige que, a partir de 1º/10/2023, os importadores relatem as emissões de gases de efeito estufa (diretas ou indiretas) contidas nos produtos que pretendem vender aos consumidores do bloco. Os produtos visados são cimento, ferro, aço, alumínio, fertilizantes, eletricidade e hidrogênio. São os produtos em que é maior o risco de “leakage” (“vazamento”), ou seja, de ganhos concorrenciais derivados não de eficiência e sim do atraso em introduzir inovações que reduzam as emissões de gases de efeito estufa.
É só a partir de 1º/01/2026, que o importador terá que pagar, caso seu produto seja mais emissor que aquele produzido na União Europeia. Mas é ainda em 2023, que os importadores terão que mobilizar os dispositivos que lhes permitirão rastrear os processos produtivos daquilo que importam.
Outro exemplo de busca de transparência (e que exige rastreamento) como meio de enfrentamento dos problemas socioambientais contemporâneos é a aprovação, por parte do parlamento europeu em abril de 2023 de legislação que impede a importação de produtos vindos de áreas desmatadas a partir de dezembro de 2020: carne bovina, cacau, café, óleo de palma, soja, madeira, carvão, e papel são os produtos visados pela legislação, que também exige que as mercadorias não se apoiem em violação de direitos humanos e especialmente de direitos de povos indígenas.
Os importadores terão que coletar as coordenadas geográficas da terra onde as mercadorias que eles colocam no mercado europeu são produzidas. Além disso, a legislação classifica os países (ou parte deles) como sendo de baixo, médio ou alto risco. Quanto maior o risco, maior será o controle sobre as empresas importadoras.
Embora os Estados Unidos não tenham adotado este tipo de legislação, é grande a pressão (com apoio bipartidário no Senado) para que sigam os passos europeus. Também na Grã-Bretanha o UK Environment Act – Schedule 17 vai na mesma direção. Diferentemente da lei europeia, a britânica e a que se encontra sob exame dos deputados nos EUA só proíbem o desmatamento ilegal.
Nos mercados asiáticos, a China já tem, desde 2019, legislação (Forest Act) que proíbe a importação de madeira derivada de desmatamento. Tudo indica que estas restrições serão ampliadas sob inspiração das legislações norte americana e britânica, ou seja, proibindo a entrada no país de produtos vindos de desmatamento ilegal.
Esta rápida apresentação traz duas conclusões importantes. A primeira é que não são apenas os mercados de nicho, mas, de forma crescente, o conjunto da produção social que será monitorado em sua composição socioambiental. Esta é (e será cada vez mais) uma forma de os próprios mercados incorporarem os custos dos serviços ecossistêmicos que as empresas usam, frequentemente destroem e pelos quais nada pagam.
As análises de ciclo de vida e o uso de tecnologias digitais nesta direção permitem massificar o que, não faz muito tempo, exigia verificações custosas e de âmbito limitado. O blockchain, por exemplo, tem o potencial de estimular o compartilhamento de informações em rede, de forma auditável e vem sendo usado em diferentes segmentos do setor agropecuário, florestal e mineral.
A segunda conclusão é que monitorar o conteúdo material, energético, biótico e as bases sociais do que a economia oferece à sociedade, tem custos que vão recair, de forma incontornável, sobre as empresas. Repudiar estes custos significa perenizar o uso destrutivo de recursos dos quais a própria vida econômica depende.
*Ricardo Abramovay é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP. Autor, entre outros livros, de Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável (Elefante). [https://amzn.to/3QcqWM3]
*Alesandra Matte, zootecnista, é professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (campus Santa Helena).
Publicado originalmente no jornal Valor econômico.
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