Por DENILSON CORDEIRO*
Comentário sobre a peça teatral dirigida por Gerald Thomas
“Aqui nada mais se percebe (…) do verdadeiro ator que, justamente em sua maior atividade, é totalmente aparência e prazer na aparência.” (Friedrich Nietzsche, A origem da tragédia).
A peça Traidor, de Gerald Thomas, com interpretação de Marco Nanini, é uma colcha de retalhos que não se juntam, ou talvez se juntem apenas para o diretor e dramaturgo. E quem sabe, o que é menos provável, também para o ator. Não há, propriamente, enredo, mas uma sequência à primeira vista caótica de lembranças, de comentários, de críticas, de trechos de comerciais, de desabafos do personagem, cuja matriz – conforme fica sugerido – são partes da biografia do próprio autor do texto. A vida em Nova Iorque e a espera de conseguir um visto permanente, a passagem por um hotel em Punta Cana, a condição aflitiva da vida no Brasil etc. formam um mosaico de persistente autorreferência.
O cenário acompanha o roteiro: um amontoado desordenado de ruínas, de objetos, um boneco gigante semelhando um político amarrado, restos de colunas de concreto, adereços e uma poltrona – espécie de trono improvisado, de onde fala sentado o ator durante boa parte da peça. Pelo meio da peça, desce do teto um conjunto de trapos e cacos no qual se destacam telhas de amianto ou de metal, sem nenhum sentido ou participação no amálgama narrativo.
O figurino é de gosto duvidoso, típico do balaio de gatos que se convencionou chamar de “pós-moderno”. Há quatro atores coadjuvantes que ficam transitando pelo palco, ora pulando, ora se arrastando, compondo a cena mais como parte do cenário ou, no máximo, como assistentes do ator para troca de roupas, água, descanso etc. As repetições de falas do protagonista e de gestos dos coadjuvantes cansam e entediam. Destacam-se positivamente, contudo, a sonoplastia e a iluminação, que formam um belo e, por isso, contrastante espetáculo à parte.
Trata-se, visivelmente, de superprodução, haja vista, como amostra e sintoma, o luxuoso programa da peça, em papel couché, quatro cores, projeto e produção gráficos primorosos e fotografias profissionais, aparato que pouquíssimas produções teatrais atualmente têm podido dispor, até pelas questões ambientais. A única justificativa para a peça ter o tipo de apelo que tem é o fato de juntar ator e diretor famosos, ambos em nítido fim de carreira. Sem isso, a peça seria natimorta, porque a árvore, se um dia foi frutífera, secou.
Marco Nanini foi rebaixado a uma personagem patética, caricata e vulgar tomada como porta-voz da biografia de Gerald Thomas – ou seja, narrador da fábula de um autoproclamado enfant terrible, que nem mais brasileiro gostaria de ser, tanto vive pelo mundo em perambulações e aventuras farsescas. A composição pretende incluir elementos programaticamente desconexos, como cenas de comerciais de linguiça, o deleite de ouvir música clássica, de estudar A origem da tragédia, de Nietzsche, o entusiasmo (falso) de participar de uma trama policial, de ter uma história trágica, de sofrer com uma sensibilidade sempre à flor da pele. Não é um texto que permite ao ator mostrar o que pode e o que sabe, porque o ator foi aproveitado apenas como acidente de luxo, consumido publicamente como mercadoria espetacular. Em suma, uma perversa história para boi dormir.
Fiquei matutando um momento sobre o que poderia haver de particularmente brasileiro na perspectiva de concepção e de montagem da peça. Nada fácil distinguir. Supondo que dos escombros da narrativa pudéssemos entrever a rememoração negativa (para usar um eufemismo, porque prevalecem maledicências, reclamações e praguejamentos) de um ator aposentado. Podemos identificar a trama com uma glosa do tema literário do que poderíamos chamar de “balanço de vida”.
Tema que pauta, voluntária ou involuntariamente, qualquer condição de vida que se encaminha para o fim, portanto, de uso relativamente disseminado nas elaborações reflexivas e discursivas as mais comuns e, por isso, disponível a qualquer pessoa. Como candidata a obra de arte, seria razoável esperar algo, ao menos, mais criativo, diferente, e, por isso mesmo, com alguma dose reservada de surpresa e de convite à sensibilidade do público. Contudo, para além da carga simbólica da celebridade que antecede o ator e o diretor, o que acompanhamos é uma sequência de lugares-comuns, no sentido contemporâneo (pós-moderno?) de trivialidades ou, pior, frivolidades.
Da experiência de ter vivido em Nova Iorque, o destaque ficou com a aflição de conseguir o visto, um tanto elementar se nos colocarmos, como brasileiros, no lugar do narrador. Nenhuma novidade, portanto. Da experiência de pesquisa sobre o envolvimento norte-americano com a ditatura no Brasil, nada além da batida (e verdadeira) tese de que foi uma parceria. Da experiência de uma vida de atuação, resulta a constatação banal de alguém que se considera por isso um poço de sensibilidade.
Da experiência de leitura de Nietzsche destaca-se um comentário típico de neófito: um nome difícil de pronunciar ou soletrar. Nada sobre o que haveria de particularmente nova-iorquino na cultura norte-americana – além do crash da Bolsa, em 1929, citado na peça –, por exemplo. Nada do que poderia conter de descoberta sobre a pesquisa em arquivos, no estudo da história, tampouco sobre a relação entre representação teatral e a representação social cotidiana.
Nem uma migalha sobre decorrências do estudo sobre a origem da tragédia na modificação do modo de compreender o trabalho do ator ou das encenações. Esse tipo de tratamento supostamente original que redunda em clichês é talvez um dos traços do que emana de uma condição morna de vida e de reflexão, que no Brasil se aproxima do gosto médio da classe média pretensamente letrada e de suas adjacências.
Não seria preciso lembrar que há inúmeras e notáveis peças de teatro, mas também romances, poemas e narrativas, que tomam e desenvolvem esse tema e essa condição de balanço de uma vida e que poderiam servir de orientação e inspiração ao autor.
A emulação é recurso de quem, sensato e ciente da quimera da novidade imediata e dos limites enunciativos de qualquer presente, convoca as referências tradicionais para instruir-se e evitar o risco de “reinventar a roda”, apostando temerariamente no acesso sem mediações a uma originalidade íntima e autêntica. Inclusive e talvez com mais razão se o projeto for conceber intervenção e vanguarda, porque sem conhecer aquilo ao que se opõe, o efeito redunda, quase sempre, em platitudes e, não raro, em nonsenses. Não haveria nenhum Shakespeare ou Beckett se eles tivessem se considerado, antes de tudo, “gênios” independentemente de qualquer tradição.
Se, pelo avesso, na verdade a peça pretendeu ser um manifesto estético, uma renovação da arte do palco, e isso implicou uma fórmula tão ousada e disruptiva que não seria possível compreendê-la sem a erudição suficiente, então, novamente, como apresentação para público quase irrestrito, além, claro, da censura à presença de crianças, a decorrência seria um espetáculo-código para iniciados, o que exigiria mais rigorosos critérios de seleção na composição da plateia, na definição dos apelos publicitários e, portanto, de algo da própria natureza do teatro.
Se pretendeu afrontar o gosto médio, não conceder à preferência suspeita de anônimos e pedestres, não abrir mão de uma insuspeitada beleza esotérica, acabou afrontando a quase todos, agradando, quando muito, a si próprio (o autor, no caso) e neutralizando qualquer chance de estesia, com exceção daquelas ligadas ao desconforto, ao enfado e à recusa.
Outra hipótese sobre a pergunta acima: sendo o bovarismo “o poder conferido ao homem de conceber-se diferente do que é”, como escreve Jules de Gaultier, citado por Maria Rita Kehl em Bovarismo brasileiro, poderíamos, para o caso em pauta, lembrar que consta no extenso catálogo nacional das nossas peculiares formações imaginárias mais esse traço, um desejo recorrente, ao mesmo tempo que vamos dando conta da tragédia social que nos caracteriza como sociedade, de sermos outros, diferentes, mas nem tanto, de negarmos sem recusar a fonte de sustentação escravocrata dos estilos elevados de vida, dos círculos restritos de convivência social, da sociabilidade ilustrada das requintadas salas de cultura, de poder dar livre curso aos projetos e desejos de ser um habitante do mundo, de não conhecer fronteiras.
Não haveria um sutil piscar de olhos entre pares, para pouquíssimos, portanto, gente de outra extração que se reconhece, e em nada, praticamente, parecidos ao brasileiro vulgar, de uma nação sofisticada e cosmopolita, no andamento aleatório e hermético do qual se revestiu o desfile de cacos da peça?
Seja como for, tudo resulta em um desencontrado e vazio experimentalismo, apelos de gosto duvidoso a histrionices, e a uma linguagem “desconstruída”, porque pretensamente descolada, anticlássica, mal comportada e bem pouco comunicativa, talvez porque transmitir alguma mensagem seja mesmo algo a ser recusado a priori como valor estético vanguardista na concepção teatral do dono da peça. Seja o que for, o efeito poderia ser nulo, mas o pior é que aborrece, entedia e engana como representação teatral.
E se trata de uma peça de apenas 50 minutos, que mais pareceram 50 horas. Foi uma das piores peças a que já assisti. O sentido do título pode significar, por isso, o sentimento de quem acreditou na promessa, foi ao teatro à espera de alguma instrução, comoção ou divertimento e, ao final, constatou que não havia nada lá.[1]
*Denilson Cordeiro é professor de Filosofia no Departamento de Ciências Exatas e da Terra, da Unifesp, campus Diadema.
Nota
[1] Agradeço a Marian Dias e a Joaci Pereira Furtado pela interlocução e colaboração de sempre.
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