O Brasil é pardo?

Imagem: Alfredo Jaar
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Por MÁRIO MAESTRI*

A camisa de força racial criada pelo IBGE

Márcio Pochmann não gosta de branco? As aparências recentes podiam apontar nesta direção, pra lá de esdrúxula, já que o economista citado é branco, dos translúcidos, como tantos rio-grandenses de regiões de imigração europeia. Sua família é de Venâncio Aires, onde ele nasceu, região de raiz colonial-alemã. Minha pergunta seria, portanto, um mero paradoxo retórico, se nos mantivermos na superfície dos fatos materializados pela presente ação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), sob a presidência de Márcio Pochmann, capa preta lulista, candidato petista fracassado em 2012, 2016, 2018.

Na ocasião da entronização do petista de carteirinha, pelo presidente Lula da Silva, houve, aqui e ali, reclamações sobre previsíveis tropeços de isenção, devido à sua direção desse importante órgão estatal, que deveria estar acima de todos os sentimentos e humores pessoais e de grupos e, sobretudo, de manipulações político-ideológicos.

As críticas e os receios devido a uma presidência de Márcio Pochmann do IBGE foram propostos como de direita, já que apresentados sobretudo por jornalistas e acadêmicos de direita, e, assim, afastados sem discussão. Em verdade, a grande maioria de nossa esquerda faz que não ouve, não fala, não vê tudo que vem de Brasília, já que o grande perigo a ser combatido, propõe, seguiria sendo o Chupa-cabras. Mesmo que, no geral, tudo de essencial siga, na presente gestão, como na anterior, em forma mais civilizada.

Noblesse oblige

Há bem mais de dois mil anos, Júlio César teria mandado passear sua esposa indesejada, devido a fuxicos infundados, fundindo a famosa frase, “à mulher de César não basta ser honesta, deve também parecer honesta”. Um aforismo machista não totalmente pertinente para a questão que abordo, já que, como veremos, o presidente do IBGE faltou com o pudor de obrigação, na forma e no conteúdo.

Mas vamos ao que interessa. Na sexta-feira, 22 de dezembro, Márcio Pochmann apresentou dados relativos à chamada composição racial do Brasil, auferidos pelo IBGE, literalmente festejando um proposto recuo, em relação a 2010, dos brasileiros que se declaram brancos [43,5%], com um consequente aumento dos auto-proclamados pardos [45,3%] e negros [10,2%]. Hoje, como já é habitual nos círculos identitários, a Geni da vez é a população brasileira branca, confundindo-se nela, intencionalmente, rico e pobres, explorados e exploradores.

O caráter festivo do comunicado não podia ter sido mais claro. Ele foi feito, segundo a Folha de S. Paulo, em 23 de dezembro de 2023, “na sede do bloco afro Olodum, em Salvador, capital do estado com maior população preta do país”. Também estava presente no evento o presidente da Fundação Palmares.

Mi son talian gràssie a Dio

Imaginem, ínclitos leitores, o barraco que seria armado pelo identitarismo negro se a apresentação tivesse sido feita, festejando a importância da população dita branca, em Antônio Prado, a cidade de mais fortes raízes itálicas do Brasil, com a presença de identitários vênetos agitando a vergonhosa consigna racista “Mi son talian gràssie a Dio”. Quem fizesse este festejo seria acusado de supremacista branco, possivelmente com razão. [1999, CARBONI, Florence & MAESTRI, 1999.]

Portanto, não se trataria apenas do fato que o presidente do IBGE não gostasse de branco. O que, como vimos, não é o caso. Mas da flexão da instituição, sob sua direção, em favor do identitarismo negro, iniciativa político-ideológica, do imperialismo e do grande capital, na procura da construção de um Brasil de movimento social e político ainda mais derreado do que o atual. Orientação hoje abraçada fortemente pela administração lulista.

Iniciativa de imenso sucesso, avançada através da proposta de “racialização” da nossa população, ou seja, de negação das identidades de classe em favor de, no caso, identidades raciais artificiais. Através da proposta de luta racial em vez do confronto social. Militantismo que exige, apenas, políticas focalizadas, de pouco ou nenhum custo para o Estado, em favor de pequenos setores de privilegiados. Abandonando a grande população explorada à sua sorte.

Eu sou meu programa, eu sou minha luta

Isso, enquanto a grande massa da população marginalizada, onde a comunidade negra está super-representada, em relação à sua dimensão demográfica, segue a ver, na praia, a festa realizada nos conveses dos navios que passam ao longo da costa, desde a dita Descoberta. Pedem-se algumas cotas reservadas nas universidades, alguns empregos públicos cativos, enquanto se silencia sobre realidades sociais gritantes, com a dos mais de dez milhões de jovens “entre 15 e 29 anos que não estudam e não trabalham”. (Extra Classe, 11/12/2023.) Negros, em boa parte!

Folga dizer que o festerê identitário do IBGE foi anunciado com enorme destaque, pela Folha de S. Paulo, como proposto, sempre na vanguarda da defesa do identitarismo negro, no viés político-ideológico do Partido Democrata ianque. Uma intoxicação político-ideológica midiática que se repete, com amplo espaço, edição após edição, há anos. Para não falar da ação, no mesmo sentido, da Rede Globo, do Estadão, da CNN, das grandes multinacionais e por aí vai.

A flexão político-ideológica identitária e pró-petista do IBGE não é coisa da atual gestão lulista. Ela apenas tende a ser mais despudorada, com o crescente viés liberal da quinta administração petista, que sequer acena farsescamente aos trabalhadores e assalariados como no passado. O abandono da passada demagogia populista é hoje substituída, ao igual que nos EUA pelo Partido Democrata, por políticas identitárias, carnavalizadas na posse presidencial, na já célebre “subida da rampa”.

Nação negra

A passada performance identitária negra do IBGE procura sobretudo soterrar algumas verdades incontornáveis dolorosas às propostas de racialização da sociedade brasileira. Por um lado, o cardápio de três grandes blocos raciais, entre os quais os recenseados são obrigados a optar – branco, pardo, negro –, é escassamente funcional para avaliações científicas. E, por outro, o resultado a que se tem chegado, sempre, desmente a rústica agitação identitária do Brasil como a maior nação negra fora da África e a segunda maior do mundo. E que o Brasil seja um país majoritariamente negro. Uma outra sandice identitária aplaudida pela grande mídia, pelos atuais órgãos estatais, pela Academia e, comumente, pela imensa maioria da proposta esquerda brasileiro.

Primeiro, definir-se “pardo” diz pouco de preciso. Enormes facções da população que se propõe parda se confundem, segundo a uma maior ou menor intensidade da pele parda, com a população branca ou negra, sobretudo no caso de uma posição sócio-econômica mais ou menos positiva ou negativa. E pardo não descreve o mesmo fenômeno através do Brasil.

E, sobretudo, pardo pode expressar um enorme e historicamente muito rico feixe de mestiçagem, importante para uma compreensão melhor da formação de nossa nacionalidade. Pardos podem descender da mestiçagem de brancos e índios – extremamente forte em estados do Norte; de brancos, índios e negros; de negros e índios e por aí vai. A classificação do IBGE serve apenas para descrever quem não se sente branco como giz ou fortemente preto!

Sem cocar na cabeça

E, para complicar tudo isso, uma importante parcela da população parda é constituída de descendentes de povos nativos não miscigenados com brancos e pretos, mas já plenamente aculturados, alguns já sem consciência de suas raízes. Essa população não tem reconhecida sua origem e é lançada no limbo da população dita “parda”. Como vão as coisas, para ser acreditado como descendente das populações nativas, tem que portar um cocar na cabeça! Certamente o Brasil tem uma população de raízes autóctones muito maior do que a que se reconhece como índio!

Sobretudo, a autodefinição da população, mesmo no contexto da camisa de força racial criada pelo IBGE, coloca os dados reais, ainda que muito gerais, sobre a composição étnica do Brasil. E nessa aferição, apenas relativamente democrática, a população negra, que se reconhece como tal, – ou seja, com uma forte afro-ascendência –, é de pouco mais de dez por cento, distribuída em forma irregular através do Brasil. Entretanto, é crível que, devido ao estigma racista, haja uma subnotificação da população negra.

Um dado que aponta, igualmente, para um forte impulso histórico inter-racial no Brasil. Ou seja, que, se o racismo anti-negro é uma determinação cultural muito forte no Brasil, subsiste ao lado e contra ele, uma forte cultura antirracista, que tem permitido, no passado e no presente, contatos e trocas sistemáticas entre brancos, negros, estrangeiros etc. que resultariam em um crescimento da população dita “parda”.

Não há, portanto, qualquer base científica para a proposta ideológica do identitarismo do Brasil ter a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta. E que o Brasil seja majoritariamente negro. Somar arbitrariamente negros e pardos, de todas as pelagens, ou seja, todos os não-brancos reluzentes, para defini-los como negros, é uma operação racialista rejeitada pela imensa maioria da população brasileira, devido a sua falsidade oportunista.

Os de baixo, sempre abaixo

Dois dias antes do evento do IBGE, a Folha de S. Paulo noticiou, em um sentido governista, que o salário mínimo a partir de 1º de maio de 2024, será de 1.412,00 reais. Para a alegria do pequeno, medio e grande capital, mantem-se sem modificação a escravidão assalariada de uma enorme parcela dos trabalhadores brasileiros. O dito aumento embutido neste valor liliputiano é parte do programa de revalorização salarial lulista e será menor do que previsto há alguns meses.

O mesmo Lula da Silva que mantém milhões de trabalhadores atados ao libambo de um salário mínimo escorchante, festejou, há poucas semanas, com os patrões, que, em 2024, muitos feriados cairão nos fins de semana, garantindo mais trabalho e menos festa para a escravaria negra, parda e branca. Imaginem se Jair Bolsonaro tivesse dito o mesmo! [Zero Hora, 11/11/2023.]

Duas considerações estatísticas, para concluir. Como proposto, os trabalhadores negros e as trabalhadoras negras, proporcionalmente, encontram-se super-representados entre os que ganham um e, não raro, menos que um salário mínimo. Entretanto, quantitativamente, há um número muito superior de trabalhadores brancos e brancas obrigados a viver com os mesmos salários escorchantes. Numa ótica racial, quantitativamente, há mais trabalhadores brancos explorados do que negros no Brasil.

Não sei se esses miseráveis brancos e brancas também fazem parte da atualmente tão malhada “branquitude”, acusada pelo identitarismo negro como responsável por todos os males do Brasil. Acusações que lançam, radicais, enquanto criam, obediente, uma cortina de fumaça sobre a responsabilidade dos grandes proprietários nacionais e internacionais sobre a opressão no Brasil, de negros, pardos e brancos, folga dizer.

Seria uma escolha coerente e consequente com o local do passado anúncio pelo IBGE, se, no próximo 1º de Maio, após Lula da Silva bater o martelo, a instituição pública e seu presidente festejem o valor do novo salário mínimo no Cemitério da Vila Formosa. Segundo parece, ele o segundo maior do mundo.

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).

Referência


CARBONI, Florence. & MAESTRI, Mário. Mi son talian, grassie a Dio! Globalização, nacionalidade, identidade étnica e irredentismo lingüístico na Região Colonial Italiano do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EdUPF, 1999.


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