Marx ou Jefferson?

Imagem: George Grosz
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DYLAN RILEY*

No entendimento de Du Bois, o fundamento social da democracia não se encontra em uma estrutura de vilarejo pré-capitalista com propriedade coletiva da terra, mas em um estrato de pequenos proprietários independentes

A relação de W. E. B. Du Bois com o marxismo tornou-se o foco de um debate considerável na sociologia estadunidense; o que está em jogo são questões ao mesmo tempo intelectuais e cripto-políticas. Alguns querem inscrever Du Bois no rol da “teoria interseccional”, uma noção que sustenta que tudo tem exatamente três causas (raça, classe e gênero), ideia de certa forma análoga ao jeito que weberianos são dogmaticamente apegados a um conjunto fixo de “fatores” (ideológicos, econômicos, militares, políticos).

Outros querem incorporá-lo à tradição do marxismo ocidental e seu problema característico, a revolução fracassada. Em termos gerais, o primeiro grupo tende a enfatizar os primeiros escritos de Du Bois, relativizando, desse modo, a influência do marxismo, enquanto o segundo grupo foca no seu trabalho posterior, com suas críticas ao capitalismo e imperialismo e as reflexões sobre o experimento soviético.

Mas a obra prima de Du Bois, A reconstrução negra na América, não cabe em nenhuma dessas interpretações. O conceito de “interseccionalidade” não aparece em lugar algum, e não há nenhuma evidência que Du Bois pensava nesses termos. Assim como o proletariado de Du Bois, ou ao menos sua parte política mais importante, também não é a classe trabalhadora industrial; é, na verdade, o fazendeiro familiar, tanto no Oeste quanto no Sul, negro e branco.

Consequentemente, seu ideal político era uma “democracia agrária”. Ele às vezes se refere, de maneira um tanto enganosa, àqueles que apoiam esse programa como “agricultores camponeses” ou “proprietários camponeses”, o que poderia levar alguém a pensar que ele está mais próximo do “populismo” no sentido russo do que do marxismo. Mas essa também seria uma leitura equivocada, já que, no entendimento de Du Bois, o fundamento social da democracia não se encontra em uma estrutura de vilarejo pré-capitalista com propriedade coletiva da terra, mas em um estrato de pequenos proprietários independentes (que falhou completamente em aparecer no Sul após a Guerra Civil, devido à feroz resistência da plantocracia, o que produziu a figura anfíbia do arrendatário).

Em contraste a Du Bois, a maior parte dos marxistas europeus tem sido cautelosos em defender a redistribuição de grandes propriedades rurais, por conta das consequências políticas e econômicas de se estabelecer um campesinato de pequenos proprietários. A divisão de terras pode ser politicamente libertadora e economicamente regressiva, como a Revolução Francesa demonstrou com clareza. Lembremos também que A questão meridional de Antonio Gramsci, texto que se assemelha à Reconstrução negra, foi parcialmente escrito como uma defesa contra a acusação de que o nascente Partido Comunista italiano exigia o desmembramento dos latifúndios do sul.

Pode ser que, no final, a melhor maneira de compreender Du Bois não seja como um teorista interseccional avant la lettre e nem como um marxista, mas como um democrata radical e consistente. Seu sujeito político ideal era a família fazendeira independente, capaz de, em alguma medida, se retirar do mercado, ou ao menos participar dele em termos favoráveis e independentes.

Nisso Du Bois mostra como é um pensador profundamente americano, com uma crítica ao capitalismo que é mais republicana do que socialista. Porque a preocupação de Du Bois não era o fracasso de uma revolução socialista, mas a oportunidade perdida de uma Arcádia jeffersoniana.

*Dylan Riley é professor de sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Autor, entre outros livros, de Microverses: observations from a shattered present (Verso).

Tradução: Julio Tude d’Avila

Publicado originalmente na New Left Review.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O negacionismo ambiental e a inundação de Porto Alegreporto alegre aeroporto alagado 14/05/2024 Por CARLOS ATÍLIO TODESCHINI: Porto Alegre tem o melhor sistema de proteção contra cheias do Brasil. É considerado um “minissistema holandês”. Por que esse sistema falhou em sua função de evitar que a cidade fosse alagada?
  • A mão de OzaJoao_Carlos_Salles 14/05/2024 Por JOÃO CARLOS SALLES: O dever do Estado brasileiro e a universidade contratada
  • A universidade operacionalMarilena Chauí 2 13/05/2024 Por MARILENA CHAUI: A universidade operacional, em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo
  • Pensar após GazaVladimir Safatle 08/05/2024 Por VLADIMIR SAFATLE: Desumanização, trauma e a filosofia como freio de emergência
  • Por que estamos em greve nas Universidades federais?Gatinho 09/05/2024 Por GRAÇA DRUCK & LUIZ FILGUEIRAS: A greve também busca disputar os fundos públicos com o capital financeiro e forçar o governo a se desvencilhar da tutela desse mesmo capital e de grupos políticos de direita
  • Dias perfeitos – o peso do ordináriodias perfeitos 2 07/05/2024 Por ALEX ROSA COSTA: “Dias perfeitos” expõe não as fissuras de pequenas belezas cotidianas, mas a rotina como forma de proteção contra o inesperado, o encontro, o outro, a reflexão
  • Edward W. Said – crítico literário e intelectual públicowalnice 10/05/2024 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Os trabalhos de Edward W. Said alçam-no à posição de um dos mais influentes pensadores das implicações políticas da cultura em nosso tempo
  • Suicídios de policiais em São Paulosombra 9 12/05/2024 Por THIAGO BLOSS DE ARAÚJO: A indiferença de Tarcísio de Freitas com as dezenas de mortes resultantes das operações policiais se amplia para uma indiferença com as mortes dos próprios policiais por suicídio
  • A Universidade funcionalistachave 11/05/2024 Por JEAN PIERRE CHAUVIN: O contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios
  • Um ensaio sobre a libertaçãoWolfang leo maar 11/05/2024 Por WOLFGANG LEO MAAR: Prefácio à edição brasileira do livro recém-editado de Herbert Marcuse

AUTORES

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES