Fórum Social Mundial – morte e ressurreição?

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LISZT VIEIRA*

O Fórum Social Mundial tem pela frente um espaço a ocupar, batalhas a serem travadas, com agendas atualizadas, e não mais apenas um fórum que recusa a ação política em nome do debate

1.

O Fórum Social Mundial (FSM) nasceu como uma iniciativa para se contrapor ao Fórum Econômico de Davos, na Suíça, que reúne governantes e empresários, representantes da elite dominante no mundo e seu catecismo neoliberal. A primeira reunião do Fórum Social Mundial foi realizada em Porto Alegre, no ano de 2001, e contou com a participação de ONGs e movimentos sociais de várias partes do mundo, num total de 20 mil pessoas, de 117 países.

Depois do notável sucesso das reuniões em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial começou a sofrer um processo de esvaziamento. As reuniões posteriores do Fórum Social Mundial, realizadas em diversos países, não tiveram o mesmo sucesso, e sua principal palavra de ordem “Um outro mundo é possível” começou a se enfraquecer, e a nova categoria política surgida nas reuniões iniciais do Fórum Social Mundial, o “altermondismo”, começou a perder força.

O excelente artigo de Mario Osava, publicado no portal Fórum 21, sob o título “Destacada agenda da diversidade, o Fórum Social Mundial busca se revitalizar” mostra os locais e datas das reuniões do Fórum Social Mundial, e analisa seu processo de esvaziamento e a tentativa atual de revitalização.

2.

Gostaria aqui de discutir dois fatores que, a meu ver, ajudam a explicar o processo de esvaziamento do Fórum Social Mundial, que guarda certa semelhança com o esvaziamento sofrido pelos partidos políticos junto à população em geral. Em primeiro lugar, já houve quem afirmasse que o Fórum Social Mundial não atualizou sua agenda, ficou preso a uma agenda tradicional da esquerda que não entusiasma a juventude e perdeu apoio na classe trabalhadora. Um bom exemplo é a agenda identitária que surgiu de forma isolada, isto é, a defesa dos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos povos indígenas, não se articulou num projeto que unificasse essas legítimas lutas por direitos num programa político.

Pior ainda, muitos setores da esquerda rejeitaram essas lutas porque desviariam o foco da luta de classes, e com isso se isolaram das lutas concretas do movimento feminista, negro, homossexual e indígenas. Num país de origem escravocrata, paternalista, machista, colonial, rejeitar essas lutas em nome de um dogma político só poderia mesmo levar à perda de apoio sofrida pelos partidos e entidades. Com isso, as lutas chamadas pejorativamente de “identitárias” permaneceram isoladas entre si e afastadas das lideranças políticas tradicionais, sejam partidárias ou de entidades.

Outro exemplo é a recusa em priorizar a questão ecológica como fundamental numa agenda política para o século XXI.  A impressão é que as lideranças políticas de partidos e entidades – com exceções, é claro – engoliram a questão ambiental de má vontade, sem articular com o núcleo central de suas preocupações políticas. O conceito de sustentabilidade traz em si uma dimensão política, social, econômica e cultural, além da dimensão ambiental, mas o termo sustentabilidade, quando usado, é geralmente utilizado apenas como enfeite retórico.

O segundo fator que explicaria o esvaziamento do Fórum Social Mundial diz respeito a uma decisão de seus fundadores que definiram o caráter não decisório do Fórum. As decisões caberiam aos grupos, partidos e movimentos participantes do Fórum Social Mundial, mas sua direção não deveria tomar nenhuma decisão. Isso teve a grande vantagem de evitar luta interna e eventuais dissidências, mas, a médio e longo prazo, contribuiu para o esvaziamento do Fórum Social Mundial.

Uma entidade que abre espaço para discussões, mas não decide nada, perde atração e não mobiliza organizações e movimentos que, além das discussões, querem agir, unindo teoria à prática. E agir em função das prioridades e metas que escolheram, nem sempre priorizadas pela direção do Fórum Social Mundial. Isso exige um trabalho constante e necessário de costura política.

Na agenda “altermondista” internacional, um bom exemplo é a denúncia do tamanho do gasto militar no mundo em 2023, o maior desde a Segunda Guerra Mundial. Os EUA, sozinhos, foram responsáveis por 41% de toda a despesa militar mundial. A Rússia gastou um terço do seu orçamento com gastos de defesa (G1, 15/2/2024). E o Relógio do Juízo Final, criado para alertar sobre a destruição da humanidade por uma guerra nuclear, passou de 7 minutos para meia noite, quando foi criado, para os atuais 90 segundos para meia noite, que seria o cataclisma. Mas esses perigos são vistos como algo distante, assim como o risco de destruição da humanidade pela devastação dos recursos naturais e pelas mudanças climáticas que há décadas vêm sendo denunciadas pelos cientistas e ambientalistas de todo o mundo.

O novo encontro do Fórum Social Mundial em Katmandu, no Nepal, de 15 a 19/2/2024, pretende retomar e renovar a energia que no passado moveu os altermondistas no sentido de articular internacionalmente um projeto político baseado na esperança de que “outro mundo é possível”.

Com o enfraquecimento, em muitos países, do neoliberalismo, cujo fracasso não pode mais ser escamoteado, e com muitos Estados debilitados por décadas de ofensiva neoliberal, abre-se espaço para uma atuação mais enérgica e efetiva da sociedade civil, empunhando suas antigas bandeiras de cidadania mundial. Um exemplo importante foi a mobilização, em todo o mundo, da sociedade civil contra o genocídio dos palestinos pelo Governo de Israel.

O Fórum Social Mundial tem pela frente um espaço a ocupar, batalhas a serem travadas, combates que requerem lideranças dinâmicas, com agendas atualizadas, e não mais apenas um fórum que recusa a ação política em nome do debate.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES