Por FERNANDO ROSAS*
A plena realização das potencialidades deste novo regime de acumulação baseado na financeirização e na plataformização da produção exige uma reconfiguração do social e do político
A prolongada crise do capitalismo neoliberal enquanto mudança estratégica das formas económicas, políticas e ideológicas do processo de acumulação deixou um rasto de destruição global: o agravamento das desigualdades, o alastramento da pobreza, o desastre ambiental, a guerra e a nova corrida aos armamentos, o declínio das democracias, a insegurança e o medo feitos política num tempo sem política como razão estratégica. Um presentismo conformista difuso que digere e normaliza o processo de regressão em curso e é diligentemente fabricado pelas novas máquinas de formatação do senso comum.
E, no entanto, o capitalismo neoliberal já não consegue iludir o seu fracasso como tentativa de restaurar a declinante rentabilidade do capital desde finais dos anos 70 do século passado. As suas soluções, pelo contrário, parecem criar as condições para um desastre maior. Como assinalava Daniel Bensaïd, a crise presente é, além do mais, “uma crise das soluções imaginadas para superar as crises passadas”1. Convém assim começar por situar o capitalismo neoliberal na história recente da evolução do modo de produção capitalista.
Os “trinta anos de ouro”
A derrota do nazifascismo na II Guerra Mundial pôs termo à “época dos fascismos”. E o pós II Guerra Mundial, a partir dos finais dos anos 40 de século XX na Europa, deu lugar a um novo ciclo de desenvolvimento e expansão do capitalismo, os “trinta gloriosos”, impulsionado por uma rápida acumulação, elevadas taxas de lucro, aumento do produto e altos níveis de investimento tanto no plano social como nas inovações tecnológicas do pós-guerra (o automóvel, os eletrodomésticos, as novas indústrias químicas). Um boom econômico sustentado pelo consumo de massas, pelo pleno emprego e pela promoção da investigação e da inovação tecnológica impulsionados pela corrida ao armamento no contexto da Guerra Fria.
O capitalismo do pós-guerra vai assim criar um inédito Estado Social assentado em três pilares fundamentais.2 (a) prestações sociais e serviços públicos oferecidos numa lógica universal por impostos progressivos; (b) política económica de pleno emprego; (c) direitos trabalhistas tendentes a minorar as assimetrias de poder entre as classes, operando o conjunto destas medidas uma reconfiguração e condicionamento das regras do mercado. Foi a época da política econômica keynesiana, num contexto de pós-guerra em que qualquer veleidade de reconstrução espontânea do capitalismo era impensável. Na realidade, ela teve de se apoiar, nos países economicamente mais avançados, em três ordens de fatores:
(i) Estados e governos dotados de relevante capacidade política de intervenção e regulação, designadamente no controlo dos movimentos de capitais e do sistema financeiro em geral; (ii) governança assentada na concertação política e social, marcada pelo regresso ao centro da política de partidos e sindicatos sob influência da democracia-cristã e social-democracia, mas sob forte pressão e influência dos partidos e sindicatos a que Enzo Traverso chamou do “comunismo socialdemocrata”.3 (iii) Financiamento externo maciço norte-americano através do Plano Marshall da OECE, para recompor as principais economias europeias saídas em destroços da guerra e conjurar a ameaça da revolução social e do comunismo.
É importante salientar que os “30 anos de ouro” do capitalismo foram possibilitados e decisivamente condicionados por circunstâncias históricas pesadas, mas conjunturais, que convém referir:
(1) Foi necessária uma guerra mundial para por termo à Grande Depressão iniciada em 1929, a extensão da reconstrução a seguir à guerra foi um fator decisivo no alavancamento das principais economias Europa Ocidental.
(2) A alteração da relação de forças: após a vitória do Exército Vermelho e o alargamento da esfera de influência da URSS na Europa com o consequente reforço dos PCs (especialmente França e Itália), o medo do comunismo e da revolução social obrigou o capitalismo a importantes concessões no domínio da regulação económica e financeira, da democratização política e da construção do Estado Social. Paradoxalmente, o poder de influência e o medo do comunismo fizeram renascer o reformismo social democrata como gestor central do capitalismo keynesiano.
(3) Uma recuperação econômica concebida no quadro do Estado Nação, ou seja, num contexto possibilitador da adoção de políticas económicas, monetárias e cambiais nacionalmente independentes.
(4) A disponibilidade nas metrópoles coloniais europeias de reservasde acumulação de capital fruto da exploração colonial que se puderam somar às ajudas Marshall no financiamento do processo de reconstrução económica do capitalismo; (5) a estabilização cambial possibilitada pelos Acordos de Bretton Woods de 1944 onde se fixaram as novas regras do sistema económico e monetário do pós-guerra assente no padrão dólar-ouro, articulada com o controlo de capitais à escala nacional e com a autonomia de cada Estado quanto à definição da sua política econômica.
Todas estas circunstâncias viabilizadoras dos “30 gloriosos”, de uma acumulação rápida e de elevadas taxas de lucro no contexto económico, social e político do pós-guerra iam sofrer uma drástica mudança ao longo dos anos setenta do século passado.
O ciclo do capitalismo neoliberal
Vários fatores convergiram e anunciaram a crise do modelo de acumulação do pós-guerra e da gestão keynesiana do capitalismo:
(a) O fim unilateral do modelo Bretton Woods decidido pelo Presidente Nixon do EUA em 1971, terminando com a convertibilidade do dólar em ouro e optando por uma desvalorização cambial para evitar uma severa desvalorização interna através da austeridade. A posição hegemônica dos EUA no pós-guerra era diminuída pelos efeitos financeiros das despesas com a guerra do Vietnã e pelo impacto da sua derrota no terreno, pela agitação interna, pelo maior crescimento económico do Japão e da RFA. A rotura do sistema Bretton Woods introduziu assim uma maior instabilidade cambial a nível global, sem pôr em causa o papel do dólar.
(b) Os choques petrolíferos de 1973 e 1979 num contexto de reforço do peso do Terceiro Mundo no sistema global, marcam o fim da era do petróleo barato que sustentava a prosperidade do capitalismo fordista e do progresso tecnológico do pós-guerra. O choque petrolífero de 1973 fazendo aumentar os custos da produção e dos transportes “foi a ignição da recessão”.4
(c) O aumento da contestação social e da agitação política anticapitalista e anti-imperialista nos países mais desenvolvidos, cruzando-se, nesse transcurso dos anos 1960 para os anos 1970, com os picos dos movimentos de libertação nacional na Ásia, na América Latina e em África. O Maio francês, “Primavera de Praga”, a luta pelos direitos cívicos e contra a guerra nos EUA juntavam-se à guerra de libertação nacional no Vietnam, à luta anticolonialista na Argélia, na Guiné Bissau, em Angola e Moçambique ou à Cuba revolucionária, ao Chile de Allende e à guerrilha latino-americana. Uma sincronia que levou Ernest Mandel a formular a “teoria dos três sectores” da revolução mundial: anticapitalista a ocidente, anti-estalinista a Leste anti-imperialista no Sul, três setores revolucionários que pareciam convergir numa inédita vaga sincrónica. Em suma, um ambiente global de insubordinação política e social, de contestação e de reivindicação que gerava insegurança e ameaçava os rendimentos e o processo de acumulação das classes dominantes a nível mundial.
(d) Mas o fator decisivo para a viragem estratégica do capitalismo, em termos gerais, será o fim da capacidade de manter o nível de acumulação baseado até aí numa elevada rentabilidade dos capitais das economias mais desenvolvidas. O modelo assentado no consumo de massa, no pleno emprego, no elevado investimento na promoção da investigação científica e tecnológica e na sustentação do Estado Social corroeu as taxas de lucro e originou uma onda longa de crescimento medíocre conjugado com a inflação, aquilo a que se chamou a estagflação. Colapsava assim o discurso ideológico que Daniel Bensaïd caracterizou como “capitalismo utópico”, baseado na crença de que era possível harmonizar duradouramente o incentivo à propensão ao consumo (e os meios de satisfazê-la) com um investimento garantidor de uma taxa de lucro ou de uma eficácia marginal do capital atraentes para os seus detentores.5
A reação a esta crise das taxas de lucro por parte da oligarquia financeira e das elites políticas que lhe estão associadas constituiu uma radical viragem estratégica no seu modelo de crescimento, expansão e governação. O capitalismo entrou num novo ciclo na passagem dos anos 70 para os anos 80 do século XX, o ciclo do capitalismo neoliberal, tendo como ícones políticos da nova direita que promovia essa mudança simultaneamente brutal e impiedosa, a nova primeira ministra britânica a partir de 1979, Margaret Tatcher, e o novo presidente do EUA eleito em 1980, Ronald Reagan. A nova globalização iria transformar devastadoramente a face da Terra.
Uma subversão multímoda e global
O neoliberalismo significa historicamente uma subversão multímoda e global da própria ordem capitalista dominante no pós-guerra, com a particularidade de surgir do interior do próprio capitalismo e como produto da sua inexorável lógica de expansão e acumulação. Ao varrer o “capitalismo institucionalmente impuro”, as transigências keinesianas e todos os fatores de restrição à abertura global dos mercados e à livre circulação de capitais; ao enfrentar e procurar sujeitar as conquistas históricas do mundo do trabalho à maximização das taxas de mais valia; ao apostar numa revolução tecnológica que plataformiza e formata ideologicamente instituições, relações sociais e emoções; ao acelerar cegamente as condições de catástrofe ambiental; ao subverter a ordem político-institucional instalada num sentido simultaneamente caótico e autoritário, o neoliberalismo surge como uma verdadeira contrarrevolução, onde o capitalismo não se limita a aprofundar a injustiça, mas surge com uma potencialidade destruidora sem precedentes em todos os domínios da vida.
No plano econômico e social, o capitalismo neoliberal desenvolveu a partir dos anos 1980, quatro frentes principais de ataque estratégico:
Em primeiro lugar, a liberalização e desregulação financeira, a remoção, por várias formas, de todas as restrições à livre circulação e internacionalização dos capitais, a busca de novas formas de expansão de capital fictício, a especulação financeira, o aumento da circulação da massa de capital sem ligação com o processo produtivo como forma de compensar a queda tendencial da taxa de lucro. Do que decorre a financeirização, ou seja, a consolidação e afirmação hegemônica de um processo de acumulação baseado nas rendas financeiras (dos monopólios naturais privatizados, dos novos sectores sociais abertos ao capital privado, dos recursos públicos, da especulação etc.…). As privatizações dos setores estratégicos da economia social e dos setores públicos – saúde, educação, segurança social – e a sua submissão à lógica da acumulação rentista é a outra declinação dessa estratégia.
Em segundo lugar, como analisa Francisco Louçã, a expansão de novos mercados a partir do novo paradigma tecno-econômico dominante neste novo ciclo de capitalismo, baseado na utilização do microship e na constelação de inovações que lhe estão associadas: a internet e as telecomunicações, “instrumentos das redes que envolvem toda a vida social”. Esse novo paradigma, na realidade a 4ª Revolução Industrial, criou condições para o surgimento de novas empresas oligopolísticas (as maiores multinacionais de sempre) que controlam a computorização das economias e condicionam o fenômeno da plataformização. Ou seja, a penetração de infraestruturas, processos econômicos, governação e relações sociais pelas plataformas digitais, originando a reorganização de práticas culturais e de imaginação em torno delas.
Talvez, precisando o conceito, a plataformização é um “novo modo de dominação assente em mecanismos de exploração do excedente constituído pelos dados do comportamento dos seres humanos” (…), permitindo o “uso do conhecimento íntimo sobre as emoções para formatar estratégias mercantis ou para condicionar a atuação e mesmo pensamentos dos sujeitos da colmeia”.6 Na época do capitalismo neoliberal, as máquinas de fabricar o senso comum assentam na plataformização. E essa é uma tecnologia de submissão sem precedentes na história do capitalismo.
Em terceiro lugar, e na decorrência dos processos anteriores, a afirmação hegemônica do capitalismo neoliberal implicou uma onda de destruição e de deslocalização de forças produtivas, imposta quer pela concentração empresarial, quer pelos critérios de rentabilidade do capital decorrentes do novo paradigma tecno económico, empurrando importantes setores da indústria tradicional para a obsolescência e para a falência (basta pensar na metalomecânica pesada e nas siderurgias desde o iron belt dos EUA, até às congêneres asturianas e do País Basco, nos estaleiros navais por toda a Europa ou nos têxteis que ainda subsistiam na periferia europeia). O que implicou um desemprego maciço da força de trabalho e a constituição – em contraste com o ciclo anterior de pleno emprego – de um “exército industrial de reserva” funcionando estruturalmente como fator permanente de contenção e desvalorização salarial e de desregulamentação e precarização das relações trabalhistas.
Em quarto lugar, e à medida que o medo do comunismo ou da revolução social se esvaía (antes e depois de 1989) e a mobilização e contestação sindical e política recuavam, a oligarquia financeira e a nova direita, refeita dos sustos e prudências do passado, desencadeavam um ataque em força contra os direitos e as conquistas históricas do mundo do trabalho visando não só sujeita-lo à maximização da extração da mais valia como forma central de reposição das taxas de lucro, como também discipliná-lo, dividi-lo e desorganizá-lo.
À desvalorização real dos salários, ao aumento não pago ou subpago da jornada do trabalho, à facilitação dos despedimentos, à precarização das relações laborais, à urberização e informalidade da relação contratual, juntam-se o esvaziamento da contratação coletiva e o cerco aos sindicatos e sindicalistas ou a restrições crescentes ao direito à greve, tudo isto amplamente agravado pelo recurso à sobre-exploração do trabalho imigrante, seja na agricultura, na indústria ou nos serviços. Se essa ofensiva não logrou quebrar a resistência dos trabalhadores (o grande movimento grevista em França no ano passado contra o aumento da idade da reforma é disso exemplo), ela teve efeitos profundos e duradouros na mobilização dos trabalhadores, nas taxas de sindicalização e na capacidade de atração e intervenção dos sindicatos e de outras organizações populares. E esse é o combate decisivo do tempo presente.
A reconfiguração do Estado
Mas não era possível implantar a estratégia neoliberal no plano econômico e social sem agir simultaneamente na frente da ideologia – para legitimar e organizar o consenso em torno da nova ordem – e no tocante à reconfiguração do aparelho do Estado, tornando-o apto à definição e aplicação das “reformas estruturais” indispensáveis à viabilização institucional do processo de acumulação rentista.
A ofensiva em ambos os domínios – o da ideologia e o da reconfiguração do Estado – intensificou-se após o colapso da URSS e a rendição da social-democracia, transformada estas em gestora do capitalismo neoliberal. Como refere Enzo Traverso, após 1989, “o capitalismo retomou o seu rosto original, bem mais selvagem, redescobriu o élan dos tempos heroicos e começou a desmantelar o Estado Providência praticamente em todo o lado. Na maioria dos países ocidentais, a social-democracia acompanhou ou tornou-se um instrumento essencial desta transição para o neoliberalismo. E o comunismo social-democrata desapareceu com a social-democracia clássica”.7
A desmobilização subsequente, sobretudo após 1989, abriu caminho à imposição do “pensamento único” sobre o “fim da História” com o triunfo do capitalismo ocidental na Guerra Fria apresentado como um inelutável There is no Alternative (TINA). O resto veio em torrente amplificado quase sem contraditório pela vasta rede de apóstolos da nova ordem nos media, nas universidades, nas fundações públicas e privadas, nos órgãos do Estado, nas associações patronais, etc. Os reprodutores do novo revisionismo investiram então, sem excesso de rigor ou de escrúpulos, na manipulação grosseira da memória e da história para legitimar a reconfiguração do presente e do futuro, na apologia do novo mundo dos unicórnios, ou seja, de uma mundovisão promotora do empreendedorismo e de busca individual e mercantil do lucro contra qualquer forma de solidariedade social ou ação coletiva.
Para alcançar a hegemonia, para organizar a conformação social com uma visão mercantilizadora e totalizante da vida social e dos comportamentos individuais, o neoliberalismo apostou na criação de poderosos instrumentos de formatação ideológica: no ensino, na formação de elites, no controlo oligopolístico dos media e, sobretudo, no poder do algoritmo enquanto elemento central da plataformização social, na produção e gestão da informação e na eficácia da nova tecnologia de conformação – ou seja, na criação através das redes sociais do ambiente de insegurança, medo, segmentação, polarização – e dormência social onde se fabricou o senso comum que alimenta os novos fantasmas do autoritarismo. Onde se cria o terreno social e ideológico do florescimento da nova extrema direita.
Mas a conquista da hegemonia ideológica, de fabricação do “consenso” é só o prefácio da chegada ao poder e da reconfiguração do Estado. Na realidade é indispensável à acumulação rentista passar do discurso à prática, ou seja, agir no tocante à adaptação do poder político às suas novas necessidades, aquilo a que João Rodrigues chamou “reconstrução institucional da ordem capitalista”.8 Desde logo, porque há uma contradição insanável entre os ritmos, as prioridades estratégicas da financeirização neoliberal e as novas formas de exploração do trabalho, por um lado, e a subsistência de democracias parlamentares em larga medida expressão da vitória do antifascismo na II Guerra Mundial. Na realidade, os Estados nacionais onde elas renasceram, fruto da pressão social introduzida pela massificação da política no pós-guerra, foram levados, como vimos, a adotar políticas sociais e de regulamentação econômica e cambial obstaculizantes da livre circulação de capitais ou da globalização dos mercados. As direitas políticas e dos interesses na época do neoliberalismo, tendo em conta o forte peso negativo das memórias do nazifascismo, não podiam, como aconteceu nos anos vinte e trinta do século passado com o liberalismo oligárquico, desbaratar essas democracias keynesianas pela violência subversiva, miliciana ou militar.
Prefiram, sob o manto do respeito formal, esvaziar paulatinamente os Estados nacionais – onde nasceram as democracias – da capacidade e dos poderes de regulação monetária, cambial e de definição da política de investimentos e da concorrência em favor de organizações supranacionais de burocratas não eleitos, realmente não fiscalizáveis pelos cidadãos, e em estreita conexão com os interesses do capital financeiro. São os casos do Banco Central Europeu, do FMI ou do Banco Mundial. Mais do que isso: retiraram aos governos nacionais dos principais Estados capitalistas o poder de dirigir a ação dos bancos nacionais de acordo com os interesses do país, colocando essa nova “autonomia” dos bancos centrais, no caso da União Europeia, sob a rigorosa dependência de organizações bancárias supranacionais como o Banco Central Europeu. Naturalmente estamos perante verdadeiras “estruturas de constrangimento” sobre os governos nacionais e as suas políticas económicas, assentes em regras e prioridades supranacionais não sufragadas democraticamente, desenhadas para esvaziar a soberania democrática dos Estados e impor a estratégia de financeirização e privatizações do capitalismo neoliberal.
Essa desdemocratização não se restringe às políticas e instituições econômicas e financeiras. Decorre de fatores estruturais inerentes às contradições e dificuldades surgidas no processo de imposição da estratégia neoliberal. A realidade é que ao fim de mais de quatro décadas de implementação, e não obstante avanços relevantes nas mudanças institucionais, na submissão do trabalho ou na criação de mecanismos de formatação ideológica, a crise permanece: a taxa média de lucro desde meados dos anos 1970 até hoje – salvo nos setores de ponta das novas tecnologias – tem sido menor e mais oscilante do que no período do pós-guerra e sobretudo a acumulação permanece deficiente.
O processo de acumulação assente na expansão do capital especulativo, na extração de rendas sobre os recursos e serviços públicos e na superexploração do trabalho cria resistências sociais e institucionais generalizadas e provoca um clima de instabilidade permanente. E essa situação bloqueia a estratégia neoliberal de restauração das taxas de lucro. Citando um trabalho recente “Os conflitos sociais expandem-se (…) a todas as formas do salário e do emprego (…). Todos se tornam campos de confronto entre o regime de acumulação financeira e os direitos ou hábitos sociais que se tinham entrincheirado nas relações de forças construídas no longo período de pleno emprego nas economias desenvolvidas, ou na multiplicação de movimentos sociais em que as classes populares se expressaram”.9
Este longo período de estagflação e de crescimento com taxas de lucro incertas e insuficiente acumulação, é definido por autores como Ernest Mandel como “capitalismo tardio” e ele decorre da “desadequação entre inovações tecnológicas radicais (a revolução digital ou da informação e comunicação) e o sistema produtivo, a ordem institucional e as relações sociais a que tem vindo a presidir”.10 Precisamente, a plena realização das potencialidades deste novo regime de acumulação baseado na financeirização e na plataformização da produção exige uma reconfiguração do social e do político. A resolução desse longo processo de impasse e de conflitualidade apela à força, ao autoritarismo, à liquidação mais ou menos progressiva das instituições democráticas e dos centros de resistência política e social.
Daí a captura do poder judicial na Polônia do PIS ou na Hungria de Orban; a ultrapassagem do parlamento por decretos do poder executivo, como na França de Macron a propósito da idade da reforma; a manipulação oligopolística e o cerco à liberdade de expressão e ao pluralismo informativo, como se tornou patente com a guerra na Ucrânia em toda a União Europeia; o ataque ao direito de manifestação, evidenciado com a tentativa de proibição em França e na Alemanha das manifestações de solidariedade com a Palestina; as restrições ao direito à greve e ao direito de manifestação, o primeiro anúncio do novo presidente de extrema direita da Argentina; o ataque crescente aos imigrantes e aos seus direitos fundamentais, expresso na recente legislação europeia e exacerbado pelos governos da França, da Itália de Meloni ou da Hungria, consagrando legalmente as teorias xenófobas e racistas da “grande invasão”; os apelos à regressão de conquistas como a legalização do aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, como é vocalizado pelo Vox em Espanha e pela extrema direita em vários países da Europeus e não só; as normas do estado de sítio transformadas em regras permanentes de violação das liberdades e garantias, como sucedeu também na França desse ícone do liberalismo, o presidente Emmanuel Macron.
Na realidade, o programa de cerco à democracia política e social e à paz está em marcha por toda a Europa e bem para além dela. E o seu suporte político, como aconteceu no período entre as duas guerras do século XX, é a tendência para a inexorável aliança de grande parte da direita tradicional com a nova extrema-direita para lhe “abrir caminho” e radicalizar o ataque às resistências sociais e políticas. Não se pode, aliás, entender o fenómeno da emergência da extrema direita neste primeiro quartel do século XXI fora da sua articulação funcional com a crise e os impasses do capitalismo neoliberal. Uma convergência entre direitas velhas e direitas novas que tende para o advento de um novo tipo de regimes autoritários, antidemocráticos e de apetência totalizante. E que no plano externo anuncia as novas guerras pela redivisão de esferas de influência entre velhos e novos impérios.
Não há crises finais do capitalismo
Efetivamente, o capitalismo neoliberal é uma forma de necropolítica que canibaliza o trabalho, a vida e a razão. Através das suas máquinas de fabricação do senso comum e da plataformização submete a vida ao poder da morte. Deixou atrás de si, ao longo de 40 anos, um rasto impiedoso de destruição social e ambiental, de desigualdade e de guerra. E, no entanto, a sua solução para a crise sistémica falhou. Como referia Daniel Bensaïd, estaremos provavelmente perante uma “crise histórica do software capitalista”11 que prepara convulsões maiores. Mas como lembra o autor, as crises do capitalismo “são inevitáveis, mas não inultrapassáveis”.12 Francisco Louçã acentua este aspecto, lembrando a singular capacidade de adaptação do capitalismo: uma espécie de vírus que inventa novas formas e gera as suas próprias condições de reprodução, ao contrário de todos os modos de produção anteriores. Na realidade, Marx nunca falou numa crise final do capitalismo. O capitalismo não desaparece por autofalência. Nem a passagem do capitalismo ao socialismo assume a forma espontânea de um destino económico inelutável e teleologicamente determinado.
Como salienta Enzo Traverso, o socialismo é um produto da atividade humana e não o resultado de um processo natural, “implicando uma construção histórica consciente orientada por escolhas políticas estratégicas”. Ou seja, supõe um “ato de autoemancipação humana”, enraizado num projeto de mudança social e política.13 Decorre, em suma, de uma ação revolucionária, de uma rotura consciente com a temporalidade do capital, da política reposta como razão estratégica, como “ato das conjunturas propicias e da decisão”.
É verdade que sendo os princípios claros, a sua aplicação é incerta. É assim com a “política profana”, sem deus nem “salvadores supremos”. Como sugere Daniel Bensaïd, o essencial é manter firme, sobretudo na contracorrente das lutas, o conceito de emancipação. Manter a clarividência e a determinação das alternativas que constroem o futuro de uma vida justa. Sem isso, “não há nada além da deriva de cães mortos seguindo o curso de água”.14. E esse, estou seguro, não é o nosso caminho.
*Fernando Rosas é historiador e professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda. Autor, entre outros livros, de Salazar e os fascismos: Ensaio breve de história comparada (Tinta da China Brasil) [https://amzn.to/3SlvTmS]
Publicado originalmente no portal Esquerda.net.
Notas
1 Bensaïd, Daniel, “E Depois de Keynes?” in D. Bensaïd e Michel Lowy, Centelhas, Boitempo, 2017, p.180.
2 Cf. Rodrigues, João, O Neoliberalismo não é um slogan, Tinta da China, 2022, p.71.
3 Traverso, Enzo, Révolution. Une histoire culturelle. La Dècouverte, 2022, p. 439-440.
4 Louçã, Francisco, O futuro já é o que nunca foi. Uma teoria do presente, Bertrand, 2021, p.156
5 Bensaïd, Daniel, ob.cit., p.196
6 Louçã, Francisco, ob.cit., p.171
7 Traverso, Enzo, ob.cit., p. 444
8 Rodrigues, João, ob.cit., p. 156
9 Louça, Francisco, ob.cit., p.161
10 Louça, Francisco, ob.cit., p.167
11 Bensaïd,Daniel, ob.cit., 191
12 Bensaïd, Daniel. “Marx e as Crises”. In: Transform. A Crise Global, nº 5, 2010, p. 160.
13 Traverso, Enzo, ob.cit., p.54
14 Bensaïd, Daniel, p.185.
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