Uma lógica míope

Imagem: Max Avans
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIS FELIPE MIGUEL*

O governo não tem vontade política para transformar a educação em prioridade, enquanto corteja militares ou policiais rodoviários, que não se movem um milímetro para longe do bolsonarismo que continuam a apoiar

Lula recebeu reitores, ao lado do ministro Camilo Santana. Não era um diálogo (quase nunca é); os reitores eram plateia para anúncios do governo. Ainda assim, havia esperança de que sinalizasse alguma solução para a greve de professores e de servidores técnico-administrativos das universidades e institutos federais, que já se arrasta há meses.

Em vez disso, o presidente preferiu atacar os grevistas. “Não é por 3%, 2%, 4% que a gente fica a vida inteira de greve”, disse Lula.

O dinheiro do governo corre solto para os parlamentares picaretas do Centrão, para os bancos, para as igrejas. Mas os profissionais da educação devem pensar que “quem está perdendo é o Brasil e os estudantes brasileiros” e voltar ao trabalho com seus 22% de perdas salariais acumuladas.

Hoje, convém, assinalar, nossa reivindicação é apenas um reajuste em 2024 que cubra a perda salarial com a inflação do próprio ano de 2024. Mas, para o governo, reajuste é para as categorias profissionais que tentaram dar um golpe e melar as eleições de 2022.

Na reunião com os reitores, Lula anunciou também o PAC da Educação, com números altissonantes: são R$ 5,5 bilhões previstos. Uma parte é para recompor o orçamento das IFES, que está estrangulado há muitos anos. Caso o governo realmente libere o que prometeu, o orçamento de 2024 alcançará o nível de 2017 – ou seja, continuamos longe do necessário.

Outra parte é para “expansão”. Além dos míticos 100 novos institutos federais, já anunciados antes, entraram 10 novos campi universitários.

A pergunta é: para quê?

Houve algum estudo que explique por que Sertânia, em Pernambuco, ou São José do Rio Preto, em São Paulo, precisam de um campus de Universidade federal? Há um levantamento de quais cursos seriam necessários? Com matrículas em queda nas universidades de todo o Brasil, a prioridade é mesmo “expansão”?

Devemos mesmo anunciar a criação de novos institutos e universidades sem antes garantir as condições adequadas de funcionamento para aqueles que já existem? Vamos contratar pessoas para esses locais e depois negar a elas boas condições de trabalho e os salários merecidos?

É uma lógica míope, de curto prazo – prédios para inaugurar, obras para licitar, chefes políticos locais para agradar.

Não é só a educação superior. O governo foi incapaz de abrir uma negociação franca com estudantes, professores e administradores escolares no caso do malfadado “novo ensino médio”, preferindo se aliar aos interesses empresariais. Nas muitas unidades da federação que controla, a extrema-direita promove aceleradamente a destruição da escola pública – precarização, militarização, privatização – sem que o governo federal esboce reação.

Pelo contrário, se afasta dos profissionais da área, incapaz de um gesto que marque a disposição de valorizá-los.

Fernando Haddad, curvado à lógica da “austeridade”, não esconde sua simpatia por teses como a abolição do piso constitucional de gastos para a educação e a saúde. A fórmula do governo parece ser: remuneração do capital especulativo como prioridade perene do Estado, políticas compensatórias aos mais pobres como “diferencial da esquerda” – e estamos conversados.

É um governo acovardado, que cede à lógica dos dominantes em tudo, que não compra um único enfrentamento – a não ser, é claro, contra sua própria base social, que, em vez de fortalecer, ele busca derrotar e jogar no desânimo e na apatia.

A conjuntura é desafiadora, mas o governo Lula contribui de forma decisiva para seu próprio insucesso. Não faltam pessoas que pensam a educação, a sério, que estão prontas a colaborar com o governo. O que falta é vontade política para transformar em prioridade, de verdade, aquilo que o discurso sempre diz que é prioridade.

PS. Não sei se temos condições de continuar a greve, diante da intransigência do governo. Talvez tenhamos que encerrá-la, reivindicando a recomposição orçamentária (necessária, ainda que insuficiente) como uma vitória do movimento.

Mas não nos enganemos: fomos derrotados. Todos nós. Professores, servidores. A esquerda. O governo.

A “vitória” de Lula, dobrando um setor que sempre esteve engajado na defesa da democracia, deixa cicatrizes. Já vimos esse filme antes, no primeiro mandato, quando Lula ferrou o funcionalismo público em geral. Mas ali o cenário era outro e ele tinha gordura para queimar.

Hoje, não. E aqueles que ele corteja, como militares ou policiais rodoviários, não se movem um milímetro para longe do bolsonarismo que continuam a apoiar.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica). [https://amzn.to/45NRwS2]

Postado nas redes sociais do autor.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Como os soviéticos venceram a desertificaçãocccp 22/09/2024 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: O Grande Plano da URSS para a Transformação da Natureza nos conta que a magnitude do seu impacto só foi possível porque aliou conhecimento, planejamento sistêmico e vontade soberana da nação
  • Marx e a financeirização – o exuberante capital fictíciodolar olho 48 18/09/2024 Por RENILDO SOUZA: O papel crucial da ciência e da tecnologia na economia capitalista do século XXI favorece a valorização das mercadorias-conhecimento gerando as chamadas renda-conhecimento
  • América do Sul — uma estrela cadenteJosé Luís Fiori 23/09/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A América do Sul se apresenta hoje sem unidade e sem qualquer tipo de objetivo estratégico comum capaz de fortalecer seus pequenos países e orientar a inserção coletiva dentro da nova ordem mundial
  • O avesso de Marxcultura los soles 14/09/2024 Por TIAGO MEDEIROS ARAÚJO: Comentário sobre o livro recém-lançado de José Crisóstomo de Souza
  • O caminho do meioamazon 22/09/2024 Por JOSÉ DIRCEU: A Amazon é a nova aposta dos EUA pelo controle dos ativos digitais brasileiros
  • Franz Kafka e seu bestiário em trânsitopexels-moldyfox-3924726 20/09/2024 Por RICARDO IANNACE: Comentários sobre o bestiário em Kafka
  • O livro de CatuloPaulo Martins – Foto_edited 03/09/2024 Por PAULO MARTINS: O que nos resta de Catulo é suficiente para dizer que seu ecletismo genérico (dos gêneros poéticos) é impressionante
  • A base estrutural das novas direitasELEUTERIO2 25/09/2024 Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: A civilização aparece finalmente como barbárie e a humanidade parece caminhar para a extinção
  • Fredric Jameson (1934-2024)Frederic Jameson 24/09/2024 Por THOMAS AMORIM: Como Walter Benjamin percebeu, os mortos seguem interessados na construção de um futuro melhor e também Fredric Jameson continua e continuará conosco
  • O último pub — The old oakcultura telefone 22/09/2024 Por WELLINGTON MEDEIROS DE ARAÚJO: Comentário sobre o filme de Ken Loach

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES