Algumas palavras sobre o autoritarismo

Imagem: Sergio Geller
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Por JOSÉ LEON CROCHIK*

A estrutura de nossa sociedade não se alterou substancialmente, continua a ser um mundo dirigido pela perspectiva econômica e política de direita

1.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)[i] realizou duas pesquisas, em 2017 e 2022, utilizando parte da Escala do Fascismo de Theodor Adorno et al. (1950),[ii] em amostra representativa da população, com dados coletados pelo Datafolha, para mensurar o autoritarismo.

Os itens da Escala F que, segundo seus autores, avaliam o ‘convencionalismo’, ‘a submissão autoritária’, a ‘agressão autoritária’, foram utilizados; eles correspondem ao autoritarismo moral, ao sadomasoquismo. Os demais itens se referem a uma hostilidade não necessariamente moralizada, ligada a um impulso de dominação daqueles que têm um Eu fragilmente estabelecido. 

Com uma escala de 0 a 10 pontos, as pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública obtiveram escores médios altos de autoritarismo: 8,1 e 7,3 pontos, respectivamente. Diminuiu a adesão a valores convencionais, a submissão autoritária, mas aumentou a agressão autoritária, o que talvez expresse a intensa agressividade antidemocrática que houve no governo anterior.

Esses estudos entre outros indicaram a manutenção da precisão e da validade da Escala F apesar do tempo decorrido – década de 1940 – e do local onde foi elaborada – Estados Unidos da América.

Talvez porque sua base seja a psicanálise, nos anos 1980, Altemeyer criou outra escala para mensurar o autoritarismo, substituindo a base teórica pela teoria de aprendizagem social: a Right-Wing Authoritarianism Scale (RWA). Seu autor, porém, julgou que ela era insuficiente para a mensuração da ‘dominação autoritária’, e a testou em conjunto com a Escala de Orientação de Dominância Social (SDO). Após pesquisas, indicou que a RWA mensura o autoritarismo, e a SDO um impulso de dominação. Como esses fatores já eram mensurados pela Escala F, para que essa fosse superada, foram necessárias outras duas para avaliar o mesmo que ela. Assim, nem tudo que é mais recente, é melhor.

Outros pesquisadores,[iii] incomodados em supor haver somente um autoritarismo de direita, fizeram outra escala para avaliar o autoritarismo de esquerda – Left-wing Authoritarianism. Depois de alguns estudos, detectaram que não é o ideário político que gera reações autoritárias, mas o contrário: esses ideários são utilizados para satisfazer desejos individuais regredidos.

Cabe sempre lembrar que, para os frankfurtianos, a constituição do indivíduo é mediada socialmente; o autoritarismo individual reflete o fascismo necessário para a manutenção de quem detém o poder econômico e político. Em suma, verificaram que personalidades autoritárias podem se relacionar com qualquer tipo de ideário, o que já se sabia pelo estudo apresentado em A Personalidade autoritária, que identificou falsos conservadores e falsos liberais. Dessa forma, foram necessárias, não duas, como escrito antes, mas três escalas para avaliar o que a Escala F já media e para chegar a resultados próximos.

2.

Certamente, da década de 1940 aos dias de hoje, muito se alterou, mas se a mensuração da Escala F continua válida e fidedigna, o que deve preocupar é o que gera o que mede essa escala: talvez as mesmas forças sociais da época em que foi elaborada, pois, parece que muito se manteve desde então.

Em relação a isso, ao menos duas frases dos frankfurtianos são importantes, ambas do final da década de 1960, quando se afirma que as ‘décadas de ouro’ estavam findando para o surgimento do neoliberalismo. Uma delas está no prefácio da segunda edição da Dialética do Esclarecimento,[iv] de Max Horkheimer e Theodor Adorno, de 1969: “O desenvolvimento que diagnosticamos neste livro em direção à integração total está suspenso, mas não interrompido; ele ameaça se completar através de ditaduras e guerras” (p.10).

Cabe a nós avaliarmos se essa direção rumo à integração total está ou não se encaminhando, sobretudo, na atualidade, com o fortalecimento mundial do radicalismo de direita. Difícil, também, não perceber os controles sobre nossa vida de lá para cá, sobretudo com o avanço das técnicas de identificação de todos nós.

O outro trecho encontra-se em “Educação após Auschwitz”,[v] de 1967:

“Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são impelidas necessariamente para o lado subjetivo.” (p.121)

Após 22 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, Adorno afirmou que as condições objetivas permaneciam as mesmas, não esquecendo de mencionar o ‘nacionalismo exacerbado’. Muito atual, não?

Se não estivermos atentos às condições que geraram Auschwitz, essa vai continuar a se expressar nas guerras e na paz, pois, não dá para desconhecer que mesmo sem conflitos armados a existência de boa parte da população mundial ainda tem muito sofrimento, quando, dadas as condições econômicas alcançadas, a miséria já poderia ser erradicada.

3.

Mas voltemos aos resultados dos níveis de autoritarismo brasileiro das pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Talvez possam explicar, parcialmente, o resultado das eleições de 2017, mas, e a de 2022?

A experiência do ex-capitão como presidente pode ter diminuído o autoritarismo, mas não o suficiente, o que talvez explique a aprovação de pautas regressivas pelo atual Congresso, cujos membros também foram eleitos pelo povo. Além disso, cabe ressaltar que como para a eleição presidencial, houve uma composição das chamadas forças conservadoras e progressistas contra o reacionarismo, podemos supor que parte daqueles que elegeram o atual governo seja autoritária, o que também explicaria as dificuldades de governar, dados os compromissos da campanha e a rigidez dos embates políticos.

Por fim, cabe notar que a estrutura de nossa sociedade não se alterou substancialmente, continua a ser um mundo dirigido pela perspectiva econômica e política de direita, mesmo com alguns governos de esquerda ou de centro-esquerda; e que o prognóstico dos frankfurtianos parece se manter: quanto mais a sociedade se desenvolve técnica e administrativamente, mais pode prescindir dos indivíduos, que se tornam psiquicamente mais regredidos.

*José Leon Crochik é professor titular aposentado sênior do Instituto de Psicologia da USP. Autor, entre outros livros, de Teoria crítica da sociedade e psicologia. Alguns ensaios (Junqueira e Marin). [https://amzn.to/47xsPud]

Notas


[i] Violência e democracia : panorama brasileiro pré-eleições de 2022 [livro eletrônico] : percepções sobre medo de violência, autoritarismo e democracia / organização Renato Sérgio de Lima. São Paulo : Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. PDF. https://apidspace.universilab.com.br/server/api/core/bitstreams/ddbc5d98-5381-4589-9670-43e912ef4178/content

[ii] Adorno, Theodor W.; Frenkel-Brunswik, Else; Levinson, Daniel J.; Sanford, Nevitt (1950): The Authoritarian Personality, New York, Harper & Brothers.

[iii] Krispenz, A., Bertrams, A. Understanding left-wing authoritarianism: Relations to the dark personality traits, altruism, and social justice commitment. Curr Psychol 43, 2714–2730 (2024). https://doi.org/10.1007/s12144-023-04463-x

[iv] Horkheimer, M. e Adorno, T. W. (1985). Dialética do Esclarecimento.  Trad. de Guido de Almeida. Rio de janeiro: Jorge Zahar.

[v] Adorno, T.W. (1995) “Educação após Auschwitz”. In: Educação e emancipação. Trad. de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra.


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