Por GILBERTO MARINGONI*
Apoios ou proximidades políticas não se dão por simpatias pessoais ou dogmas de fé, mas por pautas materiais e objetivas
A única maneira do governo venezuelano vencer a suspeita de fraude e o isolamento internacional é agir com a máxima transparência na divulgação e detalhamento dos resultados eleitorais do último domingo (28 de julho). Aqui, literalmente, não há alternativa para se recobrar a iniciativa diante da maré montante reacionária.
O regime, há 25 anos no poder, enfrentou todo tipo de agressão interna e externa ao longo desse tempo, conseguindo sobreviver em condições adversas. Sob o comando de Hugo Chávez, tornou-se referência para a esquerda e para a democracia mundial.
A Venezuela, por estar assentada nas maiores reservas conhecidas de petróleo, tornou-se, há um século, estratégica para a maior economia do planeta, os EUA. Com tamanha riqueza no subsolo, um país de diminuto mercado interno e dependente da entrada de divisas provenientes da comercialização de um produto cujos preços internacionais apresentam grande volatilidade jamais conseguiu se industrializar. Necessita fortemente do setor externo para financiar seu Estado.
Localizado no norte da América do Sul, o país também ocupa posição geopolítica estratégica para a potência dominante. Por esses dois motivos, qualquer disputa de poder interna condensa interesses que vão muito além de suas fronteiras.
Nessas eleições presidenciais, mais do que em qualquer outra no último quarto de século, havia real chance de uma força política de extrema direita vinculada a Washington vencer. Isso poderia se dar menos pelas qualidades dessa coalizão e mais pela profunda crise política e econômica da última década. Suas causas envolvem quedas do preço internacional do barril, bloqueios econômicos, sequestro de divisas depositadas em bancos estrangeiros, sabotagens, desaparecimento de sua principal liderança política, tentativas de golpe, invenção de um presidente-fantoche como Juán Guaidó, denúncias de corrupção, autoritarismo e inépcia governamental. Nos últimos dois anos, o quadro melhorou um pouco.
Diante da complexidade reinante, ao governo Nicolás Maduro torna-se vital reconquistar legitimidade interna e externa. Além de ilhada, Caracas encontra-se na defensiva política. Com todos os problemas, ali não há uma ditadura, mas uma democracia imperfeita. Ou seja, uma democracia com defeitos, como todas as democracias do mundo.
O jogo de pressões e desafios fez do domingo eleitoral um ponto de virada para governo e oposição. Com institutos de pesquisa de baixa credibilidade – havia sondagens para todos os gostos – e acusações prévias de que o chavismo tentaria fraudar a vontade popular, a mídia internacional trabalhou com a seguinte profecia: se a oposição vencesse, o jogo teria sido limpo; caso o oficialismo vingasse, o roubo estaria consumado.
Se a votação transcorreu em clima tranquilo, o momento pós-urnas mostra-se caótico. O anúncio da vitória de Nicolás Maduro, pouco depois da meia noite de domingo, com cerca de 80% dos votos apurados, se deu contrariando o costume local de só se divulgarem resultados finais. O argumento usado foi que a proporção àquela altura (51,2% a 43,2%) seria irreversível. O motivo: teria havido um ataque hacker no sistema eleitoral, “a mando de líderes da oposição”, segundo Tarek William Saab, procurador-geral da República. Até agora nada foi provado.
Imediatamente a oposição protestou ruidosamente, seguida pela extrema direita global e seus aliados. A exigência principal é pela divulgação das atas de votação, com resultados zona a zona, seção a seção e mesa a mesa. No Brasil, a disponibilização é feita quase imediatamente à divulgação dos resultados.
A partir daí a autoridade eleitoral tomou decisão arriscada. Na tarde de segunda (29), o CNE houve por bem diplomar Nicolás Maduro, proclamando-o vencedor, sem consolidação dos resultados finais. Até à tarde do dia seguinte, as informações não haviam sido publicadas. Esse é o cerne da argumentação da extrema direita para contestar a lisura do pleito. (Para comparar, aqui Lula foi eleito em 30 de outubro de 2022 e sua diplomação ocorreu somente em 13 de dezembro, bem depois da consolidação dos votos).
A desconfiança espalhou-se pelo mundo. Alguns países reconheceram imediatamente o novo mandato presidencial. São os aliados China, Rússia, Irã, Quatar, Cuba, Bolívia, entre outros. Aqueles dirigidos por forças conservadoras de variados matizes rechaçaram de pronto os resultados, alguns de forma grosseira, como os governos de Argentina e Chile. Num grupo intermediário estão Brasil, Colômbia e México, as três maiores economias do continente, comandadas por coalizões de centro-esquerda. Esses pedem a divulgação das planilhas de votação.
Os EUA, escaldados por desgastes, como apoios explícitos ao golpe de 2002 e sustentação de Juán Guaidó, tiveram posição comedida, mas abrindo espaço para a dúvida. A ONU não reconhece o resultado. A OEA, que se tornou agente do golpe boliviano de 2019 ao acusar Evo Morales de ter cometido uma fraude eleitoral jamais comprovada, repetiu o bordão. Também sem evidência alguma.
A exigência da exibição imediata das atas jamais poderia ser feita no Brasil. Segundo o site do TSE daqui, entre as regras das eleições de 2024 está definido que: “Até três dias após cada turno, os relatórios [“Resultado da Totalização”] deverão ser divulgados nos sites dos TREs”. Três dias!
Não bastasse a arriscada iniciativa da diplomação, Nicolás Maduro expulsou embaixadores de Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai, países que contestaram os resultados. O gesto antecede um possível rompimento de relações. Além disso, isola ainda mais a Venezuela e torna inviável qualquer articulação em seu favor por parte do Mercosul ou da Celalc.
Apoio ou proximidades políticas não se dão por simpatias pessoais, dogmas de fé ou qualquer característica subjetiva. Acontecem a partir de pautas materiais e objetivas. Lembremos da máxima de Talleyrand (1754-1838), influente chanceler francês em quatro ocasiões: “Nações não têm amigos; têm interesses”.
Nicolás Maduro só recuperará legitimidade interna e externa se agir com a máxima clareza e transparência. Possivelmente terá de dar dois passos atrás se pretender dar um a frente. A defensiva enfrentada pela esquerda continental não será rompida a partir de discursos e declarações eloquentes. A divulgação imediata das atas eleitorais é a principal ferramenta para colocar a direita e o fascismo na defensiva e tornar inconteste a rota democrática venezuelana.
Por fim, o líder venezuelano apresenta uma característica essencial na política: ele investe na mobilização popular. Em última instância, esse é o fator para sustentar um governo.
*Gilberto Maringoni é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).
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