A lógica da realidade virtual

Imagem: Alexander Zvir
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Por LEONARDO CABRAL*

O processo de formação da subjetividade atual diz do fato de que a reprodução do capitalismo ultraliberal está em xeque

O ciclo de conferências Mutações tem em seu livreto de abertura do ano 2024 o ensaio escrito pelo filósofo organizador, Adauto Novaes, expondo o atravessamento da sensibilidade contemporânea por dinâmicas que fazem desta o que é aberta à mensuração crítica. Não somente aberta à mensuração crítica – a reflexão que fazemos sobre este processo – mas aberta à mensuração crítica porque esta é efeito da disputa em torno da sensibilidade, conflito que acontece entre forças que dominam e forças sob domínio.

Paul Valéry, citado por Adauto Novaes em seu ensaio de abertura, diz que a sensibilidade é a verdadeira força motora da inteligência. Logo, quando dizemos da disputa em torno da sensibilidade, dizemos que este conflito tem por intenção remeter a sensibilidade para o uso pragmático desta – inversamente à inteligência crítica e de criação, quando a criação é inexistente sem o pensamento que infere a realidade. (Ademais, existe trabalho quando existe a percepção crítica da posição que ocupo com o trabalho, fazendo deste o que em termos subjetivos não é pragmático; do contrário, o que existe é assujeitamento.)

Assim, a realidade contemporânea é mobilizada pelas forças histórico-dominantes quando o que entra em questão é isto: a reprodução do modo de vida atual, que não é simples reprodução, quando este modo de vida atual é marcado pela força de processos que têm em vista o agravamento da concentração de capital. O que agrava a concentração de capital tem relação direta com a perda da natureza, e esta perda é condicionada pelo estágio atual da revolução tecnocientífica.

Dentro da perspectiva que abrange a revolução tecnocientífica atual, a pandemia recente conduziu as ações que eram produzidas na realidade imediata até a realidade virtual, e este é o processo que – enquanto fato histórico – intensificou o predomínio da tecnociência em devir. O que fazíamos presencialmente é o que fazemos virtualmente.

Assim em texto de 2020 o psicanalista Tales Ab’Saber diz que este vírus recente conduziu o regresso da civilização ao âmbito que forma o inconsciente que esta tem, em termos que seriam freudianos. “Seriam” freudianos, considerando que devemos pensar esta conformação histórica a partir do que precede a pandemia; é intensificado pela pandemia e tem vigência consolidada após a pandemia: está-se dizendo, portanto, do que é realidade virtual.

Em exato, o processo que faz da realidade imediata o que é realidade virtual é processo que redefine a concepção de inconsciente freudiano. Redefinindo o inconsciente freudiano, não regressamos ao âmbito que forma o inconsciente que a civilização tem; avançamos para o âmbito de formação do inconsciente em termos novos, e para pensar o que é isto devemos ler a teoria freudiana e estudar o que é o cerne desta transformação.

Afirmando que o inconsciente da civilização está dentro de processo que forma este – a partir da revolução tecnocientífica atual –, é quando a tecnociência cria realidade virtual que o sujeito remetido a este processo está diante da duplicação da identidade que tem. Conforme o psicanalista Juan-David expõe, quando a teoria freudiana diz que o psiquismo “recebe a energia, transforma esta em ação e, consequentemente, reduz a tensão dada pela energia”, a excitação que acontece ao psiquismo é de origem interna, e não externa.

Porém, quando o contexto é a realidade virtual, há o caráter externo-interno da percepção de energia pelo psiquismo: externo, porque meu ser está determinado pelo que acontece na realidade virtual, o que captura a dimensão interna do psiquismo. Duplica-se, portanto, a identidade, quando o psiquismo está sujeito a perceber a energia externamente-internamente.

O processo pode ser definido assim: ao interagirmos na realidade virtual, a identidade virtual alcança o prazer absoluto, porém, à medida que encerra continuamente a tensão dada pela carga de energia virtual – repetindo ad infinitum este ciclo –, esta tensão é irredutível diante da realidade imediata, o espaço real que está em oposição ao espaço virtual, o que abre o conflito entre realidade imediata e realidade virtual. Este conflito é aberto quando o processo exposto mostra a prevalência da identidade virtual sobre a identidade que acontece na realidade imediata.

Quando o psiquismo recebe a energia externamente-internamente, a percepção da energia pelo psiquismo é dada pela realidade virtual e é entregue à realidade virtual, e isto abre o conflito diante da realidade imediata, quando esta é condicionada pelo predomínio da identidade virtual sobre a identidade inerente à realidade imediata. A consequência é única: o estatuto ontológico da realidade é inexistente quando o alcance de prazer pela identidade virtual é absoluto.

Assim, é por este processo que o estatuto ontológico da realidade não é dado pela realidade imediata; é por este processo que o estatuto ontológico da realidade é dado pela realidade virtual, que condiciona a realidade imediata, e condicionando a realidade imediata é o que finalmente consuma isto: vive-se em realidade virtual. Quando avançamos – pelas características do atual contexto histórico – para a formação do inconsciente em termos novos, esta formação consuma a realidade virtual enquanto nova realidade, que prevalece sobre a anterior.

A primeira consequência é esta: entrando em conflito com a realidade imediata, esta realidade é acelerada pela presença da realidade virtual – onde está o cerne da existência contemporânea –, ao passo que, por ser conflito, acelera a identidade virtual, acelerando a consciência do sujeito que foi remetido a este processo.

A lógica da realidade virtual é o conflito entre aparências – é, em suma, o conflito. O que tem consequências sobre a realidade imediata, e nesta a sensibilidade do sujeito: por ser processo que consuma a identidade do sujeito em termos novos, e por ser processo que converge na realidade imediata, há o regresso das sociedades até o ponto historicamente moderno de onde os conflitos sociais contemporâneos foram iniciados.

O que rege a existência coletiva na realidade imediata – esta que foi revertida em realidade virtual – é a indiferença exposta na luta de todos contra todos, processo que à medida do tempo tem a potência para unir classes sociais dominadas diante dos interesses de classes sociais que dominam. No ensaio de Adauto Novaes, Paul Valéry questiona: “o espírito humano poderá superar aquilo que o espírito fez?” Isto é, a realidade virtual onde existe o vício pelo prazer absoluto poderá ser orientada para o ponto onde – para além disso que é vício – reengendrará a sensibilidade, condição para a inteligência?

A disparidade entre realidade virtual e realidade imediata é crise – e crise é condição para o crescimento de quaisquer ciências –, portanto, quando a realidade virtual tem primazia sobre a realidade imediata, dentro de processo que forma o inconsciente em termos novos, o que há não é em exato a permanência do conflito vigente na modernidade e na contemporaneidade; há, como dito, o reengendrar deste.

Quando a identidade do sujeito é concebida em termos novos – dentro de processo que forma o inconsciente divergindo de antes –, há a suposição de época que é nova. Ao passo que existimos dentro do conflito renovado entre classes sociais (conflito entre sujeitos inconciliáveis), a realidade virtual, porém, é intrinsecamente artística. O inconsciente que é formado em termos novos pela realidade virtual, quando a realidade virtual, sendo artística, tem prevalência sobre a realidade imediata – influenciando o que acontece nesta –, dá à realidade imediata a configuração de olhar que vê nesta o que é artístico.

É assim que poderíamos dizer que o preparo ontológico para realidade nova é o que este texto expõe. O processo de formação da subjetividade atual diz do fato de que a reprodução do capitalismo ultraliberal está em xeque. Criar esta sociedade que é nova – até que a época seja nova – é o desafio que está diante do pensamento crítico.

Leonardo Cabral é historiador e escritor. Autor do romance Os esboços camponeses (Telha).


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