A volta dos que não foram

Imagem: Sr Mashca
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GUSTAVO MENON

Considerações sobre a reforma constitucional e a reinstalação de bases militares no Equador

los pocos logros culturales y políticos no son, en este castigado Ecuador, irreversibles
(Agustín Cueva, Entre la ira y la esperanza).

O presidente equatoriano, Daniel Noboa, propôs ao Tribunal Constitucional uma mudança na constituição que revogaria a proibição de bases militares estrangeiras no país, uma medida que foi originalmente implantada em 2008 durante a promulgação da atual Constituição equatoriana que veda expressamente em seu art. 5 a instalação de bases militares estrangeiras no país.

Sob o olhar atento dos Estados Unidos, que mantinham uma presença militar na antiga Base de Manta, no litoral equatoriano, o projeto começou a ser discutido em meio a diversas crises de segurança pública que afetam a região. Com o pretexto de combater o narcotráfico, Daniel Noboa ressaltou a necessidade de reformar o texto constitucional com o objetivo de estabelecer a “cooperação internacional” no combate às máfias e aos crimes transnacionais.[i]

Cumprindo um mandato provisório após o anúncio do dispositivo da “morte cruzada” pelo ex-presidente Guillermo Lasso, o atual presidente tenta iniciar sua campanha de reeleição para 2025. O governo equatoriano enfrenta disputas internas com a vice-presidente, Verónica Abad, que solicitou à Assembleia Nacional a abertura de processos de fiscalização contra ministras do próprio governo de Daniel Noboa e fez denúncias acusando o atual mandatário de violência política de gênero.[ii][iii].

A proposta de Daniel Noboa, que ainda precisa passar por um processo legislativo e pelo crivo da Corte Superior, poderá se estender além do seu mandato. Ao mesmo tempo, o anúncio tem provocado intensos debates sobre a soberania do Equador e as implicações de permitir a presença militar estrangeira no território nacional.

É importante destacar que a decisão tomada em 2008 pelo então presidente Rafael Correa, e seu projeto denominado “Revolução Cidadã” (2007-2017), de proibir bases militares estrangeiras, representou um ponto de inflexão na política externa do Equador. Essa medida refletiu um robusto sentimento de independência e autodeterminação, além de reacender discussões sobre a integração regional. A possibilidade de reverter tal decisão suscita indagações acerca das prioridades de segurança nacional e das alianças geopolíticas, especialmente em um contexto internacional marcado por conflitos de diversas naturezas.

De qualquer forma, no cenário interno, o Equador, em 2023, figurou na lamentável lista de países com os maiores índices de violência na América Latina. Isso se deveu principalmente a conflitos entre facções criminosas, o que inspirou Daniel Noboa a adotar estratégias e políticas públicas análogas ao “modelo Nayib Bukele”, um fenômeno que tem se espalhado pela agenda de segurança pública em diversos países latino-americanos.

A pretensão presidencial está em consonância com os sucessivos anúncios de Estados de Exceção no Equador e as medidas de toque de recolher implantadas em várias cidades. De acordo com os dados oficiais, no último ano, o país registrou uma taxa da ordem de 40 mortes violentas para cada 100.000 habitantes, um número recorde que coloca a nação andina amazônica como a mais insegura de toda a América Latina na atual conjuntura.

Ao sul de Guayaquil, na região costeira de Guayas, algumas localidades registraram uma taxa de homicídios de 114 para cada 100.000 habitantes, um dos índices mais elevados do planeta.[iv]

À direita, os defensores da reforma argumentam que a presença de bases militares estrangeiras poderia fortalecer a capacidade do Equador de lidar com ameaças transnacionais e melhorar a segurança interna. Por outro lado, críticos da proposta se manifestam como uma ameaça à soberania nacional e temem que a iniciativa possa levar a uma maior intervenção dos Estados Unidos nos assuntos internos do país, especialmente na região amazônica.

Em um contexto de fragmentação política e desintegração econômica, a tentativa de implantar um “Plano Colômbia 2.0” em território equatoriano acende um sinal de alerta quanto à participação e interferência de atores extrarregionais em pautas intimamente sul-americanas.

O cenário de crise do multilateralismo e dos mecanismos de cooperação regional na América do Sul, marcado por fragmentações políticas e desafios na governança regional, ressalta a urgência de se estabelecer uma agenda comum em áreas-chave como desenvolvimento, segurança, defesa, mudanças climáticas e projetos que garantam a soberania e o desenvolvimento sustentável das nações do subcontinente.

Neste contexto, a implantação da Declaração de Belém, o fortalecimento da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e a revitalização dos debates para o restabelecimento da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) são passos iniciais significativos para a construção de políticas estratégicas e a promoção de instrumentos de cooperação sul-sul que estejam alinhados com os desafios do século XXI.

Por fim, vale consignar que o debate sobre a reforma constitucional no Equador, e a consequente flexibilização do quinto artigo, terá implicações significativas não apenas para o país, mas também para a dinâmica de poder e os projetos de defesa em todo o continente.

*Gustavo Menon é professor de Relações Internacionais na Universidade Católica de Brasília (UCB).

Notas


[i] Presidencia de Ecuador. Secretaría General de Comunicación de la Presidencia. El presidente Noboa presentará un Proyecto de Reforma Parcial a La Constitución para permitir bases militares extranjeras. Data: 16. set. 2024. Disponível em: https://www.facebook.com/photo/?fbid=911798664316471&set=a.247505307412480.

[ii] EL COMÉRCIO. Verónica Abad solicita a la Asamblea Nacional investigar a dos Ministras. Disponível em: https://www.elcomercio.com/actualidad/politica/veronica-abad-asamblea-ministras-fiscalizacion.html.

[iii] La Nación. Ruptura sin retorno: la vicepresidenta de Ecuador denunció a Noboa por violencia política de género. Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/el-mundo/ruptura-sin-retorno-la-vicepresidenta-de-ecuador-denuncio-a-noboa-por-violencia-politica-de-genero-nid13082024/

[iv] TELESUR. Ecuador cierra el año con los más altos índices de criminalidad. Disponível em: https://www.telesurtv.net/news/ecuador-violencia-indices-20231231-0017.html..


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES