Por RONALD VIZZONI GARCIA*
A Universidade Estadual do Rio de Janeiro é um lugar de produção acadêmica e orgulho. Contudo, ela está em perigo com lideranças que se mostram pequenas diante de situações desafiadoras
A recente intervenção policial ataca diretamente o símbolo de resistência e transformação social que a UERJ representa. Em um estado marcado pela corrupção e ineficiência, em que governadores enfrentam prisões por seus crimes, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) é um lugar de produção acadêmica e orgulho. Contudo, ela está em perigo com lideranças que se mostram pequenas diante de situações desafiadoras.
Nos anos 1990, a UERJ se destacou ao oferecer salários superiores aos das universidades federais. Nesse período, a UERJ aprimorou o corpo docente por meio de concursos. Essa mudança de perfil acadêmico impactou a pesquisa e os cursos de mestrado e doutorado que foram surgindo. As avaliações dos cursos superiores na década de 1990 evidenciaram o progresso, um fenômeno não exclusivo da UERJ, mas que nela se sentiu com mais contraste. Novidades, inclusive no acesso ao ensino superior.
Esse progresso culminou em importante mudança na política de acesso. O pioneirismo da UERJ na política de cotas iniciou em 2000, com 50% das vagas reservadas para estudantes de escolas públicas, e em 2001, com 40% para autodeclarados negros. Estudos sobre cotas, com a UERJ como protagonista, não endossaram a tese da “falência do ensino” e do “aluno sem base”. Ao contrário, expuseram as falas sobre meritocracia como ideológicas e injustas.
O rumo da UERJ contrasta com o do governo estadual. Nas últimas duas décadas, a UERJ, assim como todo o funcionalismo estadual, foi arrastada para a crise de recursos (mudanças na distribuição dos royalties do petróleo, mas não só) e as prisões de governadores envolvidos em esquemas de corrupção. Essa fraqueza institucional permanece. A concessão da CEDAE garantiu tranquilidade durante o período eleitoral, favorecendo à reeleição do atual governador.
Tratemos dos eventos recentes. Durante as eleições para a Reitoria, a chapa 10, formada por Gulnar Azevedo e Bruno Deusdará, foi eleita com uma plataforma que prometia uma “universidade popular”. Entre as promessas estavam a manutenção e ampliação (isso mesmo, ampliação) das bolsas estudantis. Defendeu uma política de assistência e permanência mais eficiente para os estudantes. A chapa, inclusive, assinou uma carta de compromisso com as entidades sindicais e estudantis. No início da gestão eleita, um Ato Executivo de Decisão Administrativa (AEDA) prorrogou as bolsas estudantis até o final de 2024. Sinalização clara de que as promessas seriam cumpridas.
A UERJ, desde o começo de 2024, enfrenta problemas orçamentários, reflexo da questão fiscal dos estados. Como resultado, os salários de professores substitutos e auxílios de terceirizados começaram a atrasar.
Austeridade e resistência
Em julho, a Reitoria emitiu um Ato Executivo de Decisão Administrativa (AEDA 38), que reduziu o número de alunos elegíveis para receber auxílio financeiro, cortando aproximadamente 1.500 estudantes. O ato determinou a concessão do auxílio-alimentação somente para os alunos de campi sem restaurante universitário. Já o auxílio-transporte foi fixado em R$ 300, a serem pagos em parcelas mensais conforme a disponibilidade de verba. A nova regra também passou a exigir uma renda familiar bruta por pessoa de até meio salário-mínimo (antes, o limite era de 1,5 salário-mínimo). O auxílio de vulnerabilidade também teve seus critérios alterados.
Além disso, o auxílio material foi reduzido de R$ 1.200 para R$ 600 mensais, e o apoio à educação infantil passou a ser limitado a 1.300 estudantes. Agora, uma análise mais rigorosa avaliará os auxílios. Os alunos devem estar matriculados em pelo menos três disciplinas, ter uma frequência mínima de 75% e concluir o curso no prazo previsto.
A medida gerou uma resposta dos estudantes, que ocuparam a Reitoria no campus Maracanã, no dia 26 de julho. Em seguida, a ação se estendeu para outros campi da UERJ. Nos primeiros dias da ocupação, a Reitoria, que comparou os estudantes aos “golpistas de 8 de janeiro” (apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro com intenções golpistas), em uma tentativa de deslegitimar o movimento. Ocorreu também repressão por parte da segurança terceirizada da UERJ, impedindo a entrada de mantimentos e medicamentos para os ocupantes, além de agressões físicas. O sindicato dos trabalhadores da segurança terceirizada condenou a medida.
Na relação com os segmentos organizados da UERJ, a Reitoria também passou a atacar a associação de docentes (ASDUERJ). Sugeriu, em carta do pró-reitor de pessoal, lida por ele na assembleia sindical, a destituição da direção do sindicato. Além disso, a Reitoria se recusou a negociar diretamente com o comando de greve dos estudantes, preferindo o Diretório Central de Estudantes (DCE), mesmo com o desgaste deste sendo público. Membros da gestão atual teriam participação no escândalo de corrupção do CEDERJ e na cúpula do governo Cláudio Castro.
Em resumo, temos, de um lado, gestores distantes dos processos políticos que os elegeram. Estratégias políticas questionáveis foram usadas segundo uma interpretação conveniente da lei. Do outro, o movimento estudantil, que, apesar de mobilizado, poderia ter mais impacto se conseguisse manter as diferenças internas em segundo plano e agir em aliança com um espectro mais amplo, dentro e fora da universidade.
Engajar a população é a chave para pressionar figuras públicas que têm grande responsabilidade nas crises do estado do Rio de Janeiro. O fetiche pela escalada da confrontação direita deveria dar lugar à inteligência política. Estratégia clara, avanços e recursos táticos para compor alianças a partir da estratégia definida. Isso, sim, muda correlações de força.
Futuro incerto
Depois de 56 dias de ocupação, a PM do estado do Rio de Janeiro agiu com a truculência que lhe é atinente em manifestações de professores, técnicos e estudantes. O evento de brutalidade culminou com a inclusão do nome da UERJ no noticiário nacional, com a prisão do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) e três estudantes. Tamanha a repercussão que o presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), precisou ligar para o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, para lembrá-lo das prerrogativas do parlamentar. Horas depois, todos foram libertos.
O PSOL promete acionar o Supremo Tribunal Federal (STF). A ONG Justiça Global denunciará as medidas de abuso da força à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e à ONU. A Reitoria inventariará danos ao patrimônio e auxiliará na identificação de culpados. Para os estudantes atingidos por suas decisões, a Reitoria promete o pagamento de 500 reais mensais até dezembro.
Nada parece apontar para a mudança na direção das condutas dos protagonistas desses conflitos. Essas escolhas causarão consequências aos principais envolvidos a longo prazo. A criminalização e o ressentimento são péssimos investimentos para o futuro.
Educação pública, gratuita, de qualidade e acessível deve ser um acordo intergeracional. A universidade não apenas reflete as dificuldades do estado do Rio de Janeiro, mas também simboliza a defesa de um futuro mais inclusivo e equitativo. Se a decadência do estado não for enfrentada, a UERJ arrisca-se a se tornar um reflexo da desigualdade e da exclusão. Portanto, é vital trazer a UERJ de volta ao centro do debate político e social, garantindo que sua missão de promover educação de qualidade não seja comprometida.
*Ronald Vizzoni Garcia é doutor em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ/UCAM).
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