Liberalismos identitários

Imagem: Hoài Nam
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Por EDUARDO ELY MENDES RIBEIRO*

O liberalismo capitalista, a partir dos princípios que o orienta, estimula a assunção de posições pragmáticas individualistas, que vão à contramão do engajamento em projetos de sociedade inclusivos e solidários

“Liberdade” é uma palavra gasta, que de tão usada por (quase) todas as correntes de pensamento, acabou por perder qualquer sentido preciso. Ela é defendida pelos liberais e neoliberais, associada aos princípios individualistas e à recusa de intervenções governamentais; é defendida por todas as versões do anarquismo; e também pelos diversos movimentos identitários, que reivindicam o fim de um histórico de submissões e opressões; além, evidentemente, das diferentes correntes socialistas, que lutam pela libertação dos trabalhadores no contexto das relações de trabalho capitalistas.

Mas, como entender, ou fundamentar, estas diferentes perspectivas de liberdade? E quais seus limites? Lembro de um episódio, quando fazia minha formação psicanalítica e estudava filosofia: em uma conversa com Contardo Caligaris, perguntei-lhe como poderíamos entender a relação entre liberdade e determinação, sob uma perspectiva psicanalítica.

Afinal, se nos constituímos como sujeitos a partir de heranças genéticas e de relações sociais primárias, de onde vem esta suposta liberdade? Parecia-me que o fundamento desta liberdade só poderia ser metafísico, o que não combinava bem com a ideia que eu tinha da psicanálise. Ele me deu uma resposta que, na época, não entendi bem. Propôs que a liberdade poderia ser o exercício da determinação. Mas, isso não é contraditório?

A fala de Contardo Caligaris, mesmo que eu não a tenha entendido bem, ficou reverberando em mim, e acabei me autorizando a fazer uma pequena alteração na proposição que escutei: talvez possamos pensar que a liberdade não seja “o” exercício da determinação, mas que ela se situe “no” exercício da determinação. Afinal, não há como negar que somos ao menos parcialmente determinados pelos sentidos e valores do mundo em que vivemos, e pelas relações que mantivemos, mas estas determinações são múltiplas, e, muitas vezes, contraditórias. Entendo que este seja o contexto em que exercemos nossas escolhas, e afirmamos nossa singularidade.

O filósofo Alain Renaut[i] propõe que a ideia de liberdade possua dois modos distintos: a autonomia e a independência. A autonomia não seria uma liberdade radical, pois seria pautada por um regramento social estabelecido a partir da vontade e da liberdade coletivas. Ou seja, a liberdade enquanto autonomia parte do pressuposto da existência de uma humanidade comum, irredutível à afirmação de cada individualidade, e à qual cada indivíduo deve submeter-se.

Muito diferente seria o ideal de independência, em que se enfatizam as liberdades individuais, a preocupação consigo, o culto das felicidades particulares e a deserção do espaço público. A independência estaria associada a um individualismo extremo, algo semelhante a posição defendida pelos neoliberais.

Uma sociedade baseada na liberdade como independência não é difícil de imaginar, é uma selva onde impera a lei do mais forte (ou, do mais rico). Por outro lado, a possibilidade de uma sociedade baseada na liberdade entendida como autonomia dependeria da eficácia de um ordenamento social fundamentado em princípios largamente aceitos e compartilhados. Mas, como consolidar este ordenamento em sociedades em que coexistem e se sobrepõem uma variedade de códigos, valores e visões de mundo distintos? Seriam necessários valores éticos comuns capazes de reconhecer e legitimar as diferenças, mas também de produzir modos de relação que sustentem a coesão social.

Projeto nada fácil de acontecer, dado o avanço do neoliberalismo nas sociedades contemporâneas. Isto pode ser observado até mesmo em nossas relações cotidianas, onde a ideia de depender de outra pessoa, seja ela quem for, tende a ser fortemente condenada, talvez por remeter a nosso histórico de relações de opressão, dos pobres em relação aos ricos, das mulheres em relação aos homens, etc. Entretanto, muitas vezes não percebemos que, se existe algo que garanta a coesão social, algo que possa ser chamado de “laço fundamental”, este algo são as relações de dependência, enquanto expressões de uma reciprocidade permanente, e necessária, para a maioria dos membros de um grupo. Trata-se, portanto, de uma dependência estrutural e estruturante em relação à sociedade como um todo (enquanto sistema simbólico), e também aos sujeitos com os quais estabelecemos nossas trocas.

De qualquer forma, a outra opção, o ideal de liberdade sob a forma de independência, impõe ao sujeito moderno uma tarefa impossível: ele deve, ao mesmo tempo, ser livre e se fazer valer socialmente, ou seja, deve ser independente, mas deve buscar um reconhecimento social que lhe garanta um lugar e testemunhe seu valor, sua significação. Eis o paradoxo: para o exercício de uma liberdade radical, necessitamos do outro.

A sociedade moderno-contemporânea, ao propor uma igualdade de direitos, nos libertou de destinos impostos, pois, ao menos idealmente, ninguém mais deveria se apresentar como portador de insígnias herdadas (nome de família, local de nascimento, atividade econômica de seus pais); mas, por outro lado, nos lançou na difícil tarefa de construir um lugar no mundo, a partir de nossas escolhas e esforços.

É neste contexto, da relação de cada sujeito ou grupo social com a alteridade, que se impõe reconhecer os limites da liberdade e a fragilidade das identidades, pois, se não forem estabelecidas e reconhecidas normas que garantam a primazia do bem comum sobre os interesses particulares, corremos o risco de consolidar uma sociedade extremamente desigual, e potencialmente injusta, na medida em que cada sujeito (ou grupo social) fará uso de sua liberdade para construir o melhor lugar no mundo (identidade social) que conseguir, desconsiderando qualquer compromisso para com a coletividade.

Nesta direção, nas últimas décadas ganharam força as reivindicações identitárias, entendidas como uma demanda de reconhecimento e valorização, por parte de grupos sociais específicos. Estes movimentos denunciam com razão que a igualdade moderna é uma falácia, e que continuam existindo traços (cor da pele, sexo, gênero, origem étnica, religião) produtores de estigmatização. Frente a esta situação, é proposto que os portadores destes traços se unam para defender seus direitos.

Trata-se de uma reação absolutamente legítima, mas que nos coloca outra questão: se determinados traços ainda produzem identidades coletivas estigmatizadas, qual estratégia devemos adotar para combater estas injustiças? Fortalecer as identidades coletivas? Ou denunciar a estigmatização dos diferentes?

A psicanálise pode contribuir para esta discussão ao demonstrar que não há nada mais frágil e inconsistente, tanto no âmbito pessoal quanto no âmbito coletivo, do que a aposta em fundamentos como “liberdade” e “identidade”. Primeiramente, porque, como já foi apontado, o exercício da liberdade será sempre dependente de uma relação com o outro, ou seja, de uma articulação social. Na prática clínica psicanalítica, isto fica evidente, pois, ao contrário do que possa parecer para quem não tem esta experiência, não se trata de um “mergulho em si mesmo”, “da procura pelo seu verdadeiro eu, pela sua essência”.

Nada mais distante disso. Em uma sessão de análise, “comparecem” inúmeras pessoas: pais, parceiros amorosos, filhos, chefes, amigos, etc. Nós só conseguimos nos pensar, e afirmar algo da ordem do desejo que nos faz sujeitos, a partir de nossas relações sociais.

E qualquer identidade, da mesma forma, só se constitui e se sustenta a partir de uma dinâmica de reconhecimentos, “negociada” socialmente. Ou seja, no mundo contemporâneo, é completamente fantasioso, alguém, ou um coletivo, pretender que seu lugar no mundo seja estabelecido a partir de uma pretensa identidade, definida por qualquer forma de “atributo essencial”, como a cor da pele, o sexo ou o gênero. Do ponto de vista psicanalítico, toda identidade é absolutamente imaginária e inconsistente, o que não significa que ela não seja necessária.

Todos precisamos construir uma imagem de nós mesmos a partir de nossas interações sociais. Mas, esta “imagem”, esta “identidade”, será sempre tão diversificada e mutante, quanto são as relações que mantemos. Nenhum de nós “é” negro/branco, homem/mulher, hetero/gay, ou, ao menos, não somos apenas isto, pois nossa identidade não se reduz a qualquer traço.

No que se refere às transformações sociais em nossa história recente, desde os movimentos contraculturais da década de 1960, passando pela queda do Muro de Berlim, e os movimentos em defesa do multiculturalismo, a defesa da liberdade e da igualdade sempre esteve associada a ideais que contemplavam o reconhecimento e inclusão de todas as diferenças, excetuando evidentemente as reações da extrema direita. Mas, atualmente, vivemos um paradoxo: a democracia moderna se estabeleceu em oposição a crenças identitárias essencialistas, tais como as hierarquias sociais medievais, a escravidão e os nacionalismos xenófobos; mas acabou nos conduzindo à necessidade de produzir novas identidades coletivas, estas de caráter libertário, concebidas como estratégias para lidar com os fracassos da própria democracia.

Entretanto, nesta direção, corremos o risco de estabelecer uma ruptura em relação ao projeto democrático, fundado na ideia de universalidade, e que propunha que “o espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária”. (Safatle, 2012, p. 31.).

Isto nos leva a crer que possa estar sendo negligenciada a distinção entre o que opera no campo político mais amplo, onde seria desejável uma universalização de direitos e deveres; e o âmbito das relações interpessoais, onde as diferenças e singularidades deveriam ser reconhecidas, respeitadas e não submetidas a qualquer critério de hierarquização. Em outras palavras: as relações de poder, ou alianças, e a busca pelo reconhecimento, que acontecem nas diferentes interações sociais (trabalho, família, afetos), sempre singulares, deveriam estar subordinados aos fundamentos políticos da sociedade, estes, sim, de validade universal.

Segundo estes princípios éticos, o importante seria manter a luta pela igualdade e pela universalidade, sustentando a ideia de que a defesa dos direitos dos grupos marginalizados (negros, homossexuais, mulheres, etc.) não deva se transformar em práticas segregatórias e de entificação das diferenças, mas, ao contrário, em uma estratégia para constituição de uma sociedade igualitária e justa,[ii] onde o reconhecimento das diferenças seja respaldado por princípios universais.

Retomando esta questão sob outra perspectiva, percebe-se a ocorrência de um tensionamento entre universalidade e diferenças, por um lado, e entre individualismo e interesse social, por outro. No plano ético, seria importante e necessário compartilharmos de alguns valores universais, e, ao mesmo tempo, reconhecermos a legitimidade e a riqueza de uma diversidade de formas de ser. E, no plano micropolítico, construirmos em “equilíbrio tenso” entre interesses individuais e coletivos, sendo que os individuais nunca deveriam se sobrepor aos coletivos.

Na tentativa de equacionar estes tensionamentos ético-políticos, Susan Neiman[iii] propõe que o pluralismo cultural (e a diversidade social, de forma ampla) não seja visto como uma alternativa ao universalismo, mas sim como um aperfeiçoamento dele. Algo que Aimé Césaire chamou de “um universal enriquecido por cada particular”.[iv]

No que se refere aos movimentos identitários, podemos entender que cada uma de suas denúncias e reivindicações contribui para dar novas configurações ao universal, representado pela ideia de direitos humanos. Ou seja, trata-se de reconhecer o que há de universal em cada particular.

Por movimentos inclusivos

As aceleradas transformações por que passa a sociedade contemporânea fazem com que estruturas e práticas pós-modernas, onde as comunicações globalizadas interligam uma imensa variedade de relações sociais “tribalizadas”, convivam com estruturas e práticas pré-modernas, fundadas em valores tradicionais e religiosos.

Este é o contexto em que surgiram os movimentos identitários, na medida em que o desenvolvimento das sociedades liberais se estabeleceu sobre estruturas sociais ainda alicerçadas sobre relações sociais hierarquizadas, onde especialmente mulheres e negros ocupavam lugares subalternos. Ou seja, a partir de pressupostos igualitários, criamos uma sociedade onde, no exercício de nossa liberdade, reproduzimos desigualdades historicamente estabelecidas.

Neste sentido, se mostrava necessária a união dos integrantes destes segmentos sociais oprimidos para que eles se fortalecessem, ganhassem visibilidade e denunciassem os mecanismos de exclusão que os afetavam, e ainda afetam. Isso de fato aconteceu. Tanto o feminismo, quanto os movimentos negro e LGBTQIA+ têm conseguido chamar a atenção para direitos que lhes foram historicamente subtraídos, e defender medidas que garantam a reparação destas injustiças.

São inegáveis os avanços e conquistas destes movimentos. Poucos discordariam de que, ao menos na maioria dos países ocidentais, mulheres, negros e a população LGBTQIA+, usufruem hoje de mais direitos do que ocorria há algumas décadas atrás. Certamente, ainda há muito a ser conquistado, e esta é a discussão que está sendo proposta: como avançar? Quais são os entraves para estes avanços? Quais os limites das estratégias até agora adotadas?

Esta reflexão se torna necessária porque há algo na estratégia usada por estes movimentos que pode estar dificultando, ou atrasando, o avanço rumo a seus objetivos. Trata-se do que eles consideram ser seu “comum”, ou seja, o elemento que os une. Em seus discursos têm prevalecido o entendimento de que os fatores que definem e dão unidade a estes grupos são a cor da pele, o sexo e a orientação sexual.

Mesmo que se entendam as razões pelas quais estes movimentos assim se constituíram, e a eficácia das ações até agora desenvolvidas, é importante notar que eles esbarram em dificuldades para ultrapassar o âmbito das conquistas pontuais de direitos, e produzir efetivas transformações sociais. Para que isto ocorra, mostra-se necessário focar no mais importante, ou seja, no reconhecimento de que o que há de comum nestes casos é a própria opressão e o desrespeito. São os princípios éticos que, ao menos supostamente, deveriam nortear as relações em nossa sociedade, como o respeito às diferenças, a igualdade de oportunidades, a liberdade sexual, a liberdade de crença, etc., que estão sendo violados, e que constituem o “comum” em todos esses casos. Como disse Frantz Fannon[v], “todas as formas de opressão são idênticas, pois se aplicam ao mesmo objeto: o homem”.

Outro obstáculo enfrentado deriva do fato de que os ideais universalistas enfrentam muitas críticas e desconfianças, mesmo em alguns segmentos da esquerda. É provável que isto ocorra a partir de uma confusão entre dois projetos absolutamente distintos: o primeiro é representado pelas ambições imperialistas de algumas nações, que pretendem impor seu modo de viver a outras sociedades, partindo do princípio que seu modelo de sociedade seria o mais evoluído e justo, e, portanto, eles estariam desempenhando a nobre missão de libertar as sociedades mais atrasadas do obscurantismo. Obviamente, no âmbito do sistema capitalista, estas intenções não seriam tão nobres assim, e, muito menos, destituídas de interesses econômicos.

Certamente, este projeto universalista deve ser objeto de fortes críticas. Mas, existe outra possibilidade, representada pelo projeto que defende os direitos humanos universais, que incluiriam o respeito às diferenças e a defesa da liberdade, entendida como autonomia.

É verdade que o pacto social moderno nunca foi capaz de produzir sociedades equitativas, mas este é o modelo que organiza todas as sociedades democráticas e, como poucos ainda acreditam em revoluções, só nos resta tentar aprimorá-lo. Neste caso, trata-se de considerar que os danos históricos causados a pessoas e grupos específicos derivam do funcionamento da sociedade como um todo, pois, a coesão e a justiça social dependem da confiança na efetividade dos princípios que regem as relações entre seus integrantes.

Com o avanço do individualismo, atualmente não podemos contar, nem com a estabilidade (que poderíamos hoje considerar injusta) das formas tradicionais de relação, em que cada sujeito nascia em um lugar social determinado e recebia uma “identidade”; nem com a segurança prometida pelo contrato social democrático-liberal, onde os mecanismos de organização e gestão social deveriam garantir as condições necessárias para uma vida digna. Ou seja, atualmente não é fácil acreditar na existência de um laço social que promova equidade, justiça e segurança.

Esta fragilidade de nossa organização social ajuda a entender a existência do racismo estrutural, do machismo estrutural, e a dificuldade de conviver com a diversidade de formas de viver e de gozar. E são estas características “estruturais”, resistentes a mudanças, que fizeram com que a criação de movimentos identitários se mostrasse importante e necessária, na medida em que fortaleceram a percepção de que nossos códigos e instituições ainda não são capazes de nos proteger daqueles que reagem violentamente às ações sociais voltadas a promoção de mais equidade e tolerância para com a diversidade.

Entretanto, é lamentável que tenha sido necessária a criação de movimentos identitários e a proposição de ações afirmativas, para dar efetividade aos princípios e valores que constituem o fundamento de nosso laço social. De qualquer forma, atualmente, seria um avanço que estas ações fossem assumidas como estratégias de políticas públicas, e não como reivindicações de grupos específicos. Afinal, são os princípios que organizam as relações da sociedade como um todo que estão sendo violados. E, neste sentido, não há por que reforçar traços pretensamente identitários que queremos que desapareçam, ao menos enquanto produtores de estigmatizações e privilégios coletivos.

Seguindo nesta direção, faz sentido o argumento muito utilizado pelos militantes e teóricos dos movimentos identitários que, mesmo reconhecendo que o ideal seria que ninguém fosse julgado e avaliado pela cor de sua pele, pelo seu sexo, pelo seu gênero, pela sua crença ou etnia, considera estrategicamente necessário agrupar as pessoas a partir destas características historicamente desvalorizadas, dotando-lhes de voz e visibilidade, para que, em um segundo momento, depois de empoderados e de verem reconhecidas e sanadas as injustiças, estes grupos possam se dissolver, e todos juntos partilhar da constituição de uma sociedade mais justa.

Esta estratégia realmente fortaleceu cada um destes segmentos sociais, mas tudo indica que chegou a hora de avançar em direção a um projeto social menos fragmentado e mais solidário, pois dificilmente práticas em defesa de interesses de grupos específicos conduzirão a uma sociedade mais igualitária e voltada para o bem comum. A questão que se coloca é a de como promover uma articulação destes movimentos.

Da exclusão ao monopólio da fala

Reunir é muito mais difícil do que dividir. A história moderna tem demonstrado isto a todo o instante.

Racismo, homofobia e misoginia são heranças histórico-culturais que têm sido combatidas. Mas, é interessante notar que, ao menos inicialmente, este combate era voltado a uma universalização de direitos, e não a uma segmentação social a partir de traços identificatórios. O foco era a universalidade, e não a diferença.

Esta posição é claramente expressa por várias referências importantes para os movimentos identitários. No movimento negro, por exemplo, em 1930, Ângela Davis assim se manifestou a respeito da união de forças contra a violência racista nos EUA: “Essas corajosas mulheres brancas sofreram oposição, hostilidade e até ameaças de morte. Suas contribuições foram inestimáveis no interior das cruzadas contra os linchamentos.” (Bosco, 2017, p. 22)

Também Frantz Fannon[vi] recusa qualquer estratégia de produção de uma “identidade negra”: “Minha pele preta não é um depósito para valores específicos… Não tenho nem o direito nem o dever de exigir reparações pelos meus ancestrais subjugados. Não há nenhuma missão negra. Não há nenhum ônus branco. Não quero ser vítima das regras de um mundo negro… Eu não sou um escravo da escravidão que desumanizou meus ancestrais”. […] “Para nós, quem adora os negros é tão `doente´ quanto quem os execra.” […] “Consideramos que um indivíduo deve se inclinar a assumir o universalismo inerente à condição humana.”

E, mesmo mais recentemente, no âmbito do movimento Black Lives Matter, 54 % dos manifestantes se identificavam como brancos,[vii] o que deixa claro que não se tratava de um movimento dos negros, mas, sim, de um movimento contra o racismo.

Então, retomando a questão das identidades coletivas, não há porque supor que seja necessário que estes movimentos que reivindicam igualdade se posicionem a partir de oposições identitárias, pois, o campo das identidades, que se estabelece a partir das diferenças, se situa no âmbito das singularidades, enquanto a defesa da igualdade, esta sim, deve se dar no plano coletivo.

O fato é que a fragilização destes ideais sociais universalistas tem impulsionado os projetos particulares, voltados a defesa de interesse de segmentos sociais específicos. É nesse contexto que se fortalece a reivindicação da exclusividade dos “lugares de fala”, baseado na ideia de que só o oprimido tem legitimidade para falar de sua opressão.

E é a partir de um uso impreciso desta expressão, que muitos apoiadores das “causas identitárias”, que não possuem a mesma história de discriminação, passaram a ser constrangidos a se silenciar, sob a alegação de que eles já usufruíram por tempo demais do domínio discursivo, e que é chegada a hora de dar voz aos oprimidos.

Ora, temos razões para acreditar que o lugar de fala será sempre singular: cada sujeito constrói seu lugar a partir de um entrecruzamento de experiências, contextos e relações, que podem ter semelhanças, mas serão sempre únicos.

Nossos lugares de fala não se deixam reduzir a qualquer traço que tenhamos em comum, pois muito além, ou aquém, das generalizações subentendidas em alguns projetos identitários, o que se percebe é uma pluralidade de posições, como por exemplo: mulheres que incorporaram e naturalizaram uma cultura machista, gays que se acham portadores de uma anomalia, pessoas negras que se consideram integradas e se recusam a serem definidas pela cor de sua pele, pais conservadores que revisaram suas posições homofóbicas ao descobrir que o amor que têm pelos seus filhos homossexuais é maior do que seus preconceitos, homens e mulheres que enfrentam de formas diferentes o encontro/confronto com a diversidade; ou seja, pessoas que assumem seus lugares de fala a partir de suas histórias, afetos e escolhas, e que não podem ser reduzidas a figurantes de identidades coletivas.

Uma alternativa seria considerar que, mais importante do que garantir a certos grupos sociais a exclusividade do direito de defender suas causas, a partir da especificidade de seus lugares de fala, seria ampliar as condições de escuta. Mas, para que haja uma escuta é necessário que se estabeleça uma relação não-acusatória e não-persecutória. Trata-se de criar condições para que o outro seja percebido a partir de sua singularidade, e que as diferenças deixem de ser objeto de desqualificações.

Afinal, na vida cotidiana, nossas relações e afetos não são restritos aos nossos semelhantes, àqueles que partilham do mesmo sexo, gênero e/ou origem. Vivemos em permanente contato com a diversidade, e quanto mais nos aproximamos dessas pessoas diversas, e as conhecemos como sujeitos, com seus desejos e temores, mais desenvolvemos sentimentos empáticos, mais somos capazes de nos revoltar com as injustiças sofridas. Assim…

Quando uma mulher relata que, durante toda sua vida, teve medo de cruzar com homens nas ruas, sempre sentindo a necessidade de desviar seu olhar, pois sabia que poderia ser objeto de uma investida desrespeitosa;

Quando afrodescendentes relatam que muitas vezes passaram pelo constrangimento de ver que outros passantes mudavam de calçada, pois temiam que fossem assaltantes;

Quando casais homossexuais relatam ter recebido inúmeros insultos, ou mesmo agressões, simplesmente por amarem pessoas do mesmo sexo.

Estes relatos, e muitos outros, são capazes de nos afetar, não necessariamente por termos passado por experiências parecidas, mas por partilharmos de uma mesma humanidade, e também conhecermos sentimentos de insegurança, impotência, humilhação e medo.

Neste sentido, para quem eles devem ser endereçados? Para os que militam nas mesmas causas, reforçando um sentimento de vitimização coletiva? Ou para a sociedade abrangente, para que cada um, a partir de seu lugar de fala e de escuta, seja capaz de se inserir em movimentos de indignação, resistência e transformação?

Francisco Bosco[viii] trouxe para este debate a existência das estratégias bridging e bonding, cujos nomes já explicam a diferença. A primeira propõe pontes entre todos aqueles que são solidários a uma mesma causa, enquanto a segunda defende a constituição de coletivos identitários exclusivos, onde os “de fora” poderiam ter, no máximo, uma participação marginal. No atual estágio do percurso dos movimentos identitários, não seria o caso de repensarmos a estratégia política mais adequada e eficaz?

Além disso, como nos lembra Vladimir Safatle[ix], a identidade dos oprimidos é definida pelo opressor. É ele que estabelece e hierarquiza as diferenças que produzirão a opressão. Talvez tenha chegado a hora de nos livrarmos desta montagem perversa, e acreditarmos que qualquer possibilidade emancipatória passe pela criação de uma sensibilidade generalizada voltada à desconstrução das distinções produzidas pelos opressores.

Estratégias possíveis

Retomando as considerações iniciais acerca das relações que atualmente são estabelecidas entre os valores atribuídos à liberdade e à identidade, e acerca do avanço do ethos individualista, é possível afirmar que nosso desafio enquanto sociedade é encontrar/produzir elementos capazes de garantir um mínimo necessário de coesão e justiça social. E, se formos um pouco mais ambiciosos e otimistas, recriar ideais e utopias capazes de direcionar movimentos voltados ao bem comum, e à diminuição dos conflitos e violências, tendo em vista que são justamente nossas contradições que nos impelem a promover estas transformações.

Este entendimento é frequentemente criticado por ser considerado ingênuo e inexequível, já que os conflitos seriam inerentes à sociabilidade humana, o que é uma verdade irrefutável. Entretanto, por outro lado, isto não significa que devamos abdicar de nossos ideais, pois, como propõe Neimann.[x] “Os ideais não são medidos pelo grau de adequação à realidade: a realidade é julgada pelo grau de adequação aos ideais”.

Quando abrimos mão de projetos coletivos, voltados para a totalidade da sociedade, naturalizamos o confronto entre os diferentes. Se definido a partir de “identidades”, o âmbito do coletivo tende a ficar cada vez mais restrito, e passa a se afirmar a partir do confronto com outros coletivos, afinal, nesta situação de luta pelo reconhecimento, o outro precisa ser confrontado/afrontado.

A história demonstra que os integrantes dos movimentos constituídos a partir de identidades coletivas, sejam eles de direita ou de esquerda, sempre se consideraram prejudicados pela forma como se dão as relações sociais, e passaram a produzir o entendimento de que a superação de seus infortúnios deveria acontecer através da defesa combativa de sua identidade, e não pelo esforço permanente de construção e implementação de relações sociais calcadas na aceitação e convivência com diferenças não-hierarquizadas.

No que se refere aos movimentos identitários voltados à promoção de igualdade e justiça social, o que se mostra desafiador neste momento é a superação do isolamento, pois cada um destes movimentos tem suas pautas específicas, e, atualmente, o que se mostra necessário é sua progressiva abertura e aliança com sujeitos e grupos “não-identitários”, reunindo estas demandas e propostas em um projeto de sociedade orientado por uma utopia compartilhada.  Lembrando que, como foi dito acima, utopias não são imagens idealizadas, impossíveis de serem realizadas; utopias são vetores do desejo.

Devido a seu caráter reacionário, as forças conservadoras têm muito mais facilidade para se unir, pois sua referência é o passado, seja ele qual for (a ditadura militar, a estratificação social, a moral religiosa, o papel subalterno de mulheres e afrodescendentes). Elas têm um ideal para afirmar e defender, e inimigos a combater: todos os que são relacionados a transformações sociais que elas não compreendem e não aceitam, e que responsabilizam por suas eventuais frustrações.

Do outro lado do espectro político, o que se percebe são movimentos e coletivos constituídos a partir de objetivos distintos, mas todos relacionados à defesa de modelos sociais inclusivos e ecologicamente sustentáveis. O problema é que atualmente esses movimentos não se encontram reunidos em torno de um projeto de sociedade. Ao contrário do campo da direita, que possui uma bandeira (no Brasil, ela se materializa na própria bandeira nacional), o chamado campo progressista tem muitas, o que significa não ter nenhuma capaz de representar um projeto comum.

O grande desafio a ser enfrentado é a atual dificuldade de produzir encantamentos coletivos com grandes projetos de construção e transformação social, como os que estavam presentes nos movimentos contraculturais e nos vários projetos socialistas, ou mesmo, social-democratas.

O liberalismo capitalista, a partir dos princípios que o orienta, estimula a assunção de posições pragmáticas individualistas, que vão à contramão do engajamento em projetos de sociedade inclusivos e solidários. Não é por outra razão que os neoliberais defendem o estado mínimo.

Considerando os avanços da extrema direita, é apenas aparentemente contraditório que ocorra uma aliança entre os projetos neoliberais e as crenças e práticas religiosas mais moralistas, pois a “liberdade individualista” não se sustenta sem que se estabeleçam condições para a produção de identidades sociais, como as que podem ser promovidas pelos sentimentos de pertencimento a uma pátria, a uma família ou a uma religião. Trata-se de uma aliança entre certas concepções de liberdade e identidade, que conspiram contra a universalidade dos direitos e o respeito à diversidade.

Obviamente, os movimentos auto-intitulados “identitários” assumem outros objetivos, mas, nesta fase de seu desenvolvimento, devem escapar da armadilha de se verem presos à ideia de identidade.

Frente a esta situação, alguns movimentos podem adquirir uma potência transformadora. Um deles é o pensamento decolonial, que propõe um descentramento dos quadros de entendimento produzidos pela tradição liberal/capitalista, e abre novas possibilidades de conceber e vivenciar nossas relações sociais. Outro é o movimento ecológico, na medida em fica cada vez mais evidente que o modelo econômico atual está trazendo prejuízos evidentes para todos os habitantes do planeta. Ou seja, estamos todos no mesmo barco.

Neste sentido, mais uma vez, não se trata de opor identidades ou visões de mundo, e, sim, de enriquecer nossa experiência com a abertura para outras formas de relações com o outro e com a natureza, que possam nos ajudar a lidar com os impasses e conflitos com os quais nos deparamos.

*Eduardo Ely Mendes Ribeiro é psicanalista e doutor em antropologia social pela UFRGS.

Referências


Bosco, Francisco. A vítima tem sempre razão?: Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro. São Paulo: Todavia, 2017.

Césaire, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta. 2020.

Fannon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

Neimann, Susan. A esquerda não é woke. Belo Horizonte: Editora Ayiné, 2024.

Renaut, Alain. A Era do Indivíduo. Lisboa: Instituto Piaget, 1989.

Safatle, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012.

Safatle, Vladimir. Alfabeto das colisões. São Paulo: Ubu Editora, 2024.

Notas


[i]  Ver Renaut, 1989.

[ii] Ver Safatle, 2012, p. 34.

[iii] Ver Neiman, 2023, p. 70.

[iv] Ver Césaire, 1957.

[v]  Ver Fannon, 2020.

[vi]  Ver Fannon, 2020.

[vii]  Ver Neimann, 2024, p. 47.

[viii]  Ver Bosco, 2017.

[ix]  Ver Safatle, 2024.

[x]  Ver Neimann, 2023, p. 97.


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