A múltipla escolha do Enem

Imagem: Leeloo The First
image_pdf

Por HENRIQUE BRAGA & MARCELO MÓDOLO*

De Caetano Veloso aos gabaritos divergentes

Logo após a publicação da prova de Linguagens do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), o tropicalista Caetano Veloso submeteu-se por um instante a uma das questões enfrentadas por mais de 3 milhões de estudantes brasileiros, em 5/11/2023. Em vídeo publicado em suas redes sociais, o artista analisou as alternativas de um item que explorava, comparativamente, duas canções suas: a eterna “Alegria, alegria” e a recente “Anjos tronchos”.

O vídeo é delicioso: com a tranquilidade de quem caminha contra o vento, sem lenço, sem documento, Caetano confessa: “Quando eu olhei, achei que são todas”. A atriz Paula Lavigne, sua esposa, pergunta, enquanto grava: “Você não acha que é a B”. “É tá certo”, Caetano Veloso responde e, mais adiante, conclui: “Mas a B e a D são aparentemente as mais apuradas”.

A dificuldade que o próprio autor do texto enfrenta ao tentar decidir por uma única alternativa suscita questionamentos não apenas sobre o modelo de avaliação por itens de múltipla escolha, como também sobre a própria leitura. Existiria a “leitura correta”? Alguém pode decretar o que um texto quer dizer?

A construção do sentido não é via de mão única

Em artigo anterior, discutimos por que não se pode facultar ao autor a primazia da última palavra sobre os sentidos de seu próprio texto, por mais contraintuitivo que isso possa parecer. Estudiosos de Linguística Textual sustentam que a intencionalidade é sim um dos fatores de textualidade, porém não o colocam acima de outros mais palpáveis e relevantes, como a coesão (que diz respeito ao manejo de formas linguísticas que dão unidade ao texto) e a coerência (que, grosso modo, corresponde à unidade semântica entre as partes do texto, bem como à unidade de sentido entre o texto e o universo – real ou fictício – em que ele se insere).

Nessa perspectiva, a própria textualização (algo como a construção de significados por meio de textos) não é entendida como uma criação individual totalmente autônoma, como se o enunciatário (leitor/ouvinte) apenas recebesse conteúdos depositados em sua mente pelo enunciador. Antes, nos termos de Luiz Antônio Marcuschi, “um texto é uma proposta de sentido e ele só se completa com a participação do seu leitor/ouvinte”.

Em outros termos, os sentidos do texto não existem in vitro e somente se realizam quando o leitor/ouvinte pode mobilizar conhecimentos linguísticos e culturais para reestabelecer a coesão e a coerência propostas pelo autor. Desse modo, além de “querer dizer”, o enunciador utiliza recursos linguísticos disponíveis na língua para orientar seus interlocutores nessa tarefa de recorrer a um conhecimento partilhado e, assim, construir significados. Se não existe sentido sem colaboração, o autor não pode ser visto como o “todo poderoso senhor de seu texto”.

Gabaritos de exames – a regra é a convergência

Ainda tratando da última edição do Enem, os gabaritos extraoficiais publicados após o exame são um interessante indício de que é sim possível elaborar questões que avaliem a competência leitora dos estudantes. Antes da divulgação do gabarito oficial, diferentes grupos educacionais analisam os itens e publicam suas respostas. Embora as resoluções sejam realizadas por diferentes professores, em distintas regiões do país e sem acesso à resposta esperada, a regra é a convergência – normalmente sacramentada posteriormente pelo Inep, órgão responsável pela prova.

Como não poderia deixar de ser, contudo, são as eventuais divergências que costumam chamar atenção. No caso do item que envolvia as canções de Caetano Veloso, os gabaritos extraoficiais previam a alternativa B como correta, o que se confirmou no gabarito oficial. Em outro item, porém, ocorreu fenômeno curioso: todos os gabaritos extraoficiais previam uma mesma resposta, posteriormente contrariada pelo gabarito do Inep. Trata-se desta questão:

Embora diversos grupos educacionais previssem a alternativa B (possivelmente entendida como a “menos ruim”), foi indicada a opção C como “correta”. Nesse caso, alguns talvez lamentem não podermos contar com o vaticínio do escritor Olavo Bilac, que nos deixou no distante ano de 1918. Ainda assim, recorrendo a elementos textuais (do texto-base e da alternativa), podemos argumentar com segurança que, salvo melhor análise, há um equívoco na elaboração do item.

Essa discordância em relação ao gabarito oficial se deve a elementos textuais bastante palpáveis, por serem recursos linguísticos exaustivamente estudados pela tradição gramatical: o uso do artigo e os graus do adjetivo.

Conforme a alternativa C, o texto de Bilac anteciparia “o futuro apagamento das marcas da escravidão no contexto social”. Por mais que seja sutil, há diferença entre “apagamento de marcas” (sem uso de artigo) e “apagamento das marcas”. No primeiro caso, a ausência de artigo faz com que o substantivo “marcas” não assuma um referente específico, sugerindo assim que algumas marcas esparsas desapareceriam – o que seria uma leitura aceitável, embora redutora em relação ao texto e ao que solicita o enunciado do item.

No entanto, tal como está redigida a alternativa, o artigo definido atribui ao substantivo uma referência específica e, estando no plural, tal referente seria a totalidade das ditas “marcas da escravidão” – as quais, segundo o gabarito, desapareceriam no futuro, na visão de Olavo Bilac. Tal interpretação é pouco plausível se confrontada com o primeiro parágrafo do texto, que menciona uma certa memória do período, a ser registrada até mesmo em museus.

É também obstante a essa leitura – que, a nosso ver, poderia ser revista pelo Inep – o início do segundo parágrafo. Tal passagem se inicia por este período, no qual destacamos o grau comparativo do adjetivo: “Mas a sua indignação nunca poderá ser tão grande como a daqueles que nasceram e cresceram em pleno horror (…).” O excerto defende a impossibilidade de a indignação futura atingir a mesma intensidade daquela experimentada pelos que viveram a escravidão, porém, ao fazê-lo, o enunciador assume que haverá sim indignação. Isso impede o leitor de inferir, com base no fragmento, que o texto de Bilac destaca as mazelas do período escravagista ao “antecipar o futuro apagamento das marcas da escravidão no contexto social”.

Exceções confirmam a regra

Dada a importância de uma prova como o Exame Nacional do Ensino Médio, é mais do que desejável diminuir ruídos como o que comentamos acima. No entanto, isso não pode ser confundido como uma crítica geral ao exame: pelo contrário, deve ser celebrada uma prova de Linguagens que privilegia amplamente a compreensão de textos e as variações linguísticas, induzindo currículos de educação básica a seguirem o mesmo caminho.

Além disso, a predominante convergência entre os gabaritos extraoficiais e o gabarito oficial reforça o ponto central deste artigo: a materialidade do texto faz com que o ato de ler seja uma atividade menos subjetiva e intuitiva do que, por vezes, sugere o senso comum.

*Henrique Santos Braga é doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP.

*Marcelo Módolo é professor de filologia na Universidade de São Paulo (USP).

Uma primeira versão deste artigo foi publicada no Jornal da USP.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES