Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário sobre o livro de Roberto Saviano
1.
O jornalista investigativo e escritor Roberto Saviano (1979), napolitano de origem judaica, publicou em 2006 Gomorra: viagem ao império econômico e ao sonho do domínio da Camorra – no Brasil a edição é de 2009, com o subtítulo “a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana”. Tornou-se um bestseller, com 10 milhões de exemplares vendidos mundialmente em mais de 50 países.
O livro foi adaptado para o cinema em 2008, dirigido por Matteo Garrone (1968) – ambos, texto e filme, receberam vários prêmios nacionais e internacionais e, em 2014, uma série televisiva italiana foi realizada com êxito.
Gomorra documenta a atuação da Camorra e suas relações com as instituições do país. A partir de outubro de 2006 Roberto Saviano vive sob escolta policial permanente, pois foi jurado de morte pela máfia, o que o obriga a mudar constantemente de endereço e a não frequentar lugares públicos. Ele teve que deixar a Itália em 2008, levando-o a fazer o seguinte comentário: “não posso mais viver minha vida sem pedir autorização” (às autoridades de segurança e ao Ministério do Interior italiano).
Roberto Saviano publicou ainda, dentre outros, A beleza e o inferno: escritos 2004-2009 (2010); Vem daí comigo (2013); Zero, zero, zero (2014), reportagem sobre a cocaína e as conexões globais que funcionam em torno de seu comércio, passando por distintos níveis de organização; Os meninos de Nápoles (2016), adaptado para o cinema com o título de Piranhas (2019), dirigido por Claudio Giovannesi (1978); Beijo feroz (2017); Noi due ci apparteniamo: sesso, amor, violenza, tradimento nella vita dei boss (2024); Falcone: Roman (2024).
Publicou, também, O contrário da morte: cenas da vida napolitana (2009), que passo a comentar.
2.
Aparentemente, O contrário da morte não empolgou os leitores brasileiros: editado por aqui em 2009, apenas tomei conhecimento de sua publicação no final de 2016, comprando um exemplar por mero acaso em máquina de vendas de ponta de estoque de livros que existia nas estações mais movimentadas do metrô de São Paulo, pagando preço irrisório pelo mesmo.
A obra apresenta duas histórias, “O contrário da morte” (p. 7-64) e “O anel” (p. 65-91). Não pretendo me alongar na segunda, que é o relato da morte de dois jovens inocentes pela ação da Camorra. Vincenzo, 24 anos, pedreiro e Giuseppe, 25 anos, marceneiro, estavam num domingo reunidos com amigos na praça da cidade, e não é preciso mais do que isso para ser morto no sul da Itália. Isso lembra em muito os romances de Leonardo Sciascia (1921-1989), nascido em Rocalmute, comuna na província de Agrigento, região da Sicília. Tive a oportunidade de escrever sobre seu A denúncia no site A Terra é Redonda.
No que se refere à primeira história, que dá título ao livro, há muito a ser dito. Optei por transcrever os trechos que considerei mais significativos das falas de Maria, noiva de Enzo, um pobre ragazzo do sul da Itália que perdeu a vida muito cedo.
“O contrário da morte” com o subtítulo “Retorno de Cabul”, tem como epígrafe versos de uma canção popular italiana, “Carmela” (1975), cantada por Sergio Bruni (1921-2003):
“Você chora só se ninguém vê
E grita só se ninguém ouve,
Mas não é água o sangue que corre nas veias
Carmela, Carmè
E o amor é o contrário da morte…”
Roberto Saviano escreve que a maior parte das missões humanitárias é composta por soldados do sul da Itália e que mais da metade dos soldados mortos também é do sul. “A região é cheio de veteranos, soldados que voltaram da Bósnia ou, ainda, de Moçambique. Soldados que voltaram do Kosovo, soldados que voltaram da Somália, soldados que voltaram do Iraque, soldados que voltaram do Líbano e que esperam voltar para lá. Soldados que voltaram somente como corpos carbonizados, dilacerados, em pedaços” (p. 26).
“Para frear o desejo de se alistar, é preciso ter nascido com um único rim, pé chato ou retinite pigmentosa que condena à cegueira (…) E mesmo nesses casos, eles fazem o pedido de alistamento. Tentam, ao menos (..) Eles torcem por uma distração, por serem examinados por um médico cego e surdo. Aqui, até os pernetas tentam se alistar. e se antigamente, com a idade de cumprir o serviço militar obrigatório, milhares de jovens eram dispensados valendo-se de fístulas anais inexistentes ou de frascos com urina contaminada com sangue, comprados a peso de ouro, hoje, que o exército é sinônimo de trabalho e salário, isso não acontece mais” (p. 26-27).
A objeção de consciência “…era uma opção apenas dos rapazes de esquerda, a grande maioria estudantes que podiam passar aquele ano sem ganhar nada. Todos os demais consideravam o quartel uma oportunidade e um ano de salário perdidos, a oportunidade para averiguar se o quartel e o uniforme eram preferíveis ao canteiro de obras ou à fábrica, ao caminhão nas estradas da Europa ou ao longo dos dias atrás do balcão de um bar. Todos os parentes de Maria se alistaram ou tentaram se alistar, e Maria conhece todas as namoradas e esposas de vários veteranos” (p. 28).
Sobre o luto por Enzo e o hábito do luto na região, ela e todas as mulheres de sua família “…vestem-se de preto há meses. Em breve completará um ano. Um luto eterno, que não acaba. O luto por Enzo,ao qual se amarra o de outro jovem que morre, expira, some. E o rapaz gera um novo luto que se estende a todos, aos vizinhos, amigos, tias, primas afastadas. Na minha cidade”, fala Saviano, “todas as amigas de minha tia usavam constantemente roupas pretas, porque havia sempre um namorado assassinado, um parente distante caído de alguma laje, o respeito devido a alguma família que perdera alguém. E, quando não havia luto, mantinha-se o figurino, porque em breve, com certeza, aparecia um. Não convinha tirá-lo. Quando morre um sexagenário, quando se morre de doença, o luto se restringe aos parentes mais próximos. Quando morre um jovem, ele deve ser de todos. Como um peso a ser compartilhado ou um infortúnio do qual não se pode escapar” (p. 32-33).
Ainda, segundo Roberto Saviano, em sua terra, quando alguém morre no front, “a vizinhança inteira se veste de preto. Quando criança, eu esperava os batizados e o Natal para não ver as mulheres da minha casa vestidas assim. Nos batizados, as roupas tinham que ser coloridas, e no Natal era obrigatória a cor vermelha. Mas minha tia ficava sem graça e, de tão acostumada com o preto, continuava a se vestir como sempre, não se reconhecia nas cores” (p. 33).
Também na casa de Maria, que tem 17 anos e já é uma menina viúva, todos se vestem de preto. Enzo foi numa missão de paz. Quando se embarca numa missão dessa natureza, ganha-se o triplo, às vezes o quádruplo (p. 46). Maria carrega no pescoço a plaquinha com a identificação de Enzo (p. 48). “Nenhuma cruz, nenhum santinho, nenhum símbolo de beata, nenhum rosário. Só a plaquinha de identificação de Enzo. Deformada pelo fogo, pelo calor” (p. 49).
E relembra a cena durante o funeral. “Todos os amigos da academia tinham as mãos enfaixadas, todos sentados nos primeiros bancos da igreja. No momento da comunhão, não se colocaram em fila diante do padre. Na fila postaram-se apenas as idosas do lugar, enquanto todos os rapazes, militares e civis, veteranos e companheiros do exército, seguravam suas placas de identificação. Eles ergueram o cordão pendurado ao pescoço e, no exato instante em que o padre oferecia a hóstia às mulheres, puseram na boca a hóstia de metal. Olhei ao redor. Todos faziam o mesmo. Peguei a minha plaquinha e a apertei, também entre os dentes. Eu também a carrego, e tenho a impressão de que desde quando nasci. É uma placa militar, tem gravados o meu nome, sobrenome, a data e o local de renascimento, o grupo sanguíneo e uma frase em latim de Terêncio. O bastante para ser reconhecido, o suficiente para sintetizar quem sou: para me carregar em forma escrita em volta do pescoço. Todos ou quase todos que conheço, têm a plaquinha, a biografia de metal pendurada. Parece um símbolo do estilo dos jovens da periferia, uma provocação, uma declaração do estado permanente do conflito metropolitano” (p. 49-50).
Comentando acerca dessa plaquinha de metal, fala que a mesma “é um objeto grosseiro, incômodo. No inverno, esse selo de metal provoca calafrios ao entrar em contato com a pele num abraço. Já no verão, cola no peito com o suor, e, quando se faz amor, fica balançando no nariz da garota ou acaba em sua boca. Todos os meus amigos, sem exceção, me mostraram a placa mordida, segundo eles, por suas mulheres: eu forçava a vista e não enxergava nada, senão arranhões microscópicos. No imaginário deles, cada arranhão é um canino feminino diferente” (p. 52-53).
Enzo completara 21 quando embarcou para o Afeganistão “com o intuito de pagar seu casamento e dar entrada numa casa” (p. 54). Ela viu o noivo alistar-se e partir para a guerra sem treinamento militar, sem saber atirar nem se defender. “Uma noivinha viúva. Uma noivinha pura. Dezessete anos. A sensação é aquela de estar diante de algo sagrado. Uma espécie de imagem arquetípica que evoca uma vestal trágica de outras épocas. As meninas que ficavam viúvas de soldados meninos” (p. 55).
Maria declarou sobre a morte do noivo e a situação que enfrentava: “Sei, olhando as fotos que me mandava de cabul, que gostava dos mercados, sei que me dizia que as pessoas de lá pareciam tudo, menos agressivas. Escrevia que um dia ia me levar ao Afeganistão e que em Cabul ninguém aguentava mais a guerra, que desejavam ficar em paz” (p. 61).
“E o amor é o contrário da morte”, cantava Sergio Bruni em “Carmela”, “…uma das mais belas canções já compostas. Palavras do velho cantor de Villaricca. que anularam centenas de versos de poetas laureados. Maria tem uma certeza: guardar Enzo, arrancá-lo da morte, será possível apenas enquanto continuar a amá-lo” (p. 62).
*Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ (campus de Duque de Caxias).
Referência
Roberto Saviano. O contrário da morte: cenas da vida napolitana. Tradução: Ana Maria Chiarini. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2009, 96 págs. [https://amzn.to/4fq8MSD]
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