Lolita, a ninfeta septuagenária

Susan M. Phillips, O jardim dos Selkies, 2017
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Por HOMERO VIZEU ARAÚJO*

Considerações sobre o romance de Vladimir Nobokov

“Sete anos e sete meses! Repetiu Humpty Dumpty pensativamente. – Uma idade bastante incômoda. Se tivesse pedido o meu conselho, eu diria: “Pare nos sete”. Mas agora é tarde demais (Lewis Carroll, Através do Espelho e o que Alice encontrou lá).

Em 2025 Lolita chega aos 70 anos desde seu lançamento e para não atravancar o ano que vem com mais uma saudação à efeméride, tratei de antecipar o comentário sobre o clássico que tornou Vladimir Vladimirovich Nabokov (1899-1977) muito famoso, além de escandaloso.

O romance de Vladimir Nobokov foi lançado na segunda metade de 1955 e ganhou fama, ao que sei, a partir de 1958. O personagem narrador é Humbert Humbert, um literato europeu de destacada erudição, que abandonou Paris um pouco antes do início da II Guerra Mundial, estabelecendo-se nos EUA. Humbert, quando começa a contar sua história, encontra-se preso, aguardando julgamento por ter matado certo escritor Clare Quilt, por sinal um crime que só ocorre no fim do romance.

O crime, portanto, não é pedofilia, por manter relações sexuais com uma menina de doze anos mediante sedução e coação, muito menos por ter raptado Lolita, a menina Dolores Haze, que juridicamente é sua enteada, uma vez que o precavido Humbert Humbert casou-se com a mãe de menina para manter-se próximo de Lô/Lola/Lolita. Trata-se de uma das várias perfídias de um protagonista que conquista a viúva Charlotte Haze para ter acesso à filha.

A equivocada Charlotte já casada com seu erudito galã em breve descobre um diário de Humbert que revela a atração do marido por sua filha; transtornada depois da leitura, acusa Humbert e sai de casa para ser atropelada e morrer atravessando a rua. Depois disso o padrasto simula tristeza no enterro e parte em busca de sua enteada, que se encontra em um programa de férias. O predador recolhe a menina e parte em excursão pelos EUA para longe do endereço Haze, mas HH nada revela sobre a morte da mãe, Lolita só descobrirá que está órfã depois de se tornar amante do padrasto.

A seguir vem a segunda parte do livro, com HH arrastando sua presa pelo território americano em um périplo que se segue à primeira noite do casal: durante um ano, entre agosto de 47 e agosto de 48, eles percorrem a América em um sedan da família Haze. Dividindo quartos de motel, de cabanas, hotéis, etc., o arranjo excitante e criminal permite que HH realize suas fantasias pedófilas, desde o início admitindo as brigas e desavenças que ele reconhece serem inevitáveis em cena tão abusiva e tensa.

O narrador faz um sumário da jornada leste-oeste-leste na América e encerra o capítulo alegando que “nossa longa viagem” só servira para conspurcar, com uma trilha sinuosa de limo, aquele intenso e belo país, sonhador e confiante. A malícia chega a ser exuberante em sua autossatisfação, embora esteja incluída na situação presente em que o enunciado do HH (na prisão) é tingido de alguma melancolia.

O trecho que segue é uma síntese da retórica complexa do romance, que aqui reproduzo na bela tradução de Jório Dauster: “Rodamos assim rumo a leste, eu mais devastado do que fortalecido por haver satisfeito minha paixão, e Lô radiante de saúde, suas ancas ainda tão estreitas quanto as de um rapazinho, embora ela tivesse acrescentado cinco centímetros a sua altura e quatro quilos a seu peso. Tínhamos estado por toda parte. Na verdade, não tínhamos visto nada. E me surpreendo hoje pensando que aquela nossa longa viagem só serviu para conspurcar com uma trilha sinuosa de limo aquele imenso e belo país, sonhador e confiante, que já então em retrospecto, nada mais era para nós do que uma coleção de mapas desbeiçados, guias turísticos dilacerados, velhos pneus e os soluços de Lô no meio da noite – de todas as noites, de cada noite – tão logo eu fingia que estava dormindo”. (p. 178)

O narrador mais frágil do que forte exalta a saúde de Lolita e vai aos detalhes de peso e tamanho, reforçando o apelo físico e sexual. Eles estiveram em toda parte e nada viram. A avaliação deslumbrada que ensaia o lugar comum sobre a América e suas promessas, que é conspurcada, arremete no mesmo longo período para a desolação de mapas e guias em mal estado do que deságua no pungente choro da criança órfã a mercê da sanha do narrador implacável, embora alegadamente frágil.

Neste contexto entre deslumbramento físico e sordidez emocional, o leitor teria que retornar ao início do parágrafo para comparar as duas Lolitas em pauta, a radiante e a soluçante, para alcançar também a ambivalência do laudo do belo país que se reduz a mapas, guias e pneus a compor a terra desolada para o idílio degradado de Humbert. Entre as promessas do sonho e da confiança e a paisagem banal em que o lixo industrial (pneus) do way of life é acolhido. O momento final (repugnante? constrangedor?) de HH ouvindo o soluço da menina enquanto finge dormir é um toque de mestre a provocar e acusar o leitor que venha a se identificar com o narrador charmoso, iconoclasta e abjeto.

No início do capítulo, esta ambivalente América das maravilhas já foi aproximada do país das maravilhas de Lewis Carroll, em que aquela menina Alice suporta também sua cota de arbítrio e autoritarismo, o que também não deixa de ser um tipo de aprendizagem. Voltaremos ao jogo de citações e à paródia logo adiante.

O abusador no campo de centeio

A retórica exuberante que Nabokov constrói na voz de seu protagonista oscila entre histriônica, geralmente irônica mas também patética, sem falar na autoindulgência que tenta justificar o injustificável. É um procedimento que explora o mal-estar e a adesão do leitor, o que colabora para definir a complexidade literária em pauta.

Humbert fará pelo menos mais duas viagens longas pilotando seu carro pelas highways ianques, na primeira delas será abandonado por sua Lolita e na segunda vai armado de um revólver em busca do homem que a levou. Parte crucial do romance é, portanto, on the road, explorando os enredos de viagem que se sucedem na literatura americana no mínimo desde os clássicos Tom Sawyer e Huckleberry Finn, que percorrem estradas e rios para definir um padrão inclusive de inconformismo contra a autoridade adulta.

Nos anos 1950 aparecerá On the road, de Jack Kerouac, a propor a concepção beatnick de transgressão. Mas este contemporâneo dos anos 1950, Kerouac, demonstra descontrole verbal e ritmo desigual, sem falar na improvisação, o que é o contrário dos efeitos muito construídos e cerebrais obtidos por HH. Como se Nabokov explorasse o tema on the road em chave paródica e perversa ao submeter a juventude americana aos desígnios maliciosos, sexuais e intelectuais do personagem europeu encharcado de referências literárias, em outros termos, a inocência da América sendo explorada, on the road, pela alta cultura a serviço do abuso sexual de menores.

Nabokov admirava a prosa de Salinger, cujo Apanhador em campo de centeio, de 1952, antecede Lolita. Não estou sendo original, imagino que alguns volumes já tenham comentado o quanto o personagem narrador de Salinger, o jovem Holden Caufield, atua em termos opostos à perversidade nabokoviana. Na cena famosa que dá nome ao romance de Salinger, Holden encarna a figura que procura salvar as crianças e os jovens em um campo de centeio para além do qual encontra-se a desolação da vida adulta com seus arranjos hipócritas e mercantilização insana, nos termos do american way of life.

Ora, Humbert Humbert é a própria autoridade patriarcal em disposição tarada, que se vale de sua condição de padrasto para destruir a infância de Lolita. Ele age para desagregar a dinâmica infanto-juvenil, jamais para resguardá-la, daí candidatar-se, digo eu, a abusador no campo de centeio. Ler em contraste a prosa de Salinger, que explora a oralidade novaiorquina intensamente, com a prosa de Nabokov, também ela de um ritmo oral extraordinário, é uma experiência a revelar a ambição da literatura norte-americana no pós-guerra.

Mas a diferença entre as perspectivas dá o que pensar. Lolita é também uma paródia sombria e cômica das pretensões libertárias presentes em Kerouac ou Salinger, o que não é o mesmo que dizer que se trata de paródia consciente. É muito ingênua a visão de que a obra dependa das intenções do autor; as formas artísticas, materializadas em texto, alcançam grande autonomia em relação à consciência dos artistas.

Ainda naquela aproximação possível com On the road, o capítulo 28 de Lolita, já próximo do desfecho do livro, abre assim: “Lá estava eu de novo na estrada, de novo aos solavancos do velho sedã azul, de novo sozinho.” HH pega a estrada depois de receber finalmente uma carta de Lolita após dois anos sem notícias, vai encontrá-la mas leva uma arma para matar quem a tirou de suas garras, que ele supõe equivocadamente ser o atual marido. No original está “I was again on the road, again at the wheel of the old blue sedan, again alone.” Lolita agora já alcançou 17anos, está casada e grávida, e assina a carta como Lolita “(Sra. Richard F. Schiller)”.

Aqui há mais uma piscada de olho de Nabokov: F. Schiller, para além do marido americano de Lolita, pode ser também Friedrich Schiller o célebre autor alemão, séc. XVIII-XIX, que escreveu a renomada “A educação estética do homem”. Seria mais um chiste erudito sobre o tipo de educação/demolição sentimental/sexual a que Lolita foi submetida? Este humor macabro ganha gosto mais forte se lembrarmos que Lolita morrerá no parto, assim como HH morre de uma trombose coronária um pouco antes dela, na prisão.

Vale lembrar que Nabokov é um descendente de família russa aristocrática e liberal, que parte para a Europa na sequência da revolução de 1917. Depois de graduar-se em Cambridge, ele se tornou um exilado na Europa continental e partirá dali para os EUA na véspera da II Guerra. Este duplo exílio sem dúvida colabora para sustentar uma perspectiva distanciada e, no caso dele, politicamente conservadora que considera a revolução russa uma farsa trágica, Freud um charlatão, etc. Ele teve educação refinada e era bilíngue, russo e inglês; nos anos quarenta, estabelecido nos EUA, escreve já em inglês seus romances. Que seu Lolita de fato seja incluído entre os romances americanos também é um testemunho da capacidade da América imperial para aproveitar talentos e, no limite, deles apropriar-se. Até que ponto o livro tensiona e/ou se integra a alguma tradição literária americana me parece um debate interessante.

Humbert Humpty

Aqui volto ao capítulo 3, cujo parágrafo inicial vai citado abaixo. Ele pode ser considerado um capítulo de transição, que comporta o fim da jornada pedófila transcorrida em 1947-8. Aqui abaixo vai, portanto, a abertura do capítulo 3 cujo encerramento são os soluços atrozes de Lolita ouvidos por Humbert na citação anterior.

“Ela havia penetrado em meu mundo, na negra e umbrátil Humberlândia, com uma curiosidade impetuosa, examinando-o com um erguer de ombros de jovial desagrado; e agora parecia pronta a escapar dele com algo semelhante à mais pura repugnância. Jamais vibrou sob minhas carícias, e um estridente: “Opa, que que você está fazendo?” era tudo o que eu merecia em troca de meus esforços. Ao país das maravilhas que lhe ofertava, minha bobinha preferia os filmes mais banais, os sorvetes mais enjoativos. E pensar que entre um Hamburguer e um Humburguer ela invariavelmente se inclinava, com gélida precisão, para o primeiro! Não há nada mais atrozmente cruel do que uma criança adorada. Será que mencionei o nome do bar do motel que visitamos há pouco? Chamava-se, eu juro, A Rainha Frígida. Com um sorriso meio triste, apelidei-a de Minha Princesa Frígida. Mas ela não percebeu o que havia de melancólico na piada”. (168-9)

A abertura é sombria (negra e umbrátil) e não é, já que o trocadilho Humberlândia é brincalhão. O mix de sombrio e jocoso, agressão e humor, resume a cada parágrafo o andamento do conjunto, trata-se de forma literária trabalhada ao detalhe. A avaliação serena e implacável revela que HH tem total consciência de que a menina submete-se contrariada e repugnada. Ela entrou no jogo com jovial desagrado e agora quer escapar da Humberlândia com algo próximo de forte repugnância, o que para Humbert é ruim mas longe de ser crucial.

Ele vai continuar submetendo e abusando, claro, mesmo que a repugnância cresça. Mais grave, ele apela para a generalidade complacente (“nada mais atrozmente cruel etc.”), como se estivesse lidando com as reações de uma criança volúvel sendo perturbada no parque ou em sala de aula e não em quartos de dormir sob sua autoridade de padrasto. Mas a frase sobre a insatisfação de Lolita, que reage de forma infantil e prefere, no seu paladar consumista ingênuo, filmes banais e delícias muito doces, abre com uma referência explícita a Alice no país das maravilhas, ecoando portanto aquela Humberlândia da abertura do parágrafo.

A tradução abriu mão do trocadilho que no original é gritante (Humberland/wonderland), talvez uma saída um tanto forçada fosse “no negro e umbrátil país das humbervílias”.

O conjunto, com o eco de Carroll, soa ainda mais maldoso, com Humberland e wonderland sugerindo que esta Alice americana sequestrada pelo desejo masculino poderia se deixar levar e descobrir encantos vários sob o domínio do sóbrio e normalíssimo padrasto HH. O trocadilho volta a aparecer em linha canibal entre Hamburger/Humburger e a apoteose da indiferença ou repulsa sexual de Lolita acontece com a associação entre a Rainha frígida e a Princesa frígida Lolita. Também acho que nesta oscilação entre rainha e princesa permanece o eco de Alice e suas aventuras; se for assim, novamente a assexuada Alice rende mais malícia às aventuras sexuais a que a prisioneira Lô é submetida.

Mas as associações não param por aí, porque Alice enfrenta, em Através do espelho e o que Alice encontrou lá, Humpty Dumpty, entre outras criaturas que podem oscilar de brincalhonas para gentis ou até mesmo para malignas. Humpty Dumpty é o cúmulo da pretensão e do autoritarismo, embora derivado de um ditado/canção infantil em que cai em desgraça.

Na condição de ovo pretensioso ele dialoga e contesta a menina Alice até alcançar o trecho célebre: “- Mas “glória” não significa “um argumento arrasador” objetou Alice.

– Quando uso uma palavra – disse Humpty Dumpty em tom escarninho – ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique… nem mais nem menos.

– A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.

– A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso”.

A peculiar teoria semântica pode ser questionada pelos linguistas, mas também é uma objeção ao formalismo que não reconhece a dimensão histórica e política da linguagem. No parágrafo trocadilhesco de Nabokov haveria mais um jogo fonético, escondido, vinculando os dois carrascos: Humbert Humbert e Humpty Dumpty. Ambos arbitrários e pretensiosos, a acrescentar mais uma das inúmeras referências paródicas que Nabokov joyceanamente arma em sua narrativa.

Vale lembrar que Nabokov orgulhava-se de ter traduzido Alice no país das maravilhas para o russo em 1923, sem dúvida uma das primeiras traduções do livro para esta língua. Ele se encontrava na Alemanha sob inflação grotesca e os cinco dólares que recebeu constituíam uma soma considerável. Reforçando a teia associativa, acho que vale referir a derradeira reflexão de Alice ao sair do capítulo, comentando Humpty Dumpty.

Depois de ser despachada sumariamente, a menina segue: “Mas não pode deixar de dizer para si mesma: “De todas as pessoas insatisfatórias…”(e repetiu bem mais alto pelo prazer de ter uma palavra tão comprida para dizer) “… de todas as pessoas insatisfatórias que jamais encontrei…” No parágrafo crucial sobre insatisfação e frigidez de Lolita sob coação sexual, o juízo de Alice sobre a empáfia fanfarrã de Humpty Dumpty ilumina com renovada crueldade as pretensões melancólicas e perversas de Humbert. Acho difícil negar o adensamento literário obtido, embora o exibicionismo intelectual na construção possa também virar um cacoete.

Ficou registrado em mais de uma declaração que Nabokov considerava o reverendo Charles L. Dodgson (Lewis Carroll é pseudônimo) um dos mais notáveis ninfetistas de que tinha notícia. As fotos de meninas na condição ninfeta de Dodgson, que foi importante e talentoso fotógrafo, são de fato insinuantes e controversas, embora já se tenha investigado a vida de Lewis Carroll e não se encontrou maior indício de que tenha rompido os padrões de pudor vitorianos. Com seu humor afiado, Nabokov enunciava: “Eu sempre o chamo de Lewis Carroll Carroll, porque ele foi o primeiro Humbert Humbert.”

O romance Lolita abre com um prefácio, digamos, clínico, escrito por John Ray Jr., um psiquiatra que revela o suposto titulo original: “Lolita ou A confissão de um viúvo de cor branca”. Em inglês, o título já tem eufonia e assonância explícita: A confession of a white widowed male. O prefácio, além de trazer informações relevantes sobre personagens que virão, é uma sátira hilária das boas intenções terapêuticas na versão peculiar de psicologia semi-freudiana e behaviourista em vigor nos EUA do pós-guerra.

O indulgente e bem-pensante psiquiatra já no primeiro parágrafo trata de se autopromover ao lembrar que Lolita chegou às suas mãos provavelmente por que ele, JR Jr., “havia pouco recebera o Prêmio Poling por uma modesta obra (Será que os sentidos fazem sentido?), na qual haviam sido estudadas certas perversões e estados mórbidos”.

Depois de considerações várias, o desfecho de John Ray Jr é um primor de conformismo e esforço edificante, em boa medida para não ferir a suscetibilidade moral de algum leitor: “Lolita deveria fazer com que todos nós – pais, educadores, assistentes sociais – nos empenhássemos com diligência e visão ainda maiores na tarefa de criar uma geração melhor num mundo mais seguro.”(p. 7).

O prefácio ainda traz a data em que supostamente foi escrito: 5 de agosto de 1955. Na década macarthista em que o horror da bomba atômica havia sido normalizado, o apelo a favor da segurança do mundo tem ecos sarcásticos, para além das intenções do autor Nabokov, que de resto sabia muito bem que o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki tinha ocorrido em 6 e 9 de agosto de 1945.

Seja como for, há um outro romance canônico norte-americano que seria publicado em 1969, O complexo de Portnoy, de Philip Roth, que também é precedido por texto de psiquiatra. Em Portnoy a provocação porn já se encontra no título e nome do personagem narrador, que este sim apela para os nomes populares de atos e membros sexuais. Mais uma vez a confissão é vazada em registro oral muito estilizado e burilado para dar conta da experiência sexual do jovem Portnoy, que também frequenta Nova Iorque, assim com Holden Caulfield, mas com outros interesses a condicionar a jornada.

O relato em primeira pessoa, com narradores em situação, é uma marca de clássicos norte-americanos, desde Ishmael, em Moby Dick, ou Huck Finn. Que eles sejam apresentados por profissionais da psiquiatria na abertura de Lolita e em O complexo de Portnoy é sinal dos tempos, além de ser uma piada sobre o caráter terapêutico das confissões em consultório. Sem esquecer que Holden Caulfield, quando conta sua estória, encontra-se sob supervisão médica em um sanatório, depois de um colapso. Entre campos de centeio imaginários, jornadas pedófilas eruditas e juventude masturbatória, há um cânone em primeira pessoa que explora a técnica da auto exposição em regime humorístico e grotesco. O conjunto pode ser lido como uma experiência entre crítica, farsesca e documental a revelar “aquele imenso e belo país, sonhador e confiante” onde o refinado europeu Humbert Humbert conseguiu realizar seus desejos confessados e inconfessáveis.

*Homero Vizeu Araújo é professor titular do Instituto de Letras da UFRGS.

Referência


Vladimir Nobokov. Lolita. Tradução: Sergio Flaksmann. Rio de Janeiro, Alfaguara, 2011, 392 págs. [https://amzn.to/4eT47Hv]


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