Uma vitória para a Europa

Luiz Inácio Lula da Silva e Ursula von der Leyen, em Bruxelas/ Foto: Ricardo Stuckert/ PR/ Agência Brasil
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Por MATEUS MENDES*

O acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia é anacrônico e lesivo para o Brasil e demais países do bloco sul-americano

1.

Qualquer um que assista ao discurso de Ursula von der Leyen, presidenta da Comissão Europeia, celebrando o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, poderá perceber o quão lesivo o tratado é para o Brasil e demais países do bloco sul-americano. Em dois minutos de fala, ela não apenas regozijou-se da vitória, como também fundamentou o porquê de seu amplo sorriso: com o acordo, seu bloco garantiu, por um lado, acesso preferencial às nossas matérias-primas e, de outro, expansão dos mercados para seus produtos.

Do lado de lá, a grande vitoriosa foi a indústria alemã. As tarifas que Donald Trump já anunciou que imporá sobre importações europeias não são bons presságios para as manufaturas europeias, especialmente as alemãs. Do lado de cá, o acordo favorece o agronegócio e a mineração. Nunca é demais lembrar que esses dois setores empregam pouco, não geram inovação, criam enormes passivos ambientais e são associados à violência no campo contra indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e agricultores familiares.

Ademais, não há o que se falar em transferência de tecnologia, afinal, a Europa não é mais um polo tecnológico. Das oito empresas que concentram 80% do mercado de computação em nuvem, serviço essencial para a indústria 4.0, seis são estadunidenses e duas, chinesas.[i] Das 11 empresas de tecnologia que estão entre as 50 maiores em valor de mercado, seis são estadunidenses, três estão em território chinês, uma é sul-coreana e apenas uma é europeia e, ainda assim, ocupa a 41ª posição.[ii]

Das 50 maiores empresas que desenvolvem inteligência artificial (IA), apenas seis têm sede na União Europeia.[iii] Quando o assunto é dispositivos eletrônicos, metade do mercado de smartphones está nas mãos da Samsung (Coreia do Sul), Apple (Estados Unidos) e Xiaomi (China) [iv] e mais da metade do de computadores está com a Lenovo (China), HP (Estados Unidos) e Dell (Estados Unidos).[v]

Quando o assunto é indústria associada à energia renovável, a situação não é melhor para a União Europeia. Das dez empresas que respondem por três quartos dos painéis solares, a China é a sede de sete, enquanto Canadá, Coreia do Sul e Estados Unidos abrigam uma cada um. Em se tratando de baterias de lítio, 80% do mercado está nas mãos de seis empresas: três chinesas, duas sul-coreanas e uma japonesa. Apenas no mercado de turbinas eólicas a União Europeia se destaca, sendo a sede de quatro das sete que concentram 70% do mercado. [vi]

2.

Além disso, trata-se de um acordo anacrônico. Quando se iniciaram as negociações, vivia-se o auge da globalização neoliberal. Hoje, quando as partes dão as negociações por encerradas, assiste-se a uma onda protecionista. Sem embargo, a presidenta da Comissão Europeia falou ainda em “momento crucial para nosso futuro compartilhado”. Bem, parece o prenúncio da reedição de nosso passado compartilhado: superexploração e passivos ambientais por aqui garantem o desenvolvimento, o bem-estar e a estabilidade política por lá.

Especificamente no caso brasileiro, o acordo compromete a já tão difícil reindustrialização.[vii] Como a liberalização experimentada nos anos 1980 e 1990 é parte da explicação da precoce desindustrialização brasileira, não há malabarismo teórico ou retórico capaz de sustentar que a liberalização do comércio com a União Europeia contribuirá para a retomada ou reinvenção da indústria nacional.

De alimentos e bebidas (produtos em que a certificação de origem é um diferencial) a aeronaves, passando por máquinas e equipamentos, verdade seja dita, nossa indústria tem pouca condição de competir com a europeia. (Não cabe aqui discutir e comparar a história e as estratégias de desenvolvimento; as possibilidades e os constrangimentos externos que geraram essa desproporção entre as capacidades produtivas daqui e de lá: o fato é que, a preços de hoje, nossa indústria não tem condições de competir com a europeia, especialmente com a alemã).

A título de comparação, nossa indústria de transformação responde por 1,05% do setor no mundo, enquanto a da Alemanha participa com 8,65%, a dos Países Baixos, com 3,52%, a da Itália com 3,43% e a da França com 3,05%.[viii] Portanto, o acordo tende a resultar na redução de postos de trabalho qualificado, poder aquisitivo e de diversidade produtiva. Ao fim do dia, o resultado será o fortalecimento do setor primário.

Em que pese o risco que corre a indústria brasileira, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) não apenas parece bem satisfeita com o acordo, como também o vê como “estratégico na diversificação das exportações brasileiras” e “importante para reverter o processo de reprimarização das exportações nacionais”, afinal, “incentivará a indústria do Brasil a exportar bens de maior valor agregado para um mercado altamente competitivo”.[ix]

No entanto, é inescapável observar que não se percebe na burguesia brasileira qualquer interesse no desenvolvimento autônomo do país, muito menos pretensão de transformá-lo num dos protagonistas da economia política internacional, inclusive porque parte expressiva da indústria aqui instalada é de capital estrangeiro. Do ponto de vista geral, isso pode ser visto pelo apoio dado às manifestações de 2013, ao golpe de 2016 e ao governo de Jair Bolsonaro. No entanto, se quisermos um exemplo mais concreto e atual, podemos ficar com posição da CNI face ao PL 2.338, que regulamenta o uso de Inteligência artificial no Brasil.

Uma das razões alegadas para sua oposição ao PL foi que ele poderia fazer o Brasil perder atratividade para alocação dos centros de processamentos de dados. Essas unidades físicas são fundamentais para a computação em nuvem, que, por seu turno, são de suma importância para a Inteligência artificial e para a indústria 4.0 em geral. Os datacenters consomem muita energia para o resfriamento dos processadores. Segundo a CNI, um dos principais potenciais do Brasil no desenvolvimento da Inteligência artificial é “a matriz energética limpa para atender a demanda dos datacenters.

Os países estão buscando descarbonizar seus processos produtivos direcionando a produção para regiões que oferecem energia limpa, segura, barata e abundante, como o Brasil”. Nesse sentido, afirma Jefferson Gomes, diretor de Tecnologia e Inovação da CNI, o PL 2.338 poderia “afugentar novos investimentos, prejudicar os projetos de Inteligência artificial do setor produtivo que nem sequer utilizam dados pessoais e levar o país a perder competitividade e a oportunidade de se inserir como importante player nas cadeias globais.[x]

Ou seja, o projeto de nossos industriais não é desenvolver o setor digital, mas aproveitar nossas potencialidades naturais para que os tubarões do capitalismo digital reduzam suas pegadas ecológicas. O desenvolvimento do setor digital passou muito longe.

3.

Não obstante, o encerramento das negociações do acordo não significa que o mesmo entre em vigor imediatamente. O acordo precisa ser internalizado pelas partes. No Brasil e do Mercosul, essa etapa inclui a avaliação e aprovação nos Parlamentos locais. No Brasil, levando em consideração que o atual governo, por contraditório que seja, é entusiasta do tratado e que a oposição é particularmente interessada por tudo que prejudique nosso desenvolvimento, a aprovação do acordo contará com fortes apoios. Finalmente, há que se destacar que a mobilização por parte do movimento social, tal qual se fez para barrar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), seria algo urgente, necessário e bem-vindo.

No caso da União Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia. O Parlamento representa os cidadãos europeus e é proporcional à população de cada país. Já o Conselho é formado por ministros dos Estados-parte. Enquanto no Parlamento a votação é por maioria simples, no Conselho o cálculo é mais complicado: é preciso aprovação de ao menos 55% dos países e representar no mínimo 65% da população do bloco. E é aqui que o Steinheager fica aguado. O acordo enfrenta maior ou menor resistência por parte da França (15% da população do bloco), Itália (13%), Polônia (9%), Países Baixos (4%), Hungria (2%) e Áustria (2%), o que somado supera o corte demográfico.

Como se vê, o campeonato ainda está sendo jogado. Porém, há que se reconhecer que, por ora, Ursula von der Leyen tem razão: “este acordo é uma vitória para a Europa”.

*Mateus Mendes é doutorando em Economia Política Internacional na UFRJ e Membro da Coordenação da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).

Notas


[i] MENDES, M. Notas introdutórias sobre a Indústria 4.0. In: Fernando Teixeira. (Org.). Reindustrialização brasileira: desafios e oportunidades. 1ed.Rio de Janeiro: Instituto Equit, 2024.

[ii] MENDES, M. A economia política internacional digital. Rio de Janeiro: Rede Brasileira pela Integração dos Povos, 2024.

[iii] Cai, K. AI 50. Fobes, 11.abr.2024. Disponível em: https://www.forbes.com/lists/ai50/. Acesso: 07.dez.2024.

[iv] CNN Brasil, 14.out.2024. Vendas globais de smartphones aumentam 5% no 3º tri, diz consultoria. Disponível em:  https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/vendas-globais-de-smartphones-aumentam-5-no-3o-tri-diz-consultoria/.

[v] FURUYA, B. Mercado global de PCs volta a crescer após dois anos seguidos de queda, indica pesquisa. Disponível em: https://olhardigital.com.br/2024/04/10/pro/mercado-global-de-pcs-volta-a-crescer-apos-dois-anos-seguidos-de-queda-indica-pesquisa/.

[vi] MENDES, M. Reindustrializar e integrar. Boletim Finde, v. 4, p. 53-103, 2023.

[vii] Recentemente, a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebip) promoveu uma série de seminários sobre a reindustrialização brasileira. Em todos eles, houve uma mesa sobre as implicações do Acordo Mercosul-União Europeia para a retomada (reindustrialização) ou reinvenção da indústria (neoindustrialização) nacional. Algumas falas foram bem ilustrativas, como https://youtu.be/Ea__I_7Gysw?si=zDkHMbHdVxlI2kwN e https://youtu.be/dxvRk-W8J9g?si=sPzCzekJYLfSu4wP.

[viii] CNI. Indústria brasileira ganha duas posições no ranking mundial das exportações industriais. Desempenho da indústria no mundo. Ano 7, n. 1, nov.2023.

[ix] CNI. Acordo Mercosul-UE terá papel estratégico na diversificação das exportações brasileiras. Agência de Notícias da Indústria, 06.dez.2024. Disponível em: https://noticias.portaldaindustria.com.br/posicionamentos/acordo-mercosul-ue-tera-papel-estrategico-na-diversificacao-das-exportacoes-brasileiras/.

[x] CNI. PL da Inteligência Artificial prejudica desenvolvimento da tecnologia no Brasil e a inovação no setor produtivo. Portal da Indústria, 04.jul.2024. Disponível em: https://imprensa.portaldaindustria.com.br/posicionamentos/pl-da-inteligencia-artificial-prejudica-desenvolvimento-e-uso-da-tecnologia-no-brasil/..


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