A destruição da Síria

Imagem: Mario A. Villeda
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Por JEFFREY D. SACHS & SYBIL FARES

Não há dúvidas de que Bashar al-Assad muitas vezes se equivocou e enfrentou grande descontentamento interno, mas seu regime foi alvo de colapso durante décadas por parte dos EUA e Israel

Nas famosas linhas de Tácito, historiador romano, “Devastar, massacrar, usurpar sob títulos falsos, eles chamam de império; e onde eles fazem um deserto, chamam-no de paz”. Em nossa época, são Israel e os EUA que fazem um deserto e chamam-no de paz.

A história é simples. Em total violação da lei internacional, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e seus ministros reivindicam o direito de governar sete milhões de árabes palestinos. Quando a ocupação israelense das terras palestinas leva à resistência militante, Israel rotula essa resistência de “terrorismo” e pede aos EUA que derrubem os governos do Oriente Médio que apoiam os “terroristas”. Os EUA, sob a influência do lobby de Israel, entram em guerra em nome de Israel.

A queda da Síria nesta semana é o ponto culminante da campanha de Israel e EUA contra o país, que remonta a 1996, com a chegada de Benjamin Netanyahu ao cargo de primeiro-ministro. A guerra de Israel e EUA contra a Síria escalou em 2011 e 2012, quando Barack Obama encarregou secretamente a CIA de derrubar o governo sírio na Operação Timber Sycamore. Esse esforço finalmente foi “concretizado” nesta semana, depois de mais de 300.000 mortes na guerra da Síria desde 2011.

A ruína da Síria ocorreu rapidamente devido a mais de uma década de sanções econômicas esmagadoras, ao fardo da guerra, à apreensão do petróleo sírio pelos EUA, às prioridades da Rússia em relação ao conflito na Ucrânia e, mais imediatamente, aos ataques de Israel ao Hezbollah, que era o principal apoio militar ao governo sírio. Não há dúvidas de que Bashar al-Assad muitas vezes se equivocou e enfrentou grande descontentamento interno, mas seu regime foi alvo de colapso durante décadas por parte dos EUA e Israel.

Antes que a campanha dos EUA e Israel para derrubar Bashar al-Assad começasse a sério em 2011, a Síria era um país de renda média funcional e em crescimento. Em janeiro de 2009, o Conselho executivo do FMI disse o seguinte: “Os diretores executivos elogiaram o forte desempenho macroeconômico da Síria nos últimos anos, manifestado pelo rápido crescimento do PIB não petrolífero, pelo nível confortável de reservas estrangeiras e pela dívida pública baixa e em declínio. Esse desempenho refletiu tanto a demanda regional robusta quanto os esforços de reforma das autoridades para uma mudança em direção a uma economia mormente baseada no mercado”.

Desde 2011, a guerra perpétua de Israel e EUA contra a Síria, incluindo bombardeios, jihadistas, sanções econômicas, apreensão dos campos de petróleo pelos EUA e muito mais, afundou o povo sírio na miséria.

Nos dois dias imediatamente após o colapso do governo, Israel realizou cerca de 480 ataques por toda a Síria e destruiu completamente a frota síria em Latakia. Prosseguindo com sua agenda expansionista, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu reivindicou ilegalmente o controle sobre a zona tampão desmilitarizada nas Colinas de Golã e declarou que as Colinas de Golã farão parte do Estado de Israel “por toda a eternidade”.

A ambição de Benjamin Netanyahu de transformar a região por meio da guerra, que remonta a quase três décadas, está se desenrolando diante de nossos olhos. Numa coletiva de imprensa em 9 de dezembro, o primeiro-ministro israelense vangloriou-se por uma “vitória absoluta”, justificando o genocídio contínuo em Gaza e a escalada de violência em toda a região: “Eu digo a vocês, apenas pensem, se tivéssemos cedido àqueles que nos disseram repetidas vezes: ‘A guerra deve ser interrompida’ – nós não teríamos entrado em Rafah, não teríamos tomado o Corredor Filadélfia, não teríamos eliminado Sinwar, não teríamos surpreendido nossos inimigos no Líbano e no mundo inteiro numa ousada operação-estratagema, não teríamos eliminado Nasrallah, não teríamos destruído a rede subterrânea do Hezbollah e não teríamos exposto a fraqueza do Irã. As operações que realizamos desde o início da guerra estão desmantelando o eixo tijolo por tijolo”.

A longa história da campanha de Israel para derrubar o governo sírio não é amplamente compreendida, mas o registro documental é claro. A guerra de Israel contra a Síria começou com os neoconservadores norte-americanos e israelenses em 1996, que elaboraram para Benjamin Netanyahu uma estratégia denominada “Ruptura Profunda” para o Oriente Médio quando ele assumiu o cargo. O núcleo da estratégia “ruptura profunda” exigia que Israel (e os EUA) rejeitasse a “terra pela paz”, a ideia de que Israel se retiraria das terras palestinas ocupadas em troca da paz. Em vez disso, Israel manteria as terras palestinas ocupadas, governaria o povo palestino num estado de apartheid, limparia etnicamente o estado passo a passo e aplicaria a chamada “paz pela paz” derrubando os governos vizinhos que resistissem às reivindicações de terra de Israel.

A estratégia “Ruptura profunda” afirma: “Nossa reivindicação à terra – à qual nos apegamos para ter esperança por 2000 anos – é legítima e nobre”, e continua, afirmando que “a Síria desafia Israel em solo libanês. Uma abordagem eficaz, com a qual os americanos podem simpatizar, seria se Israel tomasse a iniciativa estratégica ao longo de suas fronteiras ao norte, envolvendo o Hezbollah, a Síria e o Irã como os principais agentes de agressão no Líbano…”

Em seu livro de 1996, Fighting Terrorism, Benjamin Netanyahu estabeleceu a nova estratégia. Israel não lutaria contra os terroristas; lutaria contra os Estados que apoiam os terroristas. Mais precisamente, os EUA fariam com que Israel lutasse por eles. Como ele elaborou em 2001: “A primeira e mais importante coisa a ser entendida é a seguinte: não há terrorismo internacional sem o apoio de Estados soberanos… Retire todo esse apoio estatal e todo o andaime do terrorismo internacional se desfará em pó”.

A estratégia de Benjamin Netanyahu foi integrada à política externa dos EUA. Acabar com a Síria sempre foi uma parte fundamental do plano. Isso foi confirmado ao general Wesley Clark após o 11 de setembro. Foi dito a ele, durante uma visita ao Pentágono, que “vamos atacar e destruir os governos de sete países em cinco anos – começaremos pelo Iraque e depois passaremos para a Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e Irã”. O Iraque seria o primeiro, depois a Síria e os demais. (A campanha de Benjamin Netanyahu para a Guerra do Iraque é explicada em detalhes no novo livro de Dennis Fritz, Deadly Betrayal. O papel do lobby de Israel é explicado no novo livro de Ilan Pappé, Lobbying for zionism on both side of the Atlantic. A insurgência que atingiu as tropas dos EUA no Iraque atrasou o cronograma de cinco anos, mas não mudou a estratégia básica.

Até agora, os EUA lideraram ou patrocinaram guerras contra o Iraque (invasão em 2003), Líbano (financiamento e armamento de Israel pelos EUA), Líbia (bombardeio da OTAN em 2011), Síria (operação da CIA nos anos 2010), Sudão (apoio aos rebeldes para separar o Sudão em 2011) e Somália (apoio à invasão da Etiópia em 2006). Uma possível guerra dos EUA com o Irã, ardentemente desejada por Israel, ainda está pendente.

Por mais estranho que possa parecer, a CIA tem apoiado repetidamente os jihadistas islâmicos para lutar nessas guerras, e os jihadistas acabaram de derrubar o regime sírio. Afinal de contas, a CIA ajudou a criar a Al-Qaeda ao treinar, armar e financiar os Mujahideen no Afeganistão a partir do final da década de 1970. Sim, Osama bin Laden mais tarde voltou-se contra os EUA, mas, ainda assim, seu movimento foi uma criação dos EUA. Ironicamente, como confirma Seymour Hersh, foi a inteligência de Bashar al-Assad que “avisou os EUA sobre um iminente ataque a bomba da Al Qaeda contra o quartel-general da Quinta Frota da Marinha dos EUA”.

A Operação Timber Sycamore foi um programa secreto de bilhões de dólares da CIA lançado por Obama para derrubar Bashar al-Assad. A CIA financiou, treinou e forneceu inteligência a grupos islâmicos radicais e extremistas. O esforço da CIA também envolveu uma “linha de rato” para transportar armas da Líbia (atacada pela OTAN em 2011) para os jihadistas na Síria. Em 2014, Seymour Hersh descreveu a operação em seu artigo “The Red Line and the Rat Line”: “Um anexo altamente confidencial do relatório, que não foi divulgado, descrevia um acordo secreto firmado no início de 2012 entre os governos de Obama e Erdoğan. Ele dizia respeito à linha de rato. Pelos termos do acordo, o financiamento vinha da Turquia, assim como da Arábia Saudita e do Catar; a CIA, com o apoio do MI6, era responsável por levar armas dos arsenais de Gaddafi para a Síria.”

Logo após o lançamento do Timber Sycamore, em março de 2013, numa conferência conjunta do ex-presidente Barack Obama e do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu na Casa Branca, Obama disse: “Com relação à Síria, os Estados Unidos continuam trabalhando com aliados e amigos e com a oposição síria para acelerar o fim do governo de Bashar al-Assad.”

Para a mentalidade sionista israelense-americana, um pedido de negociação por parte de um adversário é considerado sinal de fraqueza do adversário. Aqueles que pedem negociações do outro lado geralmente acabam assassinados por Israel ou por agentes dos EUA. Vimos isso acontecer recentemente no Líbano. O ministro das relações exteriores do Líbano confirmou que Hassan Nasrallah, ex-secretário-geral do Hezbollah, tinha concordado com um cessar-fogo com Israel dias antes de seu assassinato. A disposição do Hezbollah para aceitar um acordo de paz segundo os desejos do mundo árabe-islâmico de uma solução de dois Estados é antiga. Da mesma forma, em vez de negociar o fim da guerra em Gaza, Israel assassinou o chefe político do Hamas, Ismail Haniyeh, em Teerã.

Da mesma forma, na Síria, em vez de permitir o surgimento de uma solução política, os EUA se opuseram várias vezes ao processo de paz. Em 2012, a ONU tinha negociado um acordo de paz na Síria que foi bloqueado pelos americanos, que exigiram que Bashar al-Assad saísse no primeiro dia do acordo de paz. Os EUA queriam uma mudança de regime, não a paz. Em setembro de 2024, Benjamin Netanyahu discursou na Assembleia Geral com um mapa do Oriente Médio dividido entre “Benção” e “Maldição”, com o Líbano, Síria, Iraque e Irã como parte da maldição de Benjamin Netanyahu. A verdadeira maldição é o caminho de Israel para o caos e a guerra, que agora engolfou o Líbano e a Síria, com a esperança fervorosa de Benjamin Netanyahu de também levar os EUA à guerra com o Irã.

Os EUA e Israel estão comemorando a destruição com sucesso de mais um adversário de Israel e defensor da causa palestina, com Benjamin Netanyahu reivindicando “o crédito por iniciar o processo histórico”. O mais provável é que a Síria agora sucumba à guerra contínua entre os muitos protagonistas armados, como aconteceu nas operações anteriores de mudança de regime de EUA e Israel.

Em suma, a interferência americana, a pedido de Israel de Benjamin Netanyahu, deixou o Oriente Médio em ruínas, com mais de um milhão de mortos e guerras abertas na Líbia, Sudão, Somália, Líbano, Síria e Palestina, e com o Irã à beira de um arsenal nuclear, sendo empurrado contra suas próprias inclinações para essa eventualidade.

Tudo isso está a serviço de uma causa profundamente injusta: negar aos palestinos seus direitos políticos a serviço do extremismo sionista baseado no Livro de Josué do século VII a.C. Surpreendentemente, de acordo com esse texto – no qual se baseiam os próprios fanáticos religiosos de Israel – os israelenses nem sequer eram os habitantes originais da terra. Em vez disso, de acordo com o texto, Deus instrui Josué e seus guerreiros a cometerem vários genocídios para conquistar a terra.

Diante desse cenário, as nações árabe-islâmicas e, na verdade, quase todo o mundo se uniram repetidamente no apelo por uma solução de dois Estados e pela paz entre Israel e a Palestina. Em vez da solução de dois Estados, Israel e os EUA fizeram um deserto e chamaram-no de paz.

*Jeffrey D. Sachs é professor de economia na Universidade de Columbia. Autor, entre outros livros, de A era do desenvolvimento sustentável (Editora Actual).

Sybil Fares é consultora para o Oriente Médio e África da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no portal The new arab.


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