Por RICHARD SEYMOUR*
As novas direitas são verdadeiramente cativadas e obcecadas por cenários alucinatórios de desastre extremo
O mundo de hoje está cheio de desastres reais. Mas da prontidão militar às fantasias de deportação em massa, a direita e a extrema direita prometem a seus apoiadores catástrofes melhores: aquelas em que eles estarão no comando. Portanto, é necessário perguntar o que é o “nacionalismo de desastre” e por que ainda não veio a ser fascismo. [i]
Há alguns anos, percebi que a nova extrema direita estava obcecada por cenários fantásticos em que prevalecia um mal extremo imaginário. Campos de extermínio da FEMA (Agência Federal de Gerenciamento de Emergências nos EUA), a “teoria da grande substituição”, a “grande reinicialização”, cidades de 15 minutos,[ii] antenas 5G que funcionam como faróis de controle mental e microchips instalados nas pessoas por meio de vacinas.
Na Índia, existe uma teoria chamada “romeo jihad”, segundo a qual os homens muçulmanos seduzem jovens hindus e os convertem ao Islã, travando assim uma espécie de guerra populacional. O QAnon fantasia que pedófilos satanistas e comunistas governam o mundo. Ou seja, as novas direitas são verdadeiramente cativadas e obcecadas por cenários alucinatórios de desastre extremo. Por que acontece isso?
Não faltam desastres reais: incêndios, inundações, guerras, recessões e pandemias. No entanto, eles frequentemente negam que esses desastres existam. Muitos dizem que o COVID-19 foi apenas uma desculpa para o Quarto Reich, ou que a mudança climática é uma desculpa para um regime liberal totalitário, uma nova forma de comunismo e assim por diante. Contudo, as pessoas de direita são realmente cativadas e obcecadas por cenários alucinatórios de catástrofes extremas.
Costumo usar o exemplo dos incêndios florestais no Oregon. Os incêndios varreram planícies e florestas e queimaram a 800 graus Celsius. Eles representavam uma ameaça real à vida das pessoas. Mas muitas pessoas se recusaram a sair porque ouviram que, na verdade, eram os “antifas” que estavam ateando fogo e que tudo fazia parte de uma conspiração sediciosa para acabar com os cristãos conservadores brancos.
Então, em vez de fugir para salvar suas vidas, eles montaram postos de controle armados e apontaram suas armas para as pessoas, alegando que estavam procurando os tais “antifas”. Por que ocorre essa fantasia de um apocalipse em massa? Porque ela transforma o desastre de um modo que ele se torna realmente muito emocionante. Na maioria das vezes, quando as pessoas sofrem catástrofes, elas ficam deprimidas e se afastam um pouco da vida e da esfera pública. Mas a extrema direita oferece outra saída.
Ela diz que “aqueles demônios em sua cabeça, com os quais você está lutando, são reais e você pode matá-los”. O problema não é difícil, abstrato ou sistêmico; não, ele simplesmente vem de pessoas más; logo, é preciso acabar com essas pessoas. Inventa-se uma fantasia sobre as emoções dolorosas que as pessoas enfrentam diante das crises econômicas e das mudanças climáticas e se encontra um modo de dar a elas uma saída que pareça válida e empoderada.
Isso é o que chamo de nacionalismo de desastre. Ainda não é fascista porque, embora organize os desejos e emoções das pessoas em uma direção muito reacionária, não se tenta derrubar a democracia parlamentar, não se busca esmagar e extirpar todos os direitos humanos e civis … ainda não.
Essas direitas também carecem de maturidade organizacional e ideológica. Elas estão ainda numa fase de acumulação fascista de força. Se voltarmos ao período entre guerras, vê-se que esse processo de acumulação ocorreu, pois havia pogroms em massa; ou seja, já havia importantes movimentos de extrema-direita antes do fascismo. Portanto, parece que está se desenrolando ainda uma fase inicial de um fascismo incipiente.
No final de The Anatomy of Fascism, publicado em 2005, Robert Paxton nos adverte que a política israelense pode cair no fascismo. É necessário pensar que lugar Israel está ocupando nesse fascismo que ainda não é bem fascismo. Quando comecei a escrever este livro, não esperava falar muito sobre Israel. Achei que seria um elemento menor em um mosaico global constituído por estados muito maiores. No final, tive que escrever um capítulo totalmente novo por causa do genocídio em Gaza.
Há muito tempo está claro que o sionismo pratica ainda um genocídio incipiente porque o seu desejo final é que os palestinos não existam. E sempre houve elementos do fascismo hebraico desde a década de 1920. Eu diria que sua dinâmica colonial é bastante única. Você não vê isso, por exemplo, nos Estados Unidos. É óbvio que o colonialismo dos colonos é uma realidade histórica com repercussões permanentes, mas não é uma realidade viva e atual. Você não pode viver em Israel sem conhecer os palestinos e seu desejo recalcitrante e irritante de existir.
Mas existem outros aspectos que são bastante semelhantes aos padrões observados nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Índia, Brasil etc. É o declínio do Estado, o declínio do sistema político. É o declínio do sistema do pós-guerra, no caso um arranjo corporativista entre o trabalho judeu, o capital judeu e o Estado, alcançado por meio da limpeza étnica de 1948. Esse sistema entrou em colapso na década de 1970 e, como em todos os lugares, tornou-se neoliberal. Os sindicatos israelenses recusaram. Contudo, tentaram se adaptar por meio da política da “terceira via”. Ora, a sua última chance foi provavelmente o processo de Oslo. Hoje quase não existe essa perspectiva.
Essas tendências de crescente pessimismo e desigualdade de classe já ocorreram, mas a velha utopia nacionalista do mundo do pós-guerra desapareceu. A classe capitalista se tornou cosmopolita e intimamente integrada a Washington, não à utopia nacionalista judaica que eles estavam tentando construir.
É por isso que alguns membros do movimento sionista estão tentando reconstituir esta pátria judaica, uma salvaguarda judaica, se se quiser. A direita diz: “Não, já superamos isso. Estamos em uma situação em que temos que resolver a questão com os palestinos de uma vez por todas.” Para eles, isso significa expulsar os palestinos e colonizar decisivamente cada pedaço de terra que eles acreditam pertencer ao Grande Israel.
Isso leva ao fascismo? Não, ainda não enquanto houver sistemas democráticos constitucionais liberais. É uma democracia de exclusão. E isso não é tão incomum. Os Estados Unidos até a década de 1970 eram uma democracia de exclusão. Ora, eu diria até que ainda é hoje, mas em um grau diferente. Israel tem uma cultura cada vez mais racista, autoritária e genocida e está mais perto de um golpe fascista do que em qualquer outro lugar. Acho que o genocídio e o processo de radicalização das bases vão levar a um golpe kahanista ou de extrema direita.
Se se quiser ver onde o fascismo está bastante avançado, eu diria que isso se vê em Israel, mas também na Índia. Você tem que ouvir os alarmes: “Estamos à beira do genocídio”, porque o BJP [Partido Bharatiya Janata], um movimento autoritário de direita ligado ao fascismo histórico, colonizou o Estado e suprimiu os direitos civis. É um fenômeno global no qual Israel desempenha um papel único e distinto. Israel está muito perto de um regime fascista milenar. A médio prazo, essa é uma possibilidade real e perigosa, dado que se trata de um estado nuclear.
Parece tolice ignorar as fantasias catastróficas da direita. Eles geralmente estão sintonizados com realidades que o otimismo liberal prefere não reconhecer. Isso é bem real.
Às vezes, eles colocam o dedo em elementos importantes da realidade. As teorias da conspiração sobre cidades de 15 minutos, por exemplo, são incompreensíveis e delirantes porque as pessoas pensam que elas anunciam algum tipo de ditadura comunista contra o automóvel. Mas, em sua essência, é uma ameaça real ao uso do automóvel, ao estilo de vida suburbano e às vantagens relativas de possuir um carro.
Se você construir cidades em torno do conforto e ciclovias em todos os lugares, eliminando a poluição o máximo possível e eliminando vagas de estacionamento, isso se torna um problema para aqueles que gostam de dirigir para todos os lugares. Será especialmente problemático se se começa a colocar barreiras de tráfego para impedir que se use certas estradas. Se você for direta e pessoalmente afetado, pode ter a sensação de que a vida mudará radicalmente nas próximas décadas.
E eles não estão totalmente errados: a mudança climática exigirá grandes mudanças estruturais. Os liberais querem negar a gravidade do que está por vir e do que as pessoas já estão experimentando. Acho que a resposta da esquerda deveria ser dizer: “Sim, você está certo, vamos transformar tudo, mas será muito melhor para você. Veja como.”
O exemplo que sempre vem à mente é o de Barack Obama, em 2016. Ele zombou de Donald Trump por ser um pessimista em sua campanha, dizendo com ironia: “No dia seguinte, as pessoas abrirão as janelas, os pássaros cantarão, o sol brilhará”. O páthos que ele estava tentando invocar era que as pessoas estavam realmente muito felizes, que tudo estava indo bem. Então, na eleição, ele teve sua resposta: Donald Trump venceu.
Para muitas pessoas, as coisas não estão indo bem. Donald Trump fez seu discurso de posse, escrito por Steve Bannon, falando sobre “carnificina americana”, que eu acho que é uma espécie de poesia reacionária, porque carnificina não é uma descrição imprecisa da destruição da América industrial.
Eles colocaram o dedo em um problema real, mas sua resposta foi culpar a China, o Leste Asiático. A maioria dos empregos perdidos foi resultado de uma guerra de classes vinda de cima: enxugamento, destruição sindical. Houve um elemento de terceirização, mas a culpa é das empresas, dos empregadores, não dos trabalhadores do Leste Asiático.
Então, pode-se ver que eles são capazes de identificar certas formas de desastre. O que eles não incapazes é de integrá-los numa análise global coerente e sólida. Tudo o que eles propõem, na realidade, são sintomas projetados para não resolver nada, mas que permitem que você massacre muçulmanos na Índia, palestinos na Cisjordânia e Gaza, mate apoiadores do Partido dos Trabalhadores no Brasil, atire, esfaqueie ou use carros para atropelar manifestantes do Black Lives Matter nos EUA, ou organizar tumultos racistas na Grã-Bretanha, onde tentaram queimar requerentes de asilo em seus abrigos. É isso que a direita propõe como alternativa ao desastre; ou seja, ela propõe melhores desastres, desastres em que você sente que está no controle.
É necessário falar sobre os assassinatos de muçulmanos na Índia. É necessário perguntar em que consistiu o pogrom de Gujarat e porque ele deve ser visto como o ponto de partida da atual onda de nacionalismo de desastre. Parece que há um canário na mina de carvão.
Obviamente, está longe de ser o único grande pogrom na Índia. Existe uma espécie de máquina de pogrom: Paul Brass fala dela com elegância. O que aconteceu. Eclodiu um incêndio em um trem no qual vários peregrinos hindus morreram. Como eles eram membros do partido de extrema-direita VHP, o movimento Hindutva [do nacionalista hindu] especulou que os muçulmanos haviam ateado fogo no trem com coquetéis molotov.
Havia poucas evidências disso: investigações imparciais concluíram que o incêndio foi um acidente. Mas eles decidiram que o genocídio havia ocorrido contra os hindus e, nos dias seguintes, incitaram a população a pegar em armas e perseguir, matar e torturar muçulmanos. Foi o que fizeram, organizados diretamente por membros do BJP, incitados por líderes do BJP, com a cumplicidade e participação da polícia e empresários que pagaram indivíduos para participar da operação. Foi uma explosão coletiva de violência pública coordenada e permissiva com algum controle das autoridades. O resultado foi que a votação do BJP aumentou 5%, embora se esperasse que perdesse o governo do estado depois de ter administrado mal um desastre real: um terremoto ocorrido no ano anterior.
Então se vê o padrão: há uma catástrofe real que afeta as pessoas, o governo administra terrivelmente, então eles inventam uma versão falsa da catástrofe e fazem com que as pessoas matem alguém e é muito emocionante. As coisas que fizeram foram horríveis. Eles mataram bebês na frente de suas mães, cravaram estacas entre as pernas das mulheres, cortaram as pessoas ao meio com espadas.
Obviamente, isso já acontecia há muito tempo, então, nos meses que se seguiram, Narendra Modi organizou comícios do orgulho hindu e disse às pessoas que, se pudéssemos restaurar o orgulho do povo hindu, todos os Alis, Malis e Jamalis não seriam capazes de nos prejudicar – ele estava obviamente se referindo à população muçulmana que acabara de sofrer um pogrom. O fato de que esses comentários não desacreditaram o BJP, mas eletrificaram sua base e fizeram de Modi um símbolo sexual pelaprimeira vez, diz muito sobre esse tipo de política.
Já vimos isso repetidamente. Sem todas as manifestações armadas, comícios antibloqueio e violência contra os manifestantes do Black Lives Maters (BLM), não teríamos visto a insurgência fracassada de 6 de janeiro. Algo semelhante se viu no Brasil: Jair Bolsonaro ficou alguns pontos atrás, quase venceu em 2022 e obteve mais votos do que em 2018. Como ele fez isso?
Um verão caótico de violência em que ele declarou que os ativistas de esquerda devem ser metralhados, e seus apoiadores brandiram suas armas na cara dos apoiadores do Partido dos Trabalhadores, agrediram-nos ou mataram-nos. Não estou dizendo que o pogrom de Gujarat precipitou esses outros eventos, mas foi um dos primeiros exemplos do que estava acontecendo, e assim que Modi foi eleito em 2014. Ademais, ele mostrou que o capitalismo liberal toleraria esse excesso.
A maior parte da violência genocida desde a década de 1990 tem sido contra muçulmanos de várias etnias e, embora haja muito racismo contra diferentes grupos na política ocidental, os ataques mais veementes parecem ser reservados aos muçulmanos. Tommy Robinson, por exemplo, se gaba de que os negros são bem-vindos em seus comícios. Que papel desempenha a figura abstrata do “muçulmano” no catastrófico discurso nacionalista? Por que ele substituiu o “judeu” como a figura de ódio da extrema direita?
Não acho que isso vai acontecer no Brasil ou nas Filipinas. Mas está em toda uma constelação de estados, da Índia a Israel, passando pelos Estados Unidos e pela maioria dos países da Europa Ocidental e até da Europa Oriental. Em termos semióticos, não é exatamente o mesmo que a figura do “judeu”, porque, por enquanto, o discurso da extrema direita não dá a impressão de que os muçulmanos, além de serem uma espécie de massa miserável da Terra, controlam tudo.
Houve tentativas de desenvolver uma espécie de teoria da conspiração, como a de Bat Ye’Or sobre a Eurábia, por exemplo. Mas na maioria das vezes não se trata de uma crença de que os muçulmanos estão secretamente no comando e administram o sistema financeiro, mas sim que eles são uma massa subversiva, violenta, anormal e inferior que precisa ser subjugada com violência e fronteiras para mantê-la sob controle.
Eu diria que isso tem suas origens na virada da década de 1980 para o absolutismo étnico, a coalizão entre os apoiadores do Likud em Israel e os fundamentalistas cristãos nos Estados Unidos, em direção a um tipo de política de identidade absolutista na qual todos têm de caber em uma determinada caixa: há uma espécie de colapso da solidariedade antirracista unificadora que vimos na era da Guerra Fria em Grã-Bretanha, assumindo a forma de negritude política. Tudo isso desmoronou, E então veio o caso Rushdie e os muçulmanos foram categorizados como um problema específico.
É importante que isso esteja enraizado na experiência cotidiana da vida capitalista. Na Grã-Bretanha, por exemplo, as pessoas que eram membros do mesmo sindicato nas cidades do norte ou nas docas, uma vez que essas indústrias foram fechadas e os sindicatos foram desmantelados, muitas vezes se mudaram para setores marginais da economia e descobriram que suas moradias ainda eram segregadas, que o sistema escolar era efetivamente segregado, que os municípios praticavam políticas segregacionistas e que a polícia era segregacionista nesse sentido, ou seja, muito racista.
Se acrescentarmos austeridade a isso, chegamos à miséria pública, ninguém tem nada, e os que estão na base são sempre culpados: “Eles têm tudo, eu não tenho nada”. É quando se começa a ver tumultos nas cidades do Norte e a guerra ao terror parece catalisar tudo isso.
Portanto, este é um fenômeno global no qual a civilização liberal se definiu contra os “maus muçulmanos”. No início, havia essa ideia de que o problema não eram todos os muçulmanos, mas apenas o que foi chamado de fascismo islâmico: George W. Bush enfatizou isso. Mas a forma como essa ideia foi entendida pela população e a forma como foi politizada se estendeu a todos os muçulmanos. Portanto, o muçulmano é uma figura central, mas acho que temos que vê-lo como parte de uma cadeia de equivalências com o “predador transexual do banheiro”, o “marxista cultural” e o imigrante.
Nas Filipinas, a principal categoria são os viciados em drogas. Pode ter nuances diferentes, mas concordo com a tese que diz: globalmente e, em particular no Ocidente, “o muçulmano” resume em si todos os problemas.
Um dos capítulos mais interessantes do meu livro trata do papel do gênero no discurso nacionalista sobre desastres. Há também um capítulo sobre o genocídio em Gaza, embora coloque um pouco menos de ênfase na psicanálise do que em outros capítulos. Questões de exploração e agressão sexual foram recorrentes durante todo o genocídio em Gaza, desde soldados israelenses postando vídeos no TikTok vestindo roupas íntimas de mulheres palestinas até motins em defesa de soldados acusados de estuprar detidos na prisão. Qual é o papel do sexo no imaginário nacionalista do desastre?
Eu argumentaria que, em termos da economia libidinal dessa nova extrema direita, sua premissa subjacente parece ser que alguém é sempre estuprado e que o problema é que os “comunistas” (incluindo Kamala Harris etc.) querem que as pessoas erradas sejam estupradas. O movimento “incel” dos celibatários involuntários, os ativistas dos direitos dos homens etc. tentam muitas vezes justificar o estupro.
Há uma espécie de contradição nessa economia libidinal entre proibições severas renovadas – não mais casamento gay, não mais transexuais, mulheres de volta à cozinha, “fetichismo” de esposa tradicional – por um lado, e por outro, total liberdade predatória para os homens e, portanto, permissividade seletiva. Não é surpreendente ver isso em zonas de guerra. As guerras geralmente resultam em inúmeras violações: a vitimização do inimigo inclui a brutalização das mulheres.
Recentemente, pesquisei os autores de crimes, em particular o genocídio em Gaza, e uma das coisas que surge é a ideia da mulher perigosa. Em termos modernos, se trata da guerreira da justiça social, uma ruiva que grita alto, etc. Contudo, para o movimento Freikorps alemão da década de 1920, a mulher perigosa era uma comunista com uma arma na saia. Essa mulher era alguém que deveria ser morta por alguém capaz de se aproximar dela. Essa proximidade perigosa é emocionante porque você se aproxima do perigo, depois o supera e pega o que quer, da pior maneira possível.
Imagino que grande parte da política masculina de direita de hoje seja uma tentativa de superar uma sensação de ineficiência, impotência, paralisia e assim por diante. E, francamente, quando eles falam sobre estupro, eles insinuam que há muito estupradores. Mas as evidências sugerem que os homens jovens, os homens jovens em geral, não estão tão interessados em sexo quanto as gerações anteriores. Eles não estão tão interessados em sexo, eles não estão tão interessados em romance, não há nada muito sexy na vida contemporânea.
Uma das coisas aqui é que eles culpam as mulheres pelo fato de não terem desejo e dizem: “somos celibatários involuntários”. Eles dizem que se as mulheres flertassem com eles, estariam dispostos a fazer sexo o tempo todo. Eu duvido. Eles estão tão confusos, chateados e fodidos quanto todos os outros, se não mais. Mas acho que eles tentam inflar seu desejo transformando-o em uma demonstração de poder, eficiência, força.
Há muito disso. Eu acho que haverá coisas específicas em Gaza, porque toda a coisa de soldados israelenses se filmando com a lingerie roubada de mulheres palestinas é obviamente paródica, é genocida, mas há algo nisso que envolve uma identificação inconsciente com a vítima.
Meu livro carecia de uma análise do papel dos centristas liberais nessa situação. Estou pensando em particular em Kamala Harris, que fez campanha com os Cheneys antes de perder para Donald Trump. Está lá em segundo plano, mas eu me perguntei se era possível explicar como os liberais se encaixam nesse quadro.
Existem dois ângulos para esta questão. O primeiro aponta para os centristas liberais como indivíduos e como grupo e sua relação simbiótica com a extrema direita. A segunda é aquela em que me concentro no livro, sobre os fracassos da civilização liberal. Sua barbárie inerente se manifesta no imperialismo e na guerra, no racismo, no sadismo fronteiriço, no trabalho e na exploração, mas também nas hierarquias de classe e na miséria que eles geram.
A questão, então, é como chegamos a situações concretas em que pessoas como Obama, Hillary Clinton e agora Kamala Harris e Joe Biden contribuem para a ascensão ao poder dessa nova formação extremista. Eu diria que o filósofo Tad DeLay coloca uma questão interessante em seu livro recente, O futuro da negação, sobre a política climática: “O que o liberal quer?” É uma boa pergunta, porque os liberais constantemente proclamam sua afinidade com valores igualitários e libertários. Afirmam apoiar a luta contra as alterações climáticas, mas também se opõem a quaisquer meios eficazes para alcançá-las.
Acredito cada vez mais que, em última análise, os liberais não querem o liberalismo. Obviamente, é preciso fazer distinções, porque há liberais que estão realmente comprometidos filosófica e politicamente com os valores liberais, que lutarão por eles e que irão para a esquerda se necessário. Mas também existem centristas ferrenhos cuja política é organizada principalmente em torno de uma fobia da esquerda. Estou falando aqui de um anticomunismo alucinatório, principalmente relacionado à direita, mas os liberais têm uma visão igualmente irrealista da esquerda e de sua suposta ameaça.
Seria bom se a esquerda fosse mais forte e estivéssemos à beira de uma revolução comunista, mas não estamos. Quando Bernie Sanders concorreu ao cargo presidente dos Estados Unidos, lembro-me do pânico entre os liberais americanos. Um apresentador temia que, uma vez que os socialistas tomassem o poder, eles encurralariam as pessoas e atirariam nelas. Pense também em como o centro duro (centro-esquerda e centro-direita) fomentou teorias da conspiração, como na Grã-Bretanha, a Operação Cavalo de Tróia: a ideia de que os muçulmanos estavam tomando conta das escolas de Birmingham. Essa teoria da conspiração não veio da extrema direita, mas dos governos liberais.
A relação é a seguinte: a extrema direita pega os predicados já estabelecidos pelo centro liberal, radicaliza-os e torna-os mais coerentes internamente. Há alguns anos, no início do período em que o Novo Trabalhismo estava no poder, começou a reprimir os requerentes de asilo. Eles regularmente colocam no noticiário fotos de um ministro em Dover procurando requerentes de asilo em vans de pessoas e coisas do gênero. Enquanto isso, o Partido Nacional Britânico (BNP) estava crescendo e dizendo em entrevistas: “Gostamos do que eles estão fazendo, eles estão nos legitimando”. Eles pegaram as preocupações que estavam no fundo das preocupações do povo em 1997 e as trouxeram para o topo, o que deu legitimidade ao BNP.
Por suas próprias razões, eles tendem a amplificar as correntes reacionárias que já estavam circulando. Então, quando a extrema direita se desenvolve nessa base, eles tendem a dizer “essa é uma boa razão para irmos mais longe nessa direção, porque mostra que, se não resolvermos esse problema, a extrema direita se desenvolverá ainda mais”. É como uma máquina de ressonância, ricocheteando uma na outra. Um dos problemas com a escolha entre um democrata centrista e um republicano de extrema-direita é que ela se baseia na exclusão da esquerda. Estruturalmente, ambos se alimentam dessa exclusão, mas no longo prazo é a extrema direita que se beneficia.
No final do livro, digo que apelar para a racionalidade e o interesse próprio das pessoas nem sempre funciona, e que a política do “pão com manteiga”, embora necessária, pode não ser suficiente: para mobilizar as pessoas politicamente, é preciso despertar suas paixões. Como devem ser as “rosas” que devem ser oferecidas junto com o “pão”?
Eu deveria ter usado essa metáfora no livro: “pão e rosas” é uma boa maneira de dizer isso. Acredito que existe uma aspiração legítima e inata à transcendência que é imanente à vida como tal. Em outras palavras, estar vivo é aspirar a uma situação sempre diferente. A vida é um processo teleológico no qual nos esforçamos para alcançar um certo nível de desenvolvimento. Mas também, a aspiração ao conhecimento, a aspiração ao outro – este é o instinto social, a aspiração, na linguagem de Platão, ao bem, ao verdadeiro e ao belo.
Acredito que esse instinto está presente em todos, em todos os seres vivos. Eu diria que podemos ver isso quando acontecem rupturas de esquerda, como a campanha de Bernie Sanders. É muito bom falar sobre pão com manteiga. Há coisas boas de que as pessoas precisam, como assistência médica e um salário-mínimo mais alto. Trata-se de lutar contra a exploração do empregador, mas também além disso é preciso enfrentar o sadismo com os que estão além das fronteiras. É preciso dizer às pessoas que elas precisam e intimamente querem viver em uma sociedade decente.
As pessoas com instintos decentes foram atraídas para esse tipo de campanha, foram, assim, eletrificadas por ela; mas, afinal, o que ela dizia? Não dizia “vote em mim e você terá mais bens materiais”; ao contrário, dizia “vote em mim e você terá uma revolução política”. E não apenas vote em mim, junte-se a um movimento político comigo, tome o poder, derrube todos os elementos decrépitos e sádicos de nossa sociedade e se aprofunde na democracia.
Bernie Sanders falou de uma jornada improvável juntos para refazer e transformar o país. As pessoas realmente querem trabalhar juntas para alcançar algo maior. Uma das patologias da vida moderna é que as pessoas se sentem frustradas, paralisadas, ineficazes. O seu modo característico de expressão era “se ficarmos juntos” e, quando ele disse isso, a multidão explodiu. Este é apenas um exemplo de ruptura da esquerda. Jean-Luc Mélenchon tem seu próprio estilo, Jeremy Corbyn tem um estilo muito diferente, mas a ideia básica é sempre a mesma: o ethos social, o esforço comum.
Karl Marx e Friedrich Engels falaram sobre essa dialética na qual você se junta a um sindicato no início para obter salários mais altos, uma jornada de trabalho mais curta, coisas de que você precisa fundamentalmente, mas depois desenvolve outras necessidades mais ricas. Muitas vezes, os trabalhadores entram em greve para defender seu sindicato, mesmo que percam dias de pagamento e suas condições materiais objetivas se deteriorem um pouco.
Eles precisam um do outro, eles precisam de sua união. Ora, isso pode ir mais longe; pode ser politizado muito mais profundamente. A necessidade mais radical é a necessidade de universalidade, no sentido marxista do termo. Quando as pessoas saem às ruas para combater as mudanças climáticas, elas pensam em um mundo unido em uma totalidade, não necessariamente num mundo onde tenham todos os gadgets e produtos de que precisam, mas um mundo onde todos e todas as espécies tenham a oportunidade de prosperar e florescer. Eu diria que isso é normal.
A questão é como esse comunismo instintivo básico, nas palavras de David Graeber (1961-2020), é frustrado, esmagado e sequestrado. Como essa necessidade impecavelmente respeitável é negligenciada e patologizada, de modo que as pessoas nem se atrevem a pensar sobre isso, muito menos expressá-lo? Cria-se esse tipo de situação para que as pessoas adotem uma espécie de postura cínica.
Acredito que as rosas de que precisamos são aquelas que vêm de nossa unidade: mencionei os termos platônicos “o bom, o verdadeiro e o belo”. Vamos pensar na cultura e no trabalho que podemos fazer juntos, vamos pensar na busca da verdade na ciência e no trabalho que fazemos juntos. Nossos esforços para elevar o padrão moral, tentando acabar com a violência, o estupro e o racismo, são capacidades intrínsecas que todos nós possuímos. É óbvio que não estamos à altura da tarefa, que podemos viver vidas privadas em que somos egoístas, odiosos e ressentidos. Mas isso não é tudo. Se fosse esse o caso, poderíamos muito bem parar com o esforço transformador e renunciar.
*Richard Seymour é jornalista. Edita o blog leninology.co.uk e é co-editor da revista Salvage. É autor, entre outros livros, de Corbyn: The Strange Rebirth of Radical Politics (Verso). [https://amzn.to/3Pb7qQ8]
Tradução: Eleutério F. S. Prado.
Publicado originalmente no portal Sin Permiso.
Notas do tradutor
[i] O texto foi construído a partir da entrevista do autor a Olly Haynes sobre o seu livroDisaster Nationalism, recém editado pela editora Verso, em que ele usa a psicanálise e marxismo para examinar o que está ocorrendo com a extrema direita mundial.
[ii] A cidade do quarto de hora é o modelo de uma cidade onde todos os serviços essenciais são a uma distância de um quarto de hora à pé ou de bicicleta, conceito relançado sob esta denominação em 2015 por Carlos Moreno, um urbanista franco-colombiano.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA