Por CAIO BUGIATO*
Estamos perto da Terceira Guerra Mundial?
1.
Quais são os motivos e quando começaram os dois grandes confrontos da política internacional atual? Qual a relação entre eles? A pessoa que se informa pela imprensa ocidental, seja por jornais, rádio, televisão e internet/redes sociais, poderia responder que a guerra no Leste Europeu começou com a invasão do Estado russo à Ucrânia em fevereiro de 2022. Responderia também que a guerra no Oriente Médio começou com o ataque terrorista do Hamas ao Estado de Israel em outubro de 2023.
Ainda, se tentasse estabelecer uma relação entre os dois confrontos, poderia responder que não existe ligação, a não ser que os agressores – o Estado russo e o Hamas – são ambas instituições bárbaras, violentas e desprovidas da racionalidade típica do Ocidente (não necessariamente com essas palavras). Assim, o objetivo deste breve artigo é responder de forma alternativa às questões levantas acima.
O Estado e a classe dominante dos Estados Unidos foram os principais criadores da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) após o fim da Segunda Guerra Mundial. Em conjunto com os Estados e as classes dominantes europeias (os sócios menores), formaram o que Nicos Poulantzas denominou cadeia imperialista, cujo braço militar é a própria OTAN. O objetivo desta organização estava claro desde sua origem: a destruição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Mais do que uma aliança militar, a OTAN se constituiu como uma organização internacional político-militar, duradoura, que acompanha a expansão do capitalismo ocidental e promove seus princípios burgueses. A OTAN se expandiu enormemente, de 12 para 32 países desde sua criação, sempre em direção às fronteiras da Rússia, que seria o principal Estado a ser incorporado/neutralizado. A Organização não tolera projetos de desenvolvimento autônomo do capitalismo nacional, governos não alinhados ao Ocidente, políticas externas independentes e projetos alternativos ao capitalismo neoliberal atual.
Após uma vitória estratégica contra a URSS, que levou ao seu fim nos anos de 1990, e uma indefinição do que então seria seu inimigo (elegeu-se o terrorismo por um tempo), a cadeia imperialista e a OTAN passaram a se deparar no século XXI com Estados e governos não alinhados (Estados contendedores), como Líbia, Síria, Irã, Rússia e China. Depararam-se com o governo de Vladimir Putin, seu projeto de capitalismo autônomo e sua política externa altiva para a Eurásia. A leitura do governo Putin é que a a expansão da OTAN no Leste Europeu e a possível incorporação subordinada da Rússia à cadeia imperialista levaria os russos para desgraças semelhantes à dominação que os EUA e os europeus exercem em Estados periféricos (e tiveram a experiência do governo Yeltsin nos anos 90 para comprovar).
Os diversos tipos de intervenções estrangeiras, regime change, golpes coloridos, etc., ligaram o alerta russo. Em 2022 o governo Putin reagiu com uma operação militar de anexação territorial na Ucrânia, país em que aconteceu um dos golpes coloridos, que se deslocava para a órbita da OTAN e que fustigava a população russa em seu território. Do ponto de vista imediato e territorial, a Rússia é a agressora nessa guerra. Do ponto de vista histórico e político, a cadeia imperialista e a OTAN são os motivos dessa guerra.
2.
A relação da cadeia imperialista com a guerra atual no Oriente Médio é similar. O Estado de Israel foi pensado pelo movimento político-ideológico sionista, fundado por Theodor Herzl no fim do século XIX, cujas bases assentam-se em concepções supremacistas, racistas e colonialistas. Concomitantemente, a migração dos judeus do Oriente Médio para o Ocidente – processo longo e marcado pelo antissemitismo – encontrou na Europa Ocidental e depois nos Estados Unidos lugares onde, em parte, compuseram a classe dominante.
Na Inglaterra, os sionistas receberam auxílio do imperialismo para se instalarem na Palestina e iniciar um processo violento de colonização durante o Mandato Britânico na Palestina entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. O imperialismo britânico foi o vetor de instalação de uma unidade política colonizadora no Oriente Médio, que deu origem ao Estado de Israel. Diante dos conflitos entre colonizadores e a resistência na região, os britânicos passaram o problema para a Organização das Nações Unidas, que, sob pressão dos sionistas e dos Estados Unidos, criou por decreto o Estado de Israel em 1948, após o Holocausto.
A partir de então, a cadeia imperialista liderada pelo Estado e a classe dominante do Estados Unidos foi a grande patrocinadora do colonialismo israelense. A militância dos sionistas como classe dominante no Estados dos EUA é feita por organizações judaicas que pressionam as instituições estatais para financiar Israel: este Estado é o que mais recebeu ajuda militar norte-americana na história. Na ONU, EUA e Israel sempre votaram juntos a favor de sanções que rebentam economias nacionais; inclusive votaram pela não condenação do apartheid na África do Sul.
Do outro lado do mundo, Israel cumpriu funções de neutralizar e desbaratar projetos nacionalistas dos Estados árabes e o pan-arabismo, não alinhados a Washington e de impedir a aproximação desses países com a URSS, além de interferir a favor do Ocidente em rotas estratégicas e recursos naturais da região. As forças armadas, a diplomacia e a inteligência do Estado de Israel foram patrocinadas pela cadeia imperialista em sua empreitada expansionista nas guerras árabe-israelense em 1948, dos Seis Dias em 1967, do Yom Kippur em 1973, entre outras, e agora no genocídio em Gaza e na anexação colonial na Síria.
Do ponto de vista imediato, a guerra atual no Oriente Médio começou com a agressão da resistência palestina, o Hamas, em outubro de 2023. Do ponto de vista histórico, territorial e político, a guerra que já dura décadas é perpetrada pelo Estado colonizador de Israel.
Nessa altura já deve estar claro – e isso tem sido óbvio para muitos analistas há tempos – que o motor das guerras é a cadeia imperialista liderada pelos EUA; sua relação com as guerras no Leste Europeu e no Oriente Médio foi apresentada acima. Em fatos mais atuais e concretos, os EUA (junto com os europeus) são os maiores fornecedores de auxílio militar e econômico para o Estado ucraniano e o presidente Joe Biden autorizou recentemente que as forças armadas da Ucrânia usem as armas estadunidenses de longo alcance para atingir o interior do território russo.
Os EUA enviaram para a costa de Israel parte de seu apartado marítimo de guerra para dar suporte aos sionistas. E no momento em que escrevemos as forças armadas dos EUA atacam o Iêmen, país onde estão grupos armados que se opõe ao colonialismo israelense. Talvez a Síria seja a junção das duas frentes explicadas aqui: um Estado contendedor – com apoio da Rússia – de um lado ocupado pela cadeia imperialista, de outro tragado pelo colonialismo israelense, em seu projeto da Grande Israel.
3.
Diante deste quadro, uma outra pergunta que se impõe é: estamos perto da Terceira Guerra Mundial? Vejamos isso em termos quantitativos:
Tabela – Comparação entre as guerras
Estados beligerantes na IIGM | Estados nos confrontos atuais | |
1 | Alemanha (Eixo) | Albânia (OTAN) |
2 | Itália (Eixo) | Alemanha (OTAN) |
3 | Japão (Eixo) | Bélgica (OTAN) |
4 | Bulgária (apoio ao Eixo) | Bulgária (OTAN) |
5 | Hungria (apoio ao Eixo) | Canadá (OTAN) |
6 | Romênia (apoio ao Eixo) | Croácia (OTAN) |
7 | Eslováquia (apoio ao Eixo) | Dinamarca (OTAN) |
8 | Reino Unido (Aliados) | Eslováquia (OTAN) |
9 | Canadá (Aliados) | Eslovênia (OTAN) |
10 | Austrália (Aliados) | Espanha (OTAN) |
11 | Nova Zelândia (Aliados) | Estados Unidos (OTAN) |
12 | África do Sul (Aliados) | Estônia (OTAN) |
13 | Brasil (Aliados) | Finlândia (OTAN) |
14 | EUA (Aliados) | França (OTAN) |
15 | URSS (Aliados) | Grécia (OTAN) |
16 | Argentina (apoio aos Aliados) | Hungria (OTAN) |
17 | Bolívia (apoio aos Aliados) | Islândia (OTAN) |
18 | Chile (apoio aos Aliados) | Itália (OTAN) |
19 | Colômbia (apoio aos Aliados) | Letônia (OTAN) |
20 | Costa Rica (apoio aos Aliados) | Lituânia (OTAN) |
21 | Cuba (apoio aos Aliados) | Luxemburgo (OTAN) |
22 | República Dominicana (apoio aos Aliados) | Macedônia do Norte (OTAN) |
23 | Equador (apoio aos Aliados) | Montenegro (OTAN) |
24 | Egito (apoio aos Aliados) | Noruega (OTAN) |
25 | El Salvador (apoio aos Aliados) | Países Baixos (OTAN) |
26 | Guatemala (apoio aos Aliados) | Polônia (OTAN) |
27 | Haiti (apoio aos Aliados) | Portugal (OTAN) |
28 | Honduras (apoio aos Aliados) | Reino Unido (OTAN) |
29 | Iraque (apoio aos Aliados) | Romênia (OTAN) |
30 | Líbano (apoio aos Aliados) | Suécia (OTAN) |
31 | Libéria (apoio aos Aliados) | Tchéquia (OTAN) |
32 | México (apoio aos Aliados) | Turquia (OTAN) |
33 | Mongólia (apoio aos Aliados) | Ucrânia |
34 | Nicarágua (apoio aos Aliados) | Rússia |
35 | Panamá (apoio aos Aliados) | Israel |
36 | Paraguai (apoio aos Aliados) | Gaza |
37 | Peru (apoio aos Aliados) | Líbano |
38 | Arábia Saudita (apoio aos Aliados) | Síria |
39 | Turquia (apoio aos Aliados) | Iêmen |
40 | Uruguai (apoio aos Aliados) | Irã |
41 | Venezuela (apoio aos Aliados) | |
42 | China (em guerra contra o Japão desde 1931) |
Na coluna da esquerda estão os Estados e apoiadores do Eixo e os Estados e apoiadores dos Aliados, os protagonistas da Segunda Guerra Mundial. São Estados que fizeram formalmente/diplomaticamente declarações de guerra. Excluímos dessa coluna os Estados ocupados ou anexados, pois foram submetidos a Estados beligerantes. No total são 42 Estados. Na coluna da direita estão os Estados da OTAN – o conjunto de países responsáveis pela guerra no Leste Europeu –, a Ucrânia e a Rússia – beligerantes diretos –, o Estado colonialista de Israel e os países atacados por este. No total são 40 Estados. Tudo isso sem contar os levantes no Sahel africano e as tensões que envolvem a China.
Em termos qualitativos pensemos como Friedrich Engels, um dos maiores estudiosos da guerra. Engels relaciona o modo de produção à capacidade de um Estado na guerra. Isto é, o desenvolvimento das forças produtivas está relacionado com a forma de luta no campo de batalha. Assim ele explica que Estados com populações e forças armadas menores, mas com mais alto desenvolvimento das forças produtivas, foram superiores e vitoriosos no campo de batalha.
Isso explica em parte os triunfos militares de Inglaterra e França mundo afora no século XIX, em relação por exemplo ao exército czarista. Nesse sentido, as guerras atuais vão além de pelotões de soldados postados em trincheiras e/ou em conflito no campo de batalha. O confronto também envolve recursos informacionais, eletrônicos, cibernéticos; ataques hackers, drones e inteligência artificial. São guerras que misturam o tradicional com o invisível, entre 40 países em dois continentes, que têm escalado dia após dia. [i]
*Caio Bugiato é professor de Ciência Política e Relações Internacionais na UFRRJ e no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da UFABC.
Nota
[i] Este breve artigo é o um texto desenvolvido e adaptado a partir da nossa apresentação de pesquisa no seminário Crise política, a nova direita, o Estado e os conflitos de classe no Brasil, na UNICAMP em dezembro de 2024. O seminário foi o evento de encerramento das atividades das pesquisas do grupo Neoliberalismo e classes sociais no Brasil. Com financiamento do CNPq, o grupo realizou pesquisas que envolvem a temática do título do seminário, assim como o contexto internacional. Na ocasião também homenageamos o professor Armando Boito Júnior, que se aposentou e é grande referência intelectual para nós. Agradeço a Ana Penido, cujos dados e informações trazidos ao evento ajudaram a enriquecer este artigo.