Por MARCUS IANONI*
A desmoralização e a seletividade política das instituições do Estado não têm limites, perdoam indefinidamente os crimes de responsabilidade que Bolsonaro insiste em cometer, a começar por colocar em risco a vida das pessoas
Com frequência, as crises internacionais que emergem no sistema de sociedades capitalistas, articulado, antes de tudo, pelo mercado mundial, impactam a política, tenham elas natureza econômica, bélica ou sanitária. As alianças entre os atores tendem a mudar, seja em eleições realizadas em cenários de aumento da incerteza, ou por golpes de Estado. O capitalismo está imerso na quinta crise internacional, desencadeada por uma variável exógena, o coronavírus. Nessas circunstâncias, a disputa política pelos rumos nacionais tende a acirrar-se, abrem-se janelas de oportunidade, fases históricas podem passar por mudança de trajetória, redefinem-se ganhadores e perdedores dentro e fora dos países. O que o passado nos ensina e o que se passa no Brasil com os atores (interesses e coalizões), políticas públicas e regime político, variáveis-chave para entender o Estado?
Na Longa Depressão, no fim do século 19, Bismarck alavancou sua liderança como estadista, unificou os junkers, até então defensores do livre-comércio, e os industriais, em uma coalizão protecionista, que também afirmou o nacionalismo e o imperialismo econômico e militar da Alemanha. Nessa mesma crise econômica, uma coalizão também protecionista, mas apenas na indústria, alavancada pelos Republicanos nos EUA, que venceram as eleições, marcou a mudança do terceiro para o quarto sistema partidário, ambiente no qual esse partido dominou a política daquele país por quatro décadas. O Brasil não escapou dessa crise. Fatos e processos como a queda dos preços do café nos anos 1880, a imigração, a Abolição, a Proclamação da República e o Encilhamento têm conexões com o ambiente crítico.
A Grande Depressão demarca uma mudança de trajetória no capitalismo liberal. Ela ensejou a vitória eleitoral de Roosevelt, um político que marcou época. Seu principal feito foi costurar, por decisões políticas circunscritas no New Deal, uma bem-sucedida reação à crise e uma nova coalizão, de conteúdo progressista, que demarcou o quinto sistema partidário, dominado pelos Democratas até seu enfraquecimento nos anos 1960, com a vitória de Nixon.
O processo que conduz ao atual sexto sistema partidário, minando o anterior, relaciona-se também com as disputas entre defensores e opositores dos direitos civis, a Guerra do Vietnã e a ofensiva radical dos conservadores no interior do Partido Republicano, desbancando os moderados, contra os liberais (Democratas), que se consolidará com a ascensão do neoliberalismo, a partir da vitória de Ronald Reagan, no contexto da crise de estagflação dos anos 1970, a terceira grande crise internacional do capitalismo, que demarcará nova mudança de trajetória.
Pouco mais de um ano antes, a ascensão de Margaret Thatcher, desbancando o Partido Trabalhista, dava a largada política para essa nova fase histórica, com a retomada da política econômica ortodoxa, em um contexto de alteração estrutural da relação de forças entre capital e trabalho, em prejuízo dos trabalhadores, com o respaldo de corporações do business que, até então, estavam suportando os custos de certos direitos trabalhistas e sociais do pós-guerra.
Hitler ascendeu ao governo durante a Grande Depressão, a partir do colapso da coalizão de Weimar, que havia emergido no contexto da proclamação da República, após a derrota do Império Alemão na I Guerra Mundial. Ela agregava um bem comportado Partido Social-Democrata, o centro político e a direita moderada. Já o führer instituiu um governo nacionalista, implementou um conjunto poderoso de políticas de estimulação da demanda e construiu uma coalizão fascista, unindo as várias frações da burguesia contra as organizações dos trabalhadores e contra os judeus.
Mas, além dos EUA, a democracia resistiu também na Inglaterra, onde se organizou um surpreendente governo nacional reunindo Trabalhistas, Liberais e Conservadores em torno de políticas liberais apimentadas com certo protecionismo e alguns direitos sociais.
No Brasil, a Grande Depressão influenciou os acontecimentos da Revolução de 1930, cujos desdobramentos rearranjaram a relação do Estado com a burguesia cafeeira, sendo redefinida sua posição relativa nas prioridades das políticas públicas, para que a industrialização e a urbanização avançassem. A crise dos anos 1970, especialmente os dois choques do petróleo e a política monetarista de Paulo Volcker, reforçaram o enfraquecimento e declínio da estratégia de crescimento com endividamento externo, cujo estertor foi a crise da dívida, em 1980.
A quarta crise internacional, a Grande Recessão de 2007-2008, recolocou o Estado, ao menos momentaneamente, como tábua de salvação do setor privado, sobretudo nos EUA, onde ele socorreu bancos e indústrias com bilhões de dólares do Tesouro. Mas também no Brasil, então governado por Lula, o Estado foi importante. Esse presidente liderou a execução de uma série de políticas públicas para responder à recessão, destacando-se os investimentos do Estado em obras e projetos de infraestrutura. Os resultados foram colhidos no PIB de 2010, que cresceu 7,5%. Era, então, o último ano do segundo mandato de Lula, que deixou o cargo com 87% de aprovação, segundo o Ibope.
No entanto, o ambiente sociopolítico instável do neoliberalismo, cujos resultados em crescimento, emprego, desigualdade e crises são inferiores aos dos Trinta Gloriosos, trouxe à tona, em várias partes do mundo, os descontentes com a globalização, especialmente as novas forças partidárias e eleitorais de extrema-direita, entre as quais está o trumpismo, liderado por um político que não fazia parte da máquina partidária republicana, mas logrou vencer as prévias desse partido. Sua agenda configura um neoliberalismo autoritário, que abarca certo nacionalismo, expresso na política anti-imigração, no protecionismo contra a China, na política externa focada na segurança, na desregulamentação dos mercados, redução de impostos para os ricos, corte de políticas sociais para os pobres e um conjunto de valores conservadores, entre os quais racismo, xenofobia e ataques aos direitos em geral.
Sua imitação tropical é Bolsonaro. Emergiu na onda antipetista, em meio a uma grande onda de crise econômica, enfrentada com medidas pró-cíclicas, ancoradas na austeridade, que só agravaram-na. Como se não bastasse, à crise econômica articulou-se uma crise política alimentada pelo ódio crescente contra a presidente e seu partido, que em 2014 vencia pela quarta vez consecutiva as eleições presidenciais. O cenário trágico configurou-se no golpe de Estado de 2016, que descortinou um ambiente estrutural caracterizado pela tibieza da economia, por certa deformação ideológica das instituições do Estado e pela instabilidade política, tudo isso muito em função do estreitamento da agenda pública, amesquinhada no receituário ultraliberal e em um combate à corrupção executado de modo politizado, sensacionalista e inconsequente, visando, antes de tudo, a derrotar e enfraquecer o PT e a esquerda em geral.
Entre os componentes político-estruturais da tragédia, destacaria, por um lado, o alinhamento das burguesias à candidatura de Bolsonaro, no segundo turno de 2018, por falta de opção melhor à preferência então acentuadamente pragmática desses fregueses despossuídos de apego apriorístico ao Estado Democrático de Direito, tendência oportunista, aliás, muito em voga no contexto internacional em que, por um lado, a democracia atrapalha o capital, por outro lado, ela ainda não pode deixar de ser, para o conjunto dos liberais do mercado, “o pior dos governos, exceto todos os demais”. Por outro lado, protestos de direitistas, inclusive de extrema-direita, emergem nas ruas, fornecendo suporte popular de classe média à mencionada agenda mesquinha.
Mas, desde o ano passado, e principalmente nessa pandemia, que explicitou o descaso do presidente com a saúde e a vida de milhares de brasileiros, e com a demissão do ministro Moro, as duas locomotivas do comboio da direita neoliberal romperam. Divorciaram-se, por um lado, os autoritários de carteirinha – entre os quais, além de setores civis, os militares e outros atores da área da segurança, seja pública (PMs, Guardas Municipais) ou privada, lícita ou ilícita; por outro lado, os liberais-conservadores moderados, que, pelo menos desde 2016, vêm prestando uma reverência seletiva à ordem constitucional. Em 2017, por exemplo, a mesma Câmara dos Deputados que autorizara o processo de Dilma Rousseff por crime de responsabilidade poupou por duas vezes Temer de ser processado pelo STF com base em denúncias formuladas pela PGR. Havia uma pressão do mercado para que a “ponte para o futuro” continuasse a ser construída, ao invés de ruir.
Enfim, o que podemos resgatar dessas informações? Vou priorizar em poucas palavras o aspecto da relação entre coalizões de classe, autoritarismo e programa de políticas públicas. Unificando as burguesias, Bismarck, pela via autoritária-prussiana, impulsionou a industrialização e o nacionalismo imperialista alemão, retomado por Hitler, também respaldado pela frente única burguesa e por camadas médias. Recorrendo a Barrington Moore Jr., pode-se pensar que, nos EUA e no Reino Unido, a subordinação do conservadorismo agrário e dos grandes proprietários às classes urbano-industriais dos negócios, que se relacionaram com o Estado sem abrir mão dos direitos civis (exceto aos negros nos EUA até os anos 1960), serviu de barreira de proteção contra o autoritarismo, limite que Trump tem tentado minar, com discursos, valores e práticas protofascistas, fortemente respaldado na baixa classe média e nos pequenos empresários. Ademais, Trump presenteou os ricos com redução de impostos. Porém, a divisão do país em relação a esse presidente e a tradição democrática dos EUA são fatores de freio ao autoritarismo, embora mesmo lá a democracia esteja perdendo apoio.
No Brasil de 1964, a unificação das burguesias suportou o golpe. Já na crise de estagflação no final dos anos 1970, setores importantes do empresariado industrial foram rompendo com a ditadura militar e apoiaram a chapa de Tancredo-Sarney ao Colégio Eleitoral, em 1985. No período recente, como dito, apoiaram o golpe de 2016 e apostaram em Bolsonaro no segundo turno de 2018.
Follow the Money! Essa frase tem orientado a luta para revelar a corrupção, mas evoco-a para iluminar os donos do dinheiro. O que querem os ricos, os grandes empresários nacionais e internacionais que aqui atuam? Por muito menos do que está ocorrendo hoje, em termos jurídicos e de caos nacional, Dilma foi deposta. Não havia nenhuma ameaça à democracia, conforme reconhece um editorial de O Globo, publicado ontem, dia 31 de maio, propondo que os democratas conversem. O custo do apoio à plataforma ultraliberal de Temer e de Guedes não está sendo muito alto? O respeito à democracia não é mais eficiente econômica e politicamente? Não seria menos custoso livrar o país do genocídio, do caos e de uma estratégia de governar que produz cotidianamente a instabilidade política?
Enquanto na situação de Dilma Rousseff não havia crime de responsabilidade claro, não havia motivo jurídico indubitável, hoje eles abundam. No entanto, a união política para derrubar Dilma foi fortíssima, inclusive entre o empresariado. Começando no final de 2015, tornou-se uma avalanche em março de 2016, quando a Fiesp liderou a publicação, nos principais jornais do país, de um manifesto que ocupava 14 páginas, assinado por centenas de federações, sindicatos e associações empresariais de vários estados. Conteúdo? Impeachment Já! Hoje a Câmara dos Deputados não tomou a iniciativa de desengavetar os inúmeros pedidos de impedimento do presidente, que se alinhou a parlamentares do Centrão para se proteger de eventual deposição. Seja como for, o que o grande empresariado tem a dizer?
O Globo propõe um grande acordo pela democracia, a princípio, incluindo Bolsonaro. Mas o Cavalão não é domesticável, sonha com a reeleição e está se enrolando em vários inquéritos. Se o STF, o TSE e o Congresso derem mais chances a Bolsonaro, ainda assim, pergunta-se: como ele tentaria reerguer sua imagem desgastada perante a maioria dos eleitores, a não ser radicalizando nos métodos usuais, Fake News, provocações, ameaças, guerra ideológica, ataques à imprensa? Será viável e desejável um grande acordo? A desmoralização e a seletividade política das instituições do Estado não têm limites, perdoam indefinidamente os crimes de responsabilidade que ele insiste em cometer, a começar por colocar em risco a vida das pessoas e o que resta de democracia nesse regime enfraquecido?
A sociedade civil está emergindo contra Bolsonaro. O manifesto Estamos#JUNTOS é uma iniciativa importante. Mas o grande ausente é o empresariado. Onde está o dinheiro e aonde ele vai?
*Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF)