O fantástico na literatura – um breviário

John Piper, Olho e Câmera, Vermelho, Azul e Amarelo, 1980
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Por RICARDO IANNACE*

Uma incursão por tramas canônicas, graças às quais o fantástico, perto de alcançar três séculos, se faz conhecido e explorado

Para Nádia Battella Gotlib

“O fantástico força uma crosta aparente, e por isso lembra o ponto vélico; há algo que encosta o ombro para nos tirar dos eixos” (Julio Cortázar).

1.

Insólito, sinistro, estranho e realismo maravilhoso são termos vizinhos, amistosos e, em alguma medida, congênitos ao fantástico. Uma pergunta, aliás, costuma chegar com regularidade aos pesquisadores da vertente: o fantástico se classifica como gênero, subgênero, categoria, meio ou modo de construção ficcional?

A designação modo de construção é recente e recebe a anuência dos estudiosos. O fenômeno literário, que encontra nos gêneros conto e romance um terreno fértil para seu desenvolvimento, engenha-se a partir de gramática própria; em outras palavras, a poética que edifica tal matéria põe em relevo uma concentração de ingredientes e um procedimento narrativo sui generis. Para ilustrar, cabe a incursão por tramas canônicas, graças às quais o fantástico, perto de alcançar três séculos, se faz conhecido e explorado.

De início, o aceno é ao conto “O homem da areia”, do alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822), escritor contemporâneo de J. W. von Goethe. Elaborada em 1815, a intriga tornou-se conhecida em decorrência de sua qualidade estética e devido a Sigmund Freud, em 1919, tomá-la como objeto de especulação para formular o ensaio “Das Unheimliche”, título que em português recebeu estas traduções: “O estranho”, “O inquietante” e “O infamiliar”.

No texto de Hoffmann inscrevem-se elementos que estão na raiz dessa linhagem caracterizada intencionalmente por atmosfera turva, sob a condução de narrador habilidoso na arte da impenetrabilidade, sem a qual o receptor talvez não hesitasse — verbo escolhido por Tzvetan Todorov para equalizar a reação desse leitor. Pois bem: reside em “O homem da areia” a figuração do duplo, do autômato e da incerteza no tocante a ocorrências anunciadas na esfera do sobrenatural; certa ideia fixa se potencializa na personagem e conquista status de anomalia psíquica.

A vida de Nathaniel é preenchida por acontecimentos ininteligíveis. Esse protagonista, na troca de missivas com a noiva e o amigo, irmão desta, intui que seu relato será interpretado como uma alucinação. Segundo ele, a absurda cadeia de incidentes que o literalmente envolve não pode ser apreendida como lances casuais — da mesma forma que essa teia ambígua desautomatiza e invalida explicações de grandeza cognitiva. Baralham-se em sua mente episódios da infância, os quais, na fase adulta, reverberam de modo atordoante.

Primeiro: a lenda contada pelos mais velhos aos infantes que desobedecem à determinação de se recolherem para dormir. Conforme a crença popular, um homem malvado, a altas horas, aproxima-se das crianças resistentes ao sono e arremessa punhados de areia nos seus olhos, que, uma vez despregados das cavidades oculares e ensanguentados, são postos em um saco e levados à Lua pela criatura perversa, a fim de servirem de alimento aos seus filhos, cujos bicos se assemelham aos das corujas.

Segundo: a visita noturna, vez ou outra, de Coppelius à família de Nathaniel; para o protagonista, o advogado de aparência medonha é nada menos que o homem da areia. Tarde da noite, o indivíduo sinistro pratica experiências alquímicas, trancafiado com o pai do menino no gabinete — espaço onde irrompe o acidente responsável pelo óbito do chefe da casa.

Terceiro: o aparecimento do italiano Giuseppe Coppola, sobrenome cuja grafia (veja-se a duplicidade) espelha as consoantes e a vogal do outro, chamado Coppelius. Ele é um óptico, vendedor de barômetros e lentes.

De fato, o conto de Hoffmann traz uma combinação de eventos surpreendentes. Nos parágrafos que precedem ao epílogo, com a cena do baque fatal de Nathaniel de uma torre, quando se acreditava que ele superara a crise psicológica (detalhe: do alto, avistou Coppola na praça), dá-se a paixão insana do rapaz pela jovem Olímpia, filha do professor Spalanzani; avante, o enamorado descobre que a moça era uma boneca de madeira (os olhos dela são arrancados pelo comerciante Coppola — também fabricante de artefatos artificiais — ao desentender-se com o catedrático que arquitetava o androide). Em resumo, o texto hoffmanniano, em sua economia, eclipsa os porquês da ventura excepcional da personagem.

2.

Considere-se que a ambiência insólita, por si, não se sustenta como assinatura do fantástico (sobretudo do fantástico primevo, clássico). É preciso mais: sob determinada névoa espessa, o duplo, a androginia, a necrofilia e a insurgência de patologias, afora as estátuas moventes, os aparelhos mecânicos com gestualidade humana ou os humanos com movimento maquinal, estão em estreita aliança. Com efeito, essas narrativas de origem europeia, que vêm a público ao final do século XVIII e ganham força no XIX, disseminando entre nações, encetam o desabono ao racionalismo iluminista e ao cartesianismo, contrariando a doutrina das verdades.

Esses construtos se aclimatam à escola romântica. Lembre-se de que o fantástico encontra acolhimento no espírito gótico e opera na consolidação dessa perspectiva estética que se ramifica na corrente oitocentista; afinal, dispositivos como insanidade, estado onírico, mistério, grotesco e morte assomam às faturas. Edgar Allan Poe (1809-1849), autor estadunidense a quem se deve o legado do horror e do fantasmagórico, avulta como ícone dessa tendência literária. O conto “William Wilson” emblema esse ideário.

Publicado em 1839, o texto de Poe agencia o fenômeno do duplo de maneira inigualável. O narrador posicionado em primeira pessoa registra com gravidade a desonra que pesa sobre si, oriunda de vícios morais precocemente manifestados. Tão logo é admitido no colégio interno, descobre a existência de condiscípulo de nome igual ao seu e com idêntica aparência: “Digo-lhes que, se tivéssemos sido irmãos, teríamos sido gêmeos (…); e se espantem como eu: depois de ter deixado o colégio, vim a saber, por acaso, que meu xará nascera ao dia 19 de janeiro de 1813, precisamente a data do meu nascimento.” (Poe, 1996, pp. 112-3).

A um espiral de dados convergentes — o “mesmo nome, os mesmos traços, o mesmo dia de chegada ao colégio” e de abandono da instituição —, somem-se o convívio tenso e a rivalidade entre os William Wilson (note-se, a propósito, a ressonância desses morfemas). Testemunha a personagem, em retórica peremptória e interrogativa: “Meu andar, minha voz, meus costumes, meus gestos! Seria tudo isso o resultado de uma imitação apenas?” (Idem, p. 115). Nessa história, a similitude irrespondívelrepousa no seio do fantástico, no lusco-fusco do gótico e do horror. O sósia persegue-o, sussurra-lhe e, à presença de estranhos, denuncia as ações fraudulentas do (anti-)herói. Há, no conto, referências a reuniões secretas com jogatina, baile noturno com trajes à fantasia, máscaras e embriaguês; há duelo e homicídio. O ser constituído como réplica, fac-símile (dono, inclusive, de uma voz que se confunde com a consciência do narrador), é assassinado em um salão amplo e espelhado.

O ensaio de Freud é anterior à narrativa “William Wilson”; se o psicanalista austríaco a conhecesse, decerto a incluiria em suas proposições sobre o duplo. “Das Unheimliche” configura-se como leitura intrincada do mundo perturbador de Nathaniel. A análise freudiana descortina uma cartografia de sombras na escritura de Hoffmann, iluminando a imagem paterna e a castração infantil.

O pai bom (mantenedor e protetor da família) e o pai mau (Coppola, homem da areia) desdobram-se, respectivamente, nas personae do professor Spalanzani e do vendedor de olhos sintéticos. E o conflito edipiano, haja vista a relação malsucedida entre Nathaniel e o sujeito feminino, ecoa no dueto Clara (a noiva) e Olímpia (o autômato). O psicanalista ainda adverte que o brinquedo boneca — culturalmente oferecido às crianças — age na fantasia de maneira singular, porque, àqueles que atravessam a tenra idade, a concepção identificadora de corpos animados e inanimados se expressa frequentemente borrada.

Em “Das Unheimliche” está registrado que um médico chamado E. Jentsch realizara estudo introdutório a respeito do inquietante(o que parece funcionar como start às reflexões freudianas acerca do tema). Jentsch acerta no sintagma “incerteza intelectual” para traduzir o estranho sentimento, mas o escritor Friedrich Schelling vai além: é “[…] tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas apareceu.” (Apud Freud, 2010, p. 337).

Freud, por sua vez, sintetiza com propriedade: “[…] esse unheimlich não é realmente algo novo ou alheio, mas algo há muito familiar à psique, que apenas mediante o processo da repressão alheou-se dela.” (Freud, 2010, p. 360). O pensador de Viena não ignora o trabalho do amigo e compatrício, médico psicanalista, Otto Rank — Der Doppelgänger (1914) [O duplo: Um estudo psicanalítico]. Trata-se de pesquisa inicial que se adensa e ganha publicação em livro no ano 1925; é, até hoje, referência a todos que perscrutam o fantástico e seus arredores.

As inferências de Rank contemplam literatos universais. Hans Christian Andersen, Fiódor Dostoiévski, incluindo Hoffmann, Poe e outros cujas narrativas vislumbraram o duplo e a sombra, são incisivamente recuperados. O investigante é prodigioso nas remissões a comunidades, tabus e mitos regionais (“[…] É um costume muito difundido na Áustria, em toda a Alemanha e também entre os países eslavos meridionais, realizar, nas vésperas do Ano Novo e do Natal, o seguinte teste: aquele que, com o acender da luz, não fizer sombra na parede do quarto ou cuja sombra não tiver cabeça, morrerá em um ano.” [Rank, 2014, posição 762] / “[…] Alguns povos levam ainda hoje seus enfermos ao sol para atrair de volta, com sua sombra, a alma prestes a partir.” [Idem, posição 800]) — isto é, um mosaico cravejado de superstições e fulgurações obituárias vem à baila nesse estudo. Observação: o ementário que ao longo da História se estratifica sobre o fantástico mergulha em várias dessas nascentes.

3.

Diante de volumoso material sobre a natureza e os aspectos da vertente ficcional aqui discutida, um recorte teórico-crítico mostra-se necessário; a bem da verdade, postulados tornam-se mais elucidativos quando expostos em simultaneidade com obras para as quais eles lançam farol. De saída, a menção é a Todorov.

Em Introdução à literatura fantástica (1970), o historiador búlgaro, guiado por uma visão sistematizadora, à feição do estruturalismo, elege e comenta uma série de narrativas de verve insólita, depreendendo-as como gênero. Isso suscita controvérsias: ao firmar, taxonomicamente, incontáveis tipologias, oferece a algumas delas uma conceituação frágil; entretanto, não parece justo ignorar que, no conjunto, os argumentos de Todorov encerram plausibilidade. Veja-se: “‘Cheguei quase a acreditar’: eis a fórmula que resume o espírito do fantástico.” (Todorov, 1992, p. 36). E mais: “A hesitação do leitor é pois a primeira condição do fantástico.” (Idem, p. 37). Declara-se: “há narrativas fantásticas nas quais todo medo está ausente […]. O medo está frequentemente ligado ao fantástico mas não como condição necessária.” (Idem, p. 41).

Entre as aferições de Todorov, estas são bastante categóricas: “Há uma diferença qualitativa entre as possibilidades pessoais que tinha um autor do século XIX, e as de um autor contemporâneo.” (Idem, p. 168). Porque, além de a ficção atinente ao milênio de James Joyce revelar-se majoritariamente ousada no experimentalismo verbal — a palavra flertando a si, em sintaxe turbulenta, encrespada —, existe o fato de a psicanálise ter substituído “(e por isso mesmo torna inútil) a literatura fantástica. Não se tem necessidade hoje de recorrer ao diabo para falar de um desejo sexual excessivo, nem aos vampiros para designar a atração exercida pelos cadáveres: a psicanálise, e a literatura que, direta ou indiretamente, nela se inspira, tratam disto tudo em termos indisfarçados.” (Idem, p. 169).

Embora as intrigas “Casa tomada”, de Julio Cortázar (1914-1984), e “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges (1899-1986), não sejam alvo de sondagem na ensaística de Todorov, parecem exemplares no que tange à “neutralidade” do medo. Os dois prosadores, ao lado de Gabriel García Márquez, Juan Rulfo e outros hispano-americanos do século XX, despontam, em seus países correspondentes, como paradigmáticos do boom da literatura de ramagem extraordinária. Às vezes, os textos manifestam dicção filiada a um fantástico genuíno, mas — sem rarefação — eles tilintam como composições típicas do realismo maravilhoso.

Quanto a essas especificidades e fronteiras, vale atentar-se às colocações de Irlemar Chiampi: “O fantástico contenta-se em fabricar hipóteses falsas […], sem oferecer ao leitor nada além da incerteza […].” (Chiampi, 1980, p. 56). Entende-se que, nos “contos maravilhosos (com ou sem fadas), não existe o impossível, nem o escândalo da razão: tapetes voam, galinhas põem ovos de ouro, cavalos falam, dragões raptam princesas, príncipes viram sapos e vice-versa. […] Assim, enquanto na narrativa realista a casualidade é explícita (isto é: há continuidade entre causa e efeito) e na fantástica ela é questionada (comparece pela falsificação das hipóteses explicativas), na narrativa maravilhosa ela é simplesmente ausente.” (Idem, p. 60).

De permeio, “[…] a casualidade interna (‘mágica’) do realismo maravilhoso é o fator de uma relação metonímica entre os dados da diegese […]; ao leitor desamparado e aterrorizado pela fuga do sentido do fantástico, é restituído o sentido: a fé na transcendência de um estado extranatural, nas leis meta-empíricas” (Chiampi, 1980, p. 61); motivo por que as “personagens do realismo maravilhoso não se desconcertam jamais diante do sobrenatural, nem moralizam a natureza do acontecimento insólito.” (Idem, p. 61).

Em “Casa tomada” (1946), o narrador apresenta-se como homem de meia-idade que vive na companhia de Irene, sua irmã; metódicos, são os únicos ocupantes do imóvel herdado da família. O destino não facultou a algum deles a alegria ou o dissabor do matrimônio; em vez disso, nessa união consanguínea, cada qual passa a cuidar do outro e a zelar, com exagero, pela residência de metragem avantajada. O conto não sintoniza com narrativas abalizadas pelo medo: a inquietude é branda, se comparada às histórias de têmpera oblíqua do XIX (nem da arena do verossímil, tampouco da órbita do realismo maravilhoso, sequer da latitude do fantástico castiço — essa urdidura de Cortázar se situa no intermezzo).

A rotina pacata dos irmãos afeiçoados à moradia é destruída quando ambos começam a escutar rumores ali dentro (ele, absorto nos livros e na coleção de selos deixada pelo pai; ela, empenhada nos afazeres da cozinha e na tarefa da costura). Para se protegerem, optam pelo bloqueio dos cômodos, impedindo o acesso aos aposentos e, por contiguidade, a comunicação entre as dependências; com essa decisão, os proprietários comprimem-se dia após dia no domicílio.

Até que, certa noite, eles se evadem da habitação: “[…] Cingi com meu braço a cintura de Irene (eu acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de nos afastar tive pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no bueiro.” (Cortázar, 1971, p. 18). Parafraseando Todorov, seria razoável considerar que o leitor contemporâneo dificilmente assimilaria os ruídos apontados na trama como manifestação de almas do outro mundo, ou algo semelhante a isso.

O estranhamento suscitado resvala a interpelações nada quiméricas. Há indícios na intriga de que Irene e o protagonista teriam vivido experiência incestuosa: “[…] Entramos nos quarenta anos com a inexprimível ideia de que o nosso simples e silencioso matrimônio de irmãos era o fim necessário da genealogia fundada pelos bisavós em nossa casa.” (Cortázar, 1971, p. 11). Ao alastrar-se, a acústica inclemente rebenta como autocensura, obsidiando-os.

Nos cursos de literatura que Cortázar ministrava, ele preferia silenciar a trazer a lume as intenções metafóricas de seus escritos. Reservava os minutos derradeiros das aulas para interagir com estudantes esperançosos em lograr do mestre as senhas decodificadoras da sua obra. Todavia, as respostas do autor argentino eram, nessas circunstâncias, evasivas: “[…] no meu caso os contos fantásticos nasceram muitas vezes de sonhos, principalmente de pesadelos. Um dos contos mais trabalhados pela crítica, para o qual buscaram um sem-fim de interpretações, é um pequeno conto que se chama ‘Casa tomada’.” (Cortázar, 2018, p. 67). Reitera: “[…] no pesadelo eu estava sozinho e no conto me desdobrei num casal de irmãos que vive numa casa onde ocorre um evento de tipo fantástico.”. E esse “conto segue exatamente o pesadelo.” (Idem, p. 67).

“Funes, o memorioso” (1942) é uma narrativa que igualmente resiste a um conceito ortodoxo de fantástico e realismo maravilhoso. O insólito marca presença na descrição conferida à personagem-título e ao cenário que a circunscreve. Após ter sido derrubado por um cavalo, Ireneo Funes torna-se paralítico e permanece recluso. Certa feita, em ala de penumbra da sua casa, o jovem de 19 anos recebe o narrador para uma conversa.

Se a figura desse fumante com fisionomia indígena carrega algo de sinistro (como são incomuns o seu timbre de voz e o jeito de olhar — aí ressonam laivos da literatura fantástica), o que dizer da natureza biológica de Funes? Ela insurge em paridade com a instância do realismo maravilhoso, dado que o rapaz dispõe de memória e faculdade perceptiva sem-igual, super-humanas. No ato da queda, “perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e assim também as memórias mais antigas e mais triviais.” (Borges, 2007, p. 104). Na verdade, seus predicados inatos e, não menos, excepcionais teriam dilatado incrivelmente. As “lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas etc. Podia reconstituir todos os sonhos, todos os entressonhos.” (Idem, p.105).

No diálogo entre personagem e narrador por ocasião da retirada, na residência de Funes, de livros em latim que lhe haviam sido emprestados, descobre-se o quão decorara a língua de Cícero em prazo exíguo. Nessa noite, confidencia: “Eu sozinho tenho mais lembranças que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo. […] Minha memória, senhor, é como um monte de lixo.” (Idem, p. 105). Na intriga, tal prodígio jamais se abre para questionamentos de foro científico: há, naturalmente, um embarque no universo desmesurado do moço que armazena (“No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.” [Idem, p. 108]). Sabe-se, pouco depois, que ele morre de uma congestão pulmonar.

Emerge da tessitura borgiana o retrato dessa anormalidade de matriz ontológica. Um parêntese: salvaguardadas as diferenças, o conto do autor de Buenos Aires traz uma situação análoga àquela que Franz Kafka (1883-1924), no ano de 1915, deflagra em A metamorfose (a zoomorfogia — à maneira como se deixa alegorizar nas páginas do escritor austro-húngaro — não é alvo de questionamento do elenco da novela; noutros termos: o evento em si da transfiguração do caixeiro-viajante prescinde de indagações). Do contrário, as anomalias dos jovens Ireneo Funes e Gregor Samsa gozariam, nas obras, de protagonismo. Todorov e Irène Bessière pronunciaram-se a respeito da trama kafkiana.

Assinala o crítico: “Em que se transformou a narrativa do sobrenatural no século XX? Tomemos o texto mais célebre sem dúvida que se deixa incluir nesta categoria: ‘A Metamorfose’ de Kafka.”. Nele, “a coisa mais surpreendente é precisamente a ausência de surpresa diante deste acontecimento inaudito […].” (Todorov, 1992, p. 177). Quanto ao comportamento da família, “há de início surpresa mas não hesitação […].” (Idem, p. 178). Sumariamente, eis “a diferença entre o conto fantástico clássico e as narrativas de Kafka: o que era uma exceção no primeiro mundo torna-se aqui uma regra.” (Idem, 182). Diz Bessière: em A metamorfose, “a questão posta não é ‘O que me tornei?’, ‘O que me aconteceu?’. É interessante observar que a consciência do homem-inseto não ficou alterada e que somente importa o enigma do acontecimento.” (Bessière, 2009, p. 06). Isto é, “importa o enigma”, não o “acontecimento” stricto sensu.

A ensaísta francesa, em “Le récit fantastique: forme mixte du cas et de la devinette” [“O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha”], capítulo introdutório de seu livro Le récit fantastique: la poétique de l’incertain (1974), encontra na interseção de dois gêneros discursivos a inspiração para alicerçar seu conceito de literatura fantástica — arvora-se, pois, do caso (relato) e da adivinha (charada). Pautada pela obra Formas simples (1930), de André Jolles, a autora elege duas — entre as várias — estruturas de textos sobre as quais Jolles discorreu.

Vejam-se asserções inteligentes do linguista neerlandês acerca desta peça cifrada: “[…] a verdadeira e única finalidade da adivinha não é a solução, mas a resolução.” (Jolles, 1976, p. 116). Ela “é plurívoca. A primeira solução esconde e comporta uma segunda; tampouco entrega seu segredo mais profundo […]; as adivinhas ‘autênticas’ não têm solução unívocas […].” (Idem, p. 125). Bessière, nessa diretriz, vincula a astúcia do reconto com o sintagma esfíngico. E assevera: “[…] no relato fantástico, a impossibilidade da solução resulta da presença da demonstração de todas as soluções possíveis.” (Bessière, 2009, p. 12).

4.

Sobre o fantástico que deságua no século XX, é também aguda a intelecção de Jean-Paul Sartre. Em texto a respeito da narrativa Aminadab (1942), de Maurice Blanchot, ele aproxima-a da obra de Kafka (o cotejo não se faz com A metamorfose, e sim com O processo e O castelo). Para o filósofo do existencialismo, quer na ficção do francês, quer na do tcheco, “[…] não há senão um único objeto fantástico: o homem.” (Sartre, 2005, p. 138).

Isto é: “Nada de súcubos, nada de fantasmas, nada de fontes que choram […]” (Sartre, 2005, p. 139) — mas a presença, em constelação eminentemente burocratizada, de um “labirinto de corredores, de portas, de escadas que não levam a nada” (Idem, p. 141). Eis que os “utensílios, os atos, os fins, tudo nos é familiar, e estamos com eles numa tal relação de intimidade que mal os percebemos; mas no exato momento em que nos sentimos envolvidos com eles numa cálida atmosfera de simpatia orgânica eles nos são apresentados sob uma luz fria e estranha.” (Idem, p. 145).

Em se tratando da literatura brasileira, componentes do fantástico, no Oitocentos, alastram-se por enredos de autores consagrados (Machado de Assis e Aluísio Azevedo foram alguns deles); no Novecentos, Monteiro Lobato e Cornélio Penna experimentaram a fórmula, e, adiante, vários outros: Érico Veríssimo, Bernardo Élis, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles. Contudo, dois escritores produziram, nessa genealogia, entrechos que se consolidam como projeto de escopo fantástico: José J. Veiga e Murilo Rubião. Neles, o insólito leva em conta a idiossincrasia e aquele referencial humano para os quais Sartre aponta nos romances de Maurice Blanchot e Franz Kafka.

Na prosa de Murilo Rubião (1916-1991), a rotina que sufoca as personagens é a mesma que desencadeia uma rede de absurdos: obreiros, radicados em um arranha-céu, veem a torre crescer à revelia das injunções do engenheiro responsável pela edificação; uma fila inócua, formada por indivíduos anônimos, expande-se a esmo no curso das horas; uma esposa ganha peso desmesuradamente, engordando na proporção dos pedidos extravagantes confiados ao marido; e uma mulher engravida sem que haja a consumação do ato sexual, parindo em escala desordenada e ritmo desvairado.

Esses e demais relatos se organizam na então linguagem sintética do contista obsessivo pelo exercício da reescrita, a mimetizar, nessa enunciação, tais feitos de altitude exorbitante e mágica. Não é gratuito o paralelismo que críticos agenciam entre Rubião e Kafka quando examinam os infortúnios de heróis sitiados em vale de mal-entendidos, ou melhor, heróis cujos tropeços não afluem à solução alguma.

Humor ácido, ironia penetrante e lirismo, conjugados à tarefa laboriosa que cintila o processo redacional da obscuridade, afloram, pois, na fatura do autor de O convidado. Certa vez Rubião testemunhou: “— Nunca me preocupei em dar um final aos meus contos. Usando a ambiguidade como meio ficcional, procuro fragmentar as minhas histórias ao máximo, para dar ao leitor a certeza de que elas prosseguirão indefinidamente, numa indestrutível repetição cíclica.” (Ponce, 1974, p. 4).

Aí repousa um dos traços capitais do fantástico contemporâneo, conforme a nomeação do crítico espanhol David Roas, ao deslindá-lo na esteira do que o argentino Jaime Alazraki chama de neofantástico — ou seja, uma construção estético-verbal destituída da intenção de provocar o medo (como antecipava Todorov), laureada de metáforas que reclamam maior proximidade entre os cidadãos do tempo presente e o mundo concreto, cambaleantes na macroesfera de irresoluções que os enovela.

A palavra em fluxo, com seus pontos de fuga, suas lacunas e fraturas, disputa esse jogo – senão, esse espelho de simulacros. [i]

*Ricardo Iannace é professor de comunicação e semiótica na Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico (Edusp). [https://amzn.to/3sXgz77]

Referências

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______. “O relato fantástico: forma mista do caso e da advinha” [Trad. Biagio D’Ângelo e Maria Rosa Duarte de Oliveira]. Fronteiraz: Revista Digital, vol. 3, n. 3, set. 2009. Disponível aqui. Acesso em: 11 jan. 2024.

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Nota


[i] Este texto, sob o título “Fantástico: breviário”, foi originalmente publicado na Revista USP, n. 140, em março de 2024, no dossiê Literatura de entretenimento – Cultura de massa e reflexão: um panorama dos gêneros literários contemporâneos (Organização de Jean Pierre Chauvin).

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Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
Maria José Lourenço (1945/2025)
Por VALERIO ARCARY: Na hora mais triste da vida, que é a hora do adeus, Zezé está sendo lembrada por muitos
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