Quando as recordações não fazem mal

Michael Challenger, Rememory, 1975.
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Por LUCYANE DE MORAES*

Flávio Beno e as memórias da Segunda Grande Guerra, bem como da biografia de dois distintos pensadores herdeiros da Escola de Frankfurt

Foi em 2011, exatamente, há 14 anos. Decidido a revelar algumas de suas memórias, me interessei em ouví-las em uma conversa que a princípio deveria tratar de metodologias adotadas em projetos acadêmicos. Era para ser um breve encontro. Mas, tornou-se algo valiosamente prolongado regado por sorrisos sinceros, saberes longínquos e sabores inesquecíveis, típicos, para os apreciadores da boa gastronomia germânica.

Entre petiscos e iguarias predominavam o pão integral de centeio, de sabor profundo e textura compacta, o tradicional arenque, defumado e marinado, as conhecidas wursts, salsichas campeãs de popularidade servidas com mostarda e a rainha indiscutível das bebidas alemãs, a cerveja pilsen, que, combinada aos pratos, acompanhava diálogos, ideias e lembranças, irrefutavelmente presente pelo simples ritual de seu desfrute.

Com atenção a quem respeitava regras básicas de uma boa argumentação, me inclinei a escutá-lo. Ele era alto, magro, branco, tinha olhos pequenos e óculos grandes. Falava brando, acreditando que a palavra dura não despertava interesse. Chamava-se Flávio Beno. Dentre outras habilidades, exercia a função de professor de filosofia como ofício principal. Uma coisa ele não ignorava: vence sempre o melhor argumento. E apesar de eu muitas vezes não concordar com sua visão conservadora «do mundo da vida», confesso que não era fácil ficar imune à sua capacidade retórica.

Como numa moldura teórica, ele teceu o fio de suas imagens afetivas, me transportando para as últimas décadas do século XX na Alemanha, período em que conheceu aquele que seria seu professor e mentor, o filósofo Jünger Habermas. E ao recordar em detalhes de seu primeiro encontro com o Magister, revelou que tudo o que iria dizer não era mera ficção. “Era história ainda viva”.

À época, ele tinha como intento que o prestigiado professor, teórico reconhecido na tradição do pragmatismo, fosse o supervisor de sua nova pesquisa. E assim foi marcada uma audiência. A apresentação do seu projeto de trabalho se deu no escritório do Herr Professor. Germanicamente no horário, ele solicitou ser anunciado. Habermas, que se encontrava ao telefone, lhe pediu que aguardasse uns instantes, recebendo-o em seguida com a habitual formalidade acadêmica alemã. Enquanto o encontro fluía e as afinidades ficavam cada vez mais evidentes, a conversa foi interrompida por uma inesperada batida à porta.

Não houve tempo nem mesmo para recusar a visita de alguém. Subitamente, um jovem senhor, um tanto quanto açodado e sem perceber que havia uma audiência acontecendo entre professor e aluno, declara, de pé e com a porta entreaberta, que viera para terminar a conversa que haviam começado por telefone. E sem titubear, inicia uma história sobre a Segunda Guerra Mundial, na qual, em suas lembranças, havia combatido na frente oriental do exército alemão. Ao ser capturado, foi ainda na condição de prisioneiro de guerra, na França ocupada, que deu início a seus estudos de filosofia.

Em meio à narrativa, surge certo desconforto ao perceber que Jürgen Habermas recebia um aluno. Então, fez menção de voltar em um momento mais oportuno. Flávio, embaraçado pelo desamparo mometâneo, mas sem querer interromper, se oferece a esperar na antesala para que os amigos pudessem conversar tranquilamente. Com olhar fixo, Jürgen Habermas lhe pede que continuasse ali sentado. E dirigindo-se ao amigo-visitante, professa de forma um tanto quanto enigmática a sua angústia de ter sido ele mesmo submetido à manipulação política no período em que pertenceu à Juventude Hitlerista (Hitlerjugend). O amigo, por sua vez, diretamente o consola:

– “Você era ainda mais jovem que eu, não tinha opção de escolha. Comigo a selvageria daquele momento se expressou de forma mais violenta, pois precisei pegar em armas. Hoje entendo toda a conjuntura e sei que tudo aquilo não mais pertence a mim. Por isso, te peço um pouco de serenidade toda vez que sentimentos inutéis lhe vierem à cabeça”.

Não foi imperceptível o tom conciliador adotado por ele. Em seguida, dando a conversa por encerrada, recomenda ao amigo que aquele sentimento de vazio deveria ser categoricamente enterrado. Por fim, cumprimenta Flávio e se despede.

Jürgen Habermas volta sua atenção para o mais novo orientando sentado no canto da sala, que àquela altura estava atônito. Então, faz um aceno com a cabeça e com ternura, lhe diz: “Este que acaba de sair é um velho amigo, que muito admiro pelo que viveu e pelo muito que tem produzido”. Seu nome: Karl-Otto Apel, figura notável na área da teoria da linguagem, a quem conhecia desde os anos de estudante, na cidade de Bonn.

Segundo Flávio, Jürgen Habermas não se sentia confortável por ter sido doutrinado quando jovem para atuar em conformidade com os princípios do nacional-socialismo. Em seu ponto de vista, a conhecida “Teoria do Agir Comunicativo”, desenvolvida pelo Mestre, para além da superação da condição imposta pelo lábio leporino, também dizia respeito, de forma velada, à elaboração de um passado no qual não lhe foi dada a possibilidade de se pronunciar.

Discípulo de Theodor Adorno, Jürgen Habermas estava prestes a se tornar o mentor de Flávio que, por sua vez, havia então se tornado meu orientador de Mestrado. Como em um devaneio saudável, não foi difícil pensar que isso me aproximava de Theodor Adorno, em uma por assim dizer sucessão simbólica imaginária.

Um fato memorável é sem limites… Numa espécie de presentificação do momento passado, recordo-me como se fosse hoje… No dizer do velho Teddie (como o próprio Theodor Adorno se autodenominava), “recordações são a única propriedade que niguém nos pode tirar […] recordações não podem ser guardadas em gavetas e prateleiras; nelas, o passado se entrelaça inextricavelmente ao presente”.

Assim foi… Em 2011, exatamente, há 14 anos. Parte da história viva da Segunda Grande Guerra, bem como da biografia de dois distintos pensadores herdeiros da Escola de Frankfurt me foi contata, em minúcias, numa sentada. Entre a degustação de uma caneca de cerveja pilsen e uma bocada do autêntico pão alemão.

*Lucyane de Moraes é doutora em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Autora do livro Theodor Adorno & Walter Benjamin: em torno de uma amizade eletiva (Edições 70/Almedina Brasil) [https://amzn.to/47a2xx7]


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