Índia: sociedade, política e pandemia

Sergio Sister, 1970, hiddografica,crayon oleoso sobre papel, 42 x 35 cm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SHALINI RANDERIA*

Na Índia, o debate é entre vida ou sobrevivência. Muitas pessoas pobres têm dito em entrevistas que prefeririam morrer de fome antes de morrer por conta do vírus

1.

Na Índia, os números a respeito da pandemia do coronavírus são problemáticos. Há dois problemas principais com tais levantamentos. Em primeiro lugar, os números refletem apenas a amplitude da testagem – quanto mais se testa, mais alto é o número de casos.

Na Índia, decidiu-se seguir a mesma estratégia que foi adotada pela maioria dos países ricos do Ocidente: um lockdown rigoroso ao invés da universalização da testagem. E um lockdown que foi decretado sem qualquer preparação ou aviso prévio por parte do governo. A isso se soma um problema que não tem nada a ver com o Covid-19. É necessário perguntar-se quão confiáveis são os dados em geral no contexto indiano, especialmente aqueles relativos à saúde pública, que são reconhecidamente difíceis de serem levantados, sobretudo no que diz respeito à causa da morte.

Na Índia, a determinação da causa da morte não é uma prioridade. Quando uma pessoa mais velha morre, os médicos anotam “insuficiência cardíaca”.  Embora a elaboração de um atestado de óbito com a causa da morte seja uma exigência antes da cremação, na prática isso geralmente não é feito, especialmente no campo, onde bem mais da metade da população indiana vive.

A população pobre é subnutrida, seu sistema imunológico está enfraquecido, e as instalações sanitárias e de higiene nos assentamentos urbanos informais (favelas) são um problema. Tudo isso torna essa população mais vulnerável. Um lockdown coloca em risco sua própria subsistência. Muitos são trabalhadores diaristas, que não contam com nenhuma poupança nem com serviços de proteção social, já que atuam no setor informal. Em caso de ficarem impossibilitados de trabalhar, eles são menos ameaçados pelo coronavírus do que pela fome. Talvez no caso do Covid-19 os ricos estejam mais ameaçados. Um histórico de diabetes, pressão alta ou problemas cardíacos torna alguém um paciente de risco – e, na Índia, essas são antes doenças dos ricos e da classe média.

No que diz respeito à detecção de casos de coronavírus, há ainda uma dificuldade adicional: muitas pessoas pobres não morrem no hospital, e sim em casa. As estatísticas de saúde dão conta apenas dos casos de morte que são comunicados às autoridades. Mesmo na Itália houve problemas na definição das causas da morte. A diferenciação entre aqueles que morrem por Covid-19 e aqueles que morrem com Covid-19 mas devido a outra causa mortis pode em parte explicar a variação das estatísticas nos países europeus. A correção para cima em 50% das taxas de mortalidade de Wuhan pelos chineses causou alvoroço. Na semana seguinte, foi a vez dos britânicos corrigirem seus números. Em toda parte deve-se ter cuidado com as estatísticas.

2.

É interessante notar que, na Índia, a dimensão da pandemia e o achatamento da curva ocorrem de forma bastante diferente de estado para estado.

O estado de Kerala, que fica no sul do país,  conseguiu comprimir a curva de maneira mais rápida do que outras partes da Índia – e isso a despeito de que esse estado tinha, no início, as maiores taxas de infecção, o que tem a ver com o fato de que Kerala conta com uma grande presença de estrangeiros.

Aparentemente, em Kerala, a taxa de mortalidade pelo Covid-19 é menor do que em alguns países europeus. Kerala conta com um notável sistema público de saúde, com muito mais leitos per capita e mais pessoal médico do que em qualquer outro lugar do país. A infraestrutura de transporte também é excelente, de forma que é possível chegar a um hospital em pouco tempo. Um fator adicional é a taxa de alfabetização, que chega a 94%, a mais alta da Índia. Além disso, o chefe do governo estadual, que é do Partido Comunista, reagiu muito rapidamente: assim que a OMS divulgou o alerta em janeiro, ele decretou lockdown no estado e determinou ampla testagem da população, muito antes de que o governo central agisse.

O governo de Kerala gasta 60% do orçamento estadual com o sistema público de saúde e a educação. Têm sido realizadas coletivas de imprensa diárias, nas quais o chefe do governo estadual e a secretária de saúde esclarecem as medidas que estão sendo tomadas – bem diferente do primeiro-ministro Modi, que quase não fala com a imprensa. A população de Kerala é bastante politizada. Quando o governo e a administração pública não correspondem às suas expectativas, já no dia seguinte há protestos e ações para pressioná-los na mídia e no espaço público. Em virtude de sua popularidade duradoura, os comunistas lograram por décadas disseminar discursos racionais em meio à população e, juntamente com isso, uma significativa confiança nas ciências da natureza. Foi nesse contexto que surgiu o People Science Movement[i].

Em tempos de uma pandemia de Covid, faz diferença se se conta com uma população alfabetizada, que cultiva um discurso baseado na cientificidade, além de médicos e políticos que sabem que têm que prestar contas nas eleições.

3.

Nas áreas urbanas, o lockdown retardou a propagação do vírus. A classe média está feliz com essa medida do governo, que a afeta menos na medida em que ela tem possibilidade de manter o distanciamento físico necessário.

Um típico morador de favela, por outro lado, vive numa moradia em que convivem três gerações, com seis pessoas ou mais em um só cômodo. Nessa situação, não tem sentido falar em distanciamento nem em lavar as mãos com frequência. 160 milhões de indianas e indianos – isso é mais do que a população da Rússia – não têm acesso a água potável. Muitos não dispõem sequer de água encanada, não têm dinheiro para comprar sabão e não contam com banheiro em suas casas. Ainda assim, em alguns lugares as pessoas foram capazes de produzir formas inesperadas de solidariedade que as protegem da pandemia.

Nas favelas de Calcutá, por exemplo, organizou-se um esquema de provisão de água para banho e para lavar roupas para aqueles que precisam sair da vizinhança premidos pela necessidade de trabalhar. Garantiu-se também que todos tivessem acesso a máscaras e assistência médica.

Não obstante, para os pobres, o lockdown é uma catástrofe. Quem carrega seu peso são os trabalhadores do setor informal, que agora estão sem trabalho e não dispõem de nenhuma poupança. 80% da força de trabalho da Índia atuam no setor informal, uma tendência que só cresce com a neoliberalização, que conduz a uma maior informalização do trabalho. De repente, as pessoas se veem sem trabalho, não recebem nenhum rendimento nem do Estado nem de seu empregador e, como já mencionado, não contam com nenhuma poupança.

Por conta do Covid-19, pela primeira vez os estratos médios e superiores da Índia estão tomando consciência de que são os trabalhadores migrantes que mantêm suas cidades funcionando. O homem que vigia os acessos do condomínio fechado, que dirige seu carro, a mulher que toma conta das crianças e faz a limpeza e a comida em suas casas: todos eles vêm de fora das grandes cidades. Toda a indústria da construção do país depende de trabalhadores migrantes. Nenhum edifício moderno, ponte ou rua pode ser construído sem eles. É de causar espanto que esses trabalhadores do setor informal se façam tão presentes aos olhos dos políticos e dos burocratas quanto o são na vida pública: como pessoas invisíveis. Uma das razões é o fato de que, como migrantes em seu próprio país, eles se assemelham a estrangeiros, não possuindo voz nem peso político. Como migrantes internos, eles devem exercer seu direito de voto nas vilas em que nasceram. Sua contribuição econômica praticamente não é contabilizada no PIB, porque se afirma que não existem dados confiáveis – e com isso voltamos à questão dos números. Os trabalhadores migrantes atuam em todos os serviços, desde a coleta de resíduos urbanos até os hotéis cinco estrelas nas metrópoles.

Em resumo: sem eles, entrariam em colapso tanto a economia urbana quanto o setor informal e o estilo de vida confortável dos estratos médios. Por um lado, eles não podem continuar nas cidades, já que estão sendo expulsos pelos ricos, dos quais eles geralmente dependem. Já antes de que o governo decretasse o lockdown, formaram-se milícias civis nas vizinhanças mais abastadas para evitar que os trabalhadores domésticos acessassem essas áreas.

Por outro lado, por medo do vírus, frequentemente não se permite aos trabalhadores migrantes, que se põem a ir a pé para casa e às vezes levam consigo seus filhos, entrar em suas vilas – isso quando eles logram chegar até elas. Não se deve esquecer que, na Índia, “ir para casa” pode significar percorrer 300, ou até mesmo 1.000 quilômetros ou mais.

4.

Se se considera que essas pessoas são potenciais transmissores da doença, elas deveriam então permanecer nas cidades onde trabalham. As escolas foram fechadas, de forma que seria possível acomodá-las nelas e prover-lhes o que necessitassem.

A Food Corporation of India, a organização central pertencente ao governo que compra e armazena alimentos dos produtores rurais, conta no momento com 77 milhões de toneladas de grãos! Ainda que nos últimos dois meses houvessem sido destinados cinco quilos de grãos por pessoa de cada domicílio (que é a quantidade definida pelo programa de subvenção de alimentos), menos de um quinto dos estoques teriam sido consumidos.

Não faz sentido algum seguir estocando esses grãos, especialmente tendo em vista que uma parte significativa é perecível. Dentro em pouco, teremos a colheita de verão, e será necessário espaço para armazená-la.

O governo central anunciou agora que pretende utilizar parte do estoque de arroz para a produção de etanol, ou seja, para elaborar produtos para desinfecção. Mas não se procedeu à distribuição do estoque entre os pobres. Em vez disso, sob forte pressão da opinião pública, foram disponibilizados cash transfers para parte dos trabalhadores que foram forçados a deixar as cidades. Esses cash transfers haviam sido originalmente instituídos para trabalhadores rurais, os quais, por sua vez, não receberam esse auxílio ao longo de vários anos.

Como não há testes suficientes, não se sabe quantos trabalhadores migrantes foram infectados pelo coronavírus. No momento, há apenas uma hermenêutica da suspeita. Todos desconfiam de todos, cada um considera o outro contagioso. E não se deve esquecer que, na Índia, o Covid encontra os corpos de habitantes de um país em que a tuberculose é endêmica. A Índia tem a mais alta taxa de tuberculose do mundo, uma tosse por lá não é associada em primeiro lugar com o Covid.

Mais à frente, esse ano, ainda virá a onda de gripe. Em julho e agosto começam as chuvas e será a vez da malária. Assim, há um conjunto de infecções sazonais, que são endêmicas em razão da falta de higiene e da ausência de instalações sanitárias. Os pobres do país vão sofrer, mas não sabemos se vão especialmente sofrer em virtude da pandemia de Covid. No ocidente, o debate é se se deve salvar vidas com um lockdown ou salvar a economia. Na Índia, o debate é entre vida ou sobrevivência. Muitas pessoas pobres têm dito em entrevistas que prefeririam morrer de fome antes de morrer por conta do vírus.

A Índia tem uma demografia oposta à da Lombardia. Apenas 6,5 por cento da população indiana têm 65 anos ou mais, mas 45 por cento têm menos de 25 anos. E vale recordar que a Índia conta com apenas 40.000 respiradores! Muitas pessoas mais velhas na Índia não vivem sozinhas ou em lares de idosos (nos quais o Covid-19 matou tanta gente no Reino Unido ou na Suécia), e sim com suas famílias, onde a separação entre gerações é mais difícil do que na Europa. Mas, ironicamente, exatamente isso pode ser sua salvação.

5.

O partido do governo, o BJP[ii], de Narendra Modi, tem colocado em marcha uma agressiva política de nacionalismo religioso hindu, num estilo que poderíamos chamar de “Make India Great Again”. Entretanto, Modi não é um Trump indiano. Ele é muito mais perspicaz do que Trump. Claro, há paralelos, por exemplo no culto da figura masculina forte.

O BJP se tornou o partido de Modi, do mesmo modo que o Partido Republicano se converteu no partido de Trump, ainda que nem todos estejam de acordo com Trump. Além disso, em ambos os países, princípios liberais têm sidos minados por dentro. Ambos praticam de forma parecida uma política do ressentimento e da polarização. Porém, mais interessantes são as suas diferenças.

Modi é um comunicador extremamente mais inteligente nas mídias sociais. Mas Modi não dissemina disparates publicamente. Diferentemente de Trump, ele nunca afirmaria que se pode lidar com o Covid-19 com uma borrifada de algum produto para desinfecção. Modi sabe vender muito melhor sua política. E ele conta com uma máquina partidária que se ocupa das mídias sociais, enquanto Trump parece tuitar por conta própria.

Desde certo ângulo, Trump é uma figura muito indiana, enquanto Modi definitivamente não o é. Trump distribui poder e privilégios entre membros de sua família – para o genro, para a filha. Isso lembra o arranjo indiano da repartição do poder em dinastias e famílias. Modi, pelo contrário, não tem nenhum interesse em uma política de família à la Trump. Para começar, ele não tem filhos, e sua esposa, de quem ele já está separado há anos, não desempenha nenhum papel público. De resto, Trump não tem nenhuma visão política para além de permanecer no poder e acumular tanto dinheiro quanto possível para si e sua família. Modi, por sua vez, tem uma clara visão política: trata-se da transformação da Índia em um Estado hinduísta.

Essa é a visão que o move e que ele busca implementar no longo prazo. É certo que parte do Partido Republicano, que agora se encontra alinhada com Trump, defende uma posição neoconservadora: privatização geral e eliminação de regulações. Trump está executando, para essa parcela, aquilo que ela até agora não teve condições de realizar por conta própria. Mas é difícil dizer no que ele de fato acredita, a despeito dos tuítes constantes. Modi, ao contrário, geralmente permanece calado a respeito dos acontecimentos mais importantes do país.

6.

O assim chamado Citizenship Amendment Act[iii] é uma lei refinada. À primeira vista, concede status de refugiado a minorias perseguidas de países vizinhos como Paquistão, Afeganistão e Bangladesh. Parece ótimo, afinal quem poderia ser contra conceder asilo, por exemplo, à minoria hindu que padece sob o Talibã?

No entanto, é interessante notar quais países estão excluídos: por exemplo, Myanmar, já que, se valesse para esse país, a lei teria também concedido aos rohingyas, um grupo muçulmano perseguido, direito a asilo e mais tarde à cidadania indiana. Com isso, o direito à cidadania indiana fica definido a partir da religião: entre os grupos dos países vizinhos que sofrem perseguição, a lei se destina a beneficiar os hindus, mas não os muçulmanos. Trata-se de uma violação da Constituição indiana, que não discrimina a concessão do direito à cidadania com base em raça, religião ou casta, estabelecendo que a Índia é uma república secular.

O National Register of Citizens[iv] pretende registrar todas as cidadãs e todos os cidadãos na Índia. Para tanto, exige-se das pessoas que provem com base em documentos seu local de moradia e de nascimento, bem como o de seus pais. E também que possam provar que se estabeleceram na Índia antes de uma data determinada. Nem mesmo eu conseguiria fazer isso! Até tenho os passaportes de meus pais, que já são falecidos, mas não suas certidões de nascimento.

Existem milhões de indianos, mesmo de classe média, que não têm certidão de nascimento. Eles se viram com certificados de conclusão escolar que funcionam como prova da idade. Como poderiam trabalhadores diaristas e migrantes, que dormem em armazéns, sob balcões nos comércios ou em canteiros de obras ser capazes de dispor de tais documentos? O problema está na conexão entre as duas leis: hindus pobres, que não possuem quaisquer documentos, sempre podem se beneficiar da lei que estabelece o direito à cidadania.

Já os muçulmanos, que em sua maioria fazem parte das camadas mais pobres da população na Índia, de maneira alguma podem fazê-lo! Por conta disso, milhões de muçulmanos sem documento tornam-se suspeitos de serem imigrantes ilegais. Eles são ameaçados com a perda de seus direitos ou mesmo com a deportação, ainda que tenham nascido na Índia ou que suas famílias vivam no país já há várias gerações.

7.

Aparentemente, a nova lei busca ser um convite para que as minorias hindus dos países muçulmanos vizinhos se estabeleçam na Índia. O impacto não seria assim tão grande, não se trata de dezenas de milhões de pessoas que gostariam de imigrar para a Índia. O decisivo é o gesto simbólico: a exclusão por motivos religiosos de muçulmanos em virtude de uma visão etnonacionalista de uma nação de maioria hindu na qual as minorias não possuem os mesmos direitos.

Essa visão não é nova, ela existe desde os anos 1920. Ela é a antítese da visão das figuras fundadoras da nação indiana na sequência da independência da dominação colonial britânica.

Ghandi e Nehru concebiam a Índia como uma sociedade multirreligiosa e multiétnica. Com efeito, a visão nacionalista hindu do BJP se formou paralelamente ao movimento de independência liderado por Gandhi e Nehru. Enquanto a luta de Gandhi e Nehru tinha caráter anticolonial e antibritânico, os nacionalistas hindus eram pró-britânicos e antimuçulmanos. Nenhum de seus membros foi para a cadeia, porque eles não eram parte do movimento de independência. Ao contrário, eles simpatizavam com os britânicos, cuja política alimentava a polarização entre hindus e muçulmanos.

Foi um extremista hindu que assassinou Ghandi. Ele pertencia à RSS[v], uma organização paramilitar e hierárquica de nacionalistas hindus. Não se deve esquecer qual era o modelo da RSS: os nacional-socialistas. Tanto sua ideologia quanto seu formato organizacional são diretamente tributários dos manuais nazistas.

A visão etnonacionalista da RSS se aproxima da de outros movimentos nacionalistas da primeira metade do século vinte. Trata-se da convicção de que a nação pertence, em termos culturais e religiosos, ao grupo majoritário da sociedade. De certo modo, temos aqui um espelho da autocompreensão do Paquistão como nação muçulmana.

Gandhi refletiu muito sobre violência e não violência. Para ele, violência incluía a violência verbal ou os próprios pensamentos de ódio. E ele conectava a violência com a masculinidade agressiva. Assim, ele começou a fazer experimentações com táticas de resistência política que eram tradicionalmente utilizadas por mulheres no âmbito doméstico, como a greve de fome. Ele visava um movimento não violento, mas de forma alguma passivo, contra a dominação britânica. Para ele, tratava-se de se afastar da violência.

Essa atitude era informada por uma concepção extremamente interessante: a violência é algo que não causa danos apenas às vítimas, mas marca também de forma indelével seus perpetradores. Tratava-se de, nesse aspecto, ser moralmente superior aos britânicos.

Gandhi acreditava que devia ficar claro que a violência dos britânicos contra o povo indiano era algo que também a eles não lhes fazia bem.

8.

O BJP não é um partido fascista. É uma reunião de todos os tipos possíveis. O que os une é a visão de um nacionalismo excludente, no qual a maioria, ou seja, os hindus, devem possuir mais direitos do que as minorias.

É interessante notar, entretanto, que os hindus não constituem um grupo homogêneo. Eles se encontram divididos por castas, línguas, e mesmo religiões. Tomemos como exemplos minhas duas avós. Elas não comungavam de um mesmo texto sagrado e não havia nem mesmo uma divindade em comum que ambas venerassem! Elas não frequentavam o mesmo templo. O que as unia era o fato de ambas serem vegetarianas.

O hinduísmo não tem rituais, dogmas ou textos unificados e, ao contrário das religiões monoteístas, não possui uma institucionalização. De forma que a RSS e o BJP precisam produzir uma comunidade hindu unificada para poder falar em seu nome.

Ironicamente, o nacionalismo hindu faz algo que é essencialmente estranho ao hinduísmo, na medida em que se trata de uma ideologia que se orienta pelas religiões monoteístas e pelo modelo ocidental do Estado nacional. No fim das contas, é o modelo westfalliano, que não aspira a um Estado multirreligioso, e sim a um Estado cujos fundamentos são uma religião monolítica, uma mesma origem étnica e uma língua que é falada por toda a nação – a língua nacional.

E é exatamente isso que o BJP quer para a Índia: uma cultura dominante hindu.

A ironia dessa história é que a adoção desses modelos ocidentais deve instituir uma identidade cultural homogênea e supostamente autêntica em um país que é extremamente heterogêneo e que até hoje nunca conheceu uma unidade desse tipo. Por conta disso, o partido tem sido muito bem-sucedido nos últimos anos.

Nas décadas de 1920 e 1930, assim como no período posterior a 1947, ano da independência da Índia, os nacionalistas hindus não gozavam de grande popularidade. O partido que antecedeu o BJP[vi] não ganhou nenhuma eleição em décadas. Isso só começou a mudar nos anos 1980. Nesse meio tempo, eles conseguiram reunir no partido boa parte dos políticos hindus enquanto foram simultaneamente capazes de polarizar a sociedade a partir do pertencimento religioso.

Os nacionalistas hindus criaram fronteiras no interior da sociedade indiana que não haviam existido por séculos. Agora, na crise do coronavírus, os muçulmanos foram responsabilizados até mesmo pela disseminação do vírus. A campanha de difamação em boa parte da mídia e nas mídias sociais, em que se fala de uma “Jihad do Corona”, intensificou a polarização religiosa. Muitos muçulmanos se sentem ameaçados com os possíveis efeitos da lei de naturalização e com a contestação de seus direitos civis, a respeito dos quais falei acima. De todo modo, há que se esperar a implementação da lei.

Na Índia, as leis são com frequência postas em prática de forma seletiva e arbitrária.

9.

O balanço das transformações na Índia nas últimas décadas não é unívoco.

Até há pouco tempo, um crescimento econômico significativo, da casa dos 7% a 8% anuais, mitigou a pobreza de milhões de pessoas e lhes deu a esperança de uma vida melhor. Contudo, o preço desse crescimento foi alto: extração massiva de matérias-primas, que devastou regiões inteiras, poluição da água e do ar ou deslocamento forçado de milhões de pessoas, só para citar algumas das consequências, que afetam sobretudo os mais pobres, destruindo as bases de suas condições de vida. Soma-se a isso o fato de que o capital gerado não é investido em educação ou em saúde pública, de forma que o IDH da Índia continua tão ruim quanto antes.

Posso dar um exemplo de minha atual pesquisa.

Minha equipe e eu estamos nos ocupando da District Mineral Foundation (DMF), uma rede de fundos criada em 2015 cujo dinheiro deve ser aplicado em comunidades afetadas pela mineração em todas as áreas em que haja mineiros trabalhando. Uma ideia excelente! Entretanto, em muitos casos, o dinheiro desses fundos administrados pelo poder público não é aplicado como previsto, isto é, para corrigir danos ambientais ou criar formas alternativas de renda.

Estimamos que de 3,5 a 4 bilhões de euros encontram-se parados nas contas desses fundos. Os empresários depositaram o dinheiro, mas o Estado não o utilizou. O dinheiro não foi desviado, simplesmente não foi gasto! Como isso é possível?

Eu também conduzo um projeto de pesquisa no âmbito da Fundação Nacional da Ciência da Suíça a respeito do enigma dos recursos não gastos. Descobrimos que esse problema não acontece apenas com os fundos da DMF, mas que aparentemente se estende aos fundos de assistência social geridos pelo Estado que se destinam a trabalhadores pobres do setor informal, incluindo tanto trabalhadores em minas como em salinas. Há todo tipo de obstáculos para que esses recursos vinculados a fins específicos não sejam gastos. Às vezes, são problemas burocráticos, como: “Ah, mas são migrantes, eles vão e vêm das cidades para suas vilas, então é muito difícil localizá-los”.

Após fazer pesquisas sobre a Índia por décadas, descobri que, muitas vezes, o problema não é falta de dinheiro, e sim dinheiro que não é gasto! Até hoje, não foram desembolsados nem um quarto da soma que está à disposição. Isso afeta diretamente o destino das pessoas sobre as quais escrevo nesse texto: trabalhadores migrantes, que, em consequência do lockdown, tentam voltar para suas casas a pé e sem dinheiro no bolso. Em resposta às demandas de ONGs com as quais trabalhamos, intensificadas nas últimas semanas, o governo de Nova Deli determinou que uma parte do dinheiro seja imediatamente distribuída aos trabalhadores mineiros na forma de cash transfers e que uma parte do dinheiro da DMF seja destinada a assistência médica nas regiões mineiras afetadas pelo Covid. Há que esperar para ver quanto desse dinheiro acumulado será utilizado e para quais finalidades.

*Shalini Randeria é diretora do Institut für die Wissenschaften vom Menschen (Áustria) e professora do Institut de Hautes Études Internationales et du Développement (Suíça).

Tradução: Ricardo Pagliuso Regatieri

* A pedido do tradutor, Shalini Randeria preparou esse artigo especialmente para A terra é redonda, a partir de uma entrevista sua publicada no semanário suíço Das Magazin, n° 19, de 09 de maio de 2020.

Notas do tradutor


[i] Trata-se do Kerala Sastra Sahitya Parishad, ou Movimento de Kerala para a Literatura Científica, organização de esquerda fundada em 1962 com o objetivo de divulgar o conhecimento científico entre a população.

[ii] Bharatiya Janata, ou Partido do Povo Indiano.

[iii] Lei aprovada pelo parlamento indiano em dezembro de 2019.

[iv] Sistema de identificação dos cidadãos indianos criado em 2003, implementado no estado de Assam em 2013–2014 e previsto para ser estendido para todo o país em 2021.

[v] Rashtriya Swayamsevak Sangh, ou Organização Nacional de Voluntários.

[vi] O BJP foi fundado em 1980 e se origina do Bharatiya Jana Sangh, formado em 1951.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Os espectros da filosofia russaBurlarki cultura 23/11/2024 Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • Donald Trump e o sistema mundialJosé Luís Fiori 21/11/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja ponto de partida de uma nova corrida armamentista dentro da própria Europa e entre os EUA e a Rússia
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Mudanças no modelo de pós-graduaçãobiblioteca universidade 21/11/2024 Por ANTÔNIO DAVID: O doutorado direto não é um demérito, e doutores que realizaram o doutorado direto não são doutores pela metade
  • Fissuras no campo bolsonarista — episódio 2Armando Boito 2024 22/11/2024 Por ARMANDO BOITO: A disputa entre lideranças do campo da extrema direita não deve ser vista meramente como disputa entre egos ou entre camarilhas políticas desprovidas de enraizamento social
  • Freud no século XXIcultura peça transversal 24/07/2024 Por GILSON IANNINI: Trecho do livro recém-lançado
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • A esquerda em seu ponto zerosombra 21/11/2024 Por SLAVOJ ŽIŽEK: A eleição de Trump deveria ensinar a esquerda a se distinguir claramente do centro liberal “progressista” e seu corporativismo woke

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES