Por Rodolfo Palazzo Dias*
A democracia já acabou no Brasil. As instituições, anacronicamente, ainda existem. Mas a cena política está configurada de forma a tornar inefetivo qualquer comportamento democrático[i]
Muito se discutiu e se discute acerca do golpe parlamentar ocorrido no Brasil em 2016 e suas implicações, buscando nesse (e em outros) fenômenos políticos pontuais a origem dos problemas contemporâneos. Sem diminuir a importância de grandes eventos e seus impactos evidentes, tento observar fenômenos de menor impacto imediato, mas que acumulados tem um resultado de grande magnitude na reconfiguração da cena política. Apontando para um sentido em determinado processo histórico.
Quando falo em desdemocratização busco chamar a atenção para o caráter processual da desconstrução de um regime político, resultado de um acúmulo de fenômenos produzidos pelas contradições nas estruturas políticas de uma determinada sociedade. A desdemocratização é o oposto da redemocratização. Desdemocratização e golpe, nesse sentido, apontam para a mesma realidade, sendo o primeiro termo utilizado para compreender o processo mais extenso e o segundo termo usado para compreender fenômenos específicos. O presente texto, mesmo considerando a importância do segundo, elege o primeiro como unidade de análise.
Robert Dahl e as condições para a estabilidade de um sistema democrático
Em seu livro “Poliarquia”[ii], entre os vários elementos constituintes de um sistema democrático e seus exemplos históricos, o autor estadunidense faz observações extremamente relevantes sobre a possibilidade de manutenção de um sistema democrático. Primeiro, tal sistema não é dado; ele precisa ser construído. E da mesma maneira pode ser destruído. Segundo, a manutenção de tal sistema depende de condições políticas específicas. O autor sustenta a hipótese de que, para um sistema democrático se manter, é necessário que a cena política seja caracterizada: a) por baixos custos de tolerância política; e b) por altos custos de repressão política.
A lógica racional estabelecida é relativamente simples: “Quanto mais baixos os custos de tolerância, maior a segurança do governo. Quanto maiores os custos de supressão, maior a segurança da oposição” (DALH, 1997, p. 37). Considerando um sistema político hipotético, se o líder do executivo tiver uma série de impedimentos legais para mobilizar o aparato repressivo do Estado (o rompimento da legislação exige custos), e se na perda de um processo eleitoral ele apenas deixará seu cargo, essa seria uma situação favorável ao sistema democrático. Agora, se não houver impedimentos para o líder do executivo exercer coerção física, e se sua derrota política não significar apenas o afastamento do cargo, mas o seu encarceramento e sua morte, essa situação seria extremamente desfavorável para um sistema democrático. No segundo caso, seria racional por parte dessa liderança romper com as regras democráticas e lutar com todos os seus recursos disponíveis pela manutenção de seu cargo.
Quando falo em desdemocratização brasileira, sustento que ocorreu desde o início do século XXI no Brasil uma elevação dos custos de tolerância política, processo esse colado à diminuição dos custos de repressão. Esses dois movimentos podem ser compreendidos com o debate sobre corrupção no país.
A corrupção enquanto debate contemporâneo
Tema clássico da teoria política, a corrupção foi discutida por filósofos, políticos e pela imprensa no mundo ocidental de diversas maneiras. No nível mais teórico, passando por Maquiavel e atravessando “O Federalista”, o tema foi apresentado pela oposição entre “interesse público” e “interesse particular”, sendo as situações de corrupção (ou degeneração) identificadas pela prevalência do segundo sobre o primeiro.
Sob a perspectiva neoliberal, esse debate é bastante distinto. O economista John Williamson, famoso pela cunhagem do termo “Consenso de Washington”, defende[iii] a liberalização como forma de combate à corrupção. Segundo o autor o problema da corrupção seria um mal que acomete a América Latina de maneira especial, embora todos os países padecessem desse mal. No argumento do autor, é interessante identificar dois aspectos. Um, o axioma das vantagens do livre-mercado. Em tal sistema de pensamento, não existe exatamente uma contradição entre interesse público e privado; ao contrário, a própria iniciativa privada produziria o bem público. E dois, a proximidade que o termo corrupção ganha ao termo “fraude”. A corrupção não seria a prevalência de interesses particulares sobre o interesse coletivo, mas sim um desvio de conduta preconizado em determinado sistema normativo[iv].
A consequência política dessa diferença de concepção é a seguinte: a solução da corrupção, ao invés de ocorrer pela opção política por alguém representaria os interesses coletivos mais adequadamente, ocorre pela intervenção ativa de um sistema judiciário que ordena o comportamento dos indivíduos. Nessa situação, o judiciário se reposiciona na estrutura social. Ao contrário da avaliação dos Federalistas, que observavam uma natureza humana intrinsecamente má[v], e a necessidade de um esquema institucional de freios e contrapesos; pela concepção atual, o poder judiciário se eleva a um status de poder moderador, um poder para além da leitura fria da norma, um poder moralizador, já que combate o mal da corrupção.
Essa perspectiva também se apresenta, com algumas nuances, em artigo acadêmico recente de Sergio Moro, juiz da operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Sob o título “Prevenindo a corrupção sistêmica no Brasil”[vi], Moro disserta sobre a operação por ele comandada, e discute como esta revelou uma estrutura de corrupção sistêmica no país. Ele não apresentou uma definição precisa do conceito de corrupção, mas é sintomático no artigo observar a proximidade que essa palavra possui das palavras “propina” (bribe) e “crime”. O juiz apresenta uma visão abrangente do problema da corrupção enquanto fraqueza institucional e cultural de determinada sociedade (MORO, 2018, p. 163), e delega a culpa para diversos agentes estatais (e em alguns momentos também empresários, destoando um pouco da argumentação de Williamson) (MORO, 2018, p. 163). E ainda reforça que a solução do problema não pode vir apenas do judiciário (MORO, 2018, p. 162).
Porém, o judiciário, segundo Moro, vinha assumindo um protagonismo no combate daquilo que ele vai chamar de “corrupção sistêmica” na história recente no Brasil. Seria ela que estaria consolidando o Estado de Direito (rule of the Law) no país em uma posição reativa. “O processo judicial é apenas uma reação contra a corrupção, de maneira que o sistema judicial não pode vendar os olhos diante do crime.”[vii](MORO, 2018, p. 164). Corrupção aparece aqui estreitamente ligada à ideia de crime, de conduta desviante das prerrogativas normativas a serem defendidas pelo sistema judicial. A reatividade do judiciário será elemento importante na defesa dos procedimentos adotados nos processos anticorrupção, na caracterização do judiciário enquanto poder moderador neutro, e será discutida mais adiante.
Considero que as perspectivas desses dois ideólogos seja suficiente para retratar a concepção vigente sobre corrupção no Brasil no início do século XXI: uma conduta desviante do padrão normativo. Essas condutas, que deveriam ser regradas pelo sistema normativo, precisavam ser sustentadas por um poder judiciário, que nesse caso possuiria um papel de consolidação do sistema normativo como padrão de conduta dos integrantes da sociedade.
Essa capacidade moralizante do sistema judiciário brasileiro é questionável de longa data, anterior mesmo à concepção neoliberal de corrupção. O termo “acabar em pizza” sempre foi usado para revelar a incapacidade desse poder em exercitar tal papel.
Mesmo que essa perspectiva moderadora do judiciário orientasse uma série de agentes sociais importantes, não existiam condições materiais (operacionais, de balança de poder com as outras estruturas estatais, de legitimidade social) que permitissem ao judiciário cumpri-lo. É possível dizer que no início dos anos 2000 foi empreendido um grande esforço para criar tais condições. Mas como será visto adiante, quando as condições tornaram-se reais, o que surgiu não foi um poder moderador.
Poder moderador, reatividade e as fronteiras do político e do jurídico
Ao longo da década de 2000, as instituições judiciárias (não apenas do poder judiciário, mas também as policias e o Ministério Público) ganharam autonomia, recursos humanos (concursos) e técnicos (relacionados não apenas ao investimento, mas também ao barateamento dos recursos de telecomunicações). Isso produziu dentro de tais instituições a vontade ativa de realização do historicamente frustrado objetivo moralizador por parte do judiciário.
Muitas operações foram deflagradas nesse período. Mas grande parte delas foram frustradas. Exemplar nesse sentido foi a operação Satiagraha, que realizou prisões importantes (Celso Pitta e Daniel Dantas os mais destacados), mas que não resultou em consequências apenas positivas para o Judiciário. A exoneração do delegado-chefe da operação em 2014, o Delegado Protógenes Queiroz[viii], é elemento importante na avaliação de um “fracasso” dessa operação.
Mas uma das investigações prosperou, a do intitulado midiaticamente “Mensalão”. Esse escândalo provocou diversas reações. No legislativo, através de várias CPI’s, e uma específica no judiciário, a chamada “Ação Penal 470”[ix]. Instaurada em 2007 e julgada em 2012, tal peça torna-se um marco histórico por utilizar um novo modelo de interpretação jurídico conhecido como “Domínio do Fato” (ou “teoria do domínio da organização”). Qualquer julgamento que impute crime deve estabelecer um nexo causal entre “conduta do acusado” e “resultado” através de provas. Tal doutrina flexibiliza as necessidades de provas na constatação desse nexo ao valorizar a simples presença do acusado em postos hierárquicos na organização em que teria ocorrido o crime. O quão longe pode ser levada essa flexibilização[x] é objeto de intensos debates jurídicos. Mas em termos práticos, o surgimento de tal doutrina apresenta um fortalecimento do arbítrio do juiz que poderia, dependendo do caso, flexibilizar mais ou menos essa necessidade de provas (dado o próprio caráter novo e impreciso da aplicabilidade da doutrina no Brasil).
Estamos diante, em 2012[xi], com um conjunto de instituições jurídicas aparelhadas, fortalecidas, e com um dispositivo normativo extremamente flexível para a condenação de “criminosos corruptos”. Isso poderia ter gerado um super poder moderador no país? A resposta a essa pergunta pode levar a longas divagações, imprecisas e inúteis. O que importa é que não foi o que ocorreu.
Talvez por algumas pré-disposições políticas por parte de alguns juízes. Mas principalmente pela falta de condições políticas do judiciário em se elevar tanto diante das outras forças sociais (principalmente diante daquelas a serem combatidas). Haviam elementos materiais e organizacionais, assim como um novo dispositivo jurídico que viabilizasse a ação anticorrupção, mas não era suficiente. Era necessário angariar apoio popular. A chatice do procedimento normativo não inflamava as forças sociais para o grande objetivo de limpar o país da corrupção. Eram necessários outros recursos, outras práticas, outras articulações. O judiciário brasileiro abandonou o caráter reativo típico das organizações burocrático-jurídicas. A luta contra a corrupção deixou de ser a reação diante de uma multiplicidade de acontecimentos criminais. Passou a ser uma atividade, um objetivo a ser atingido, uma missão. Enquanto ação, e não reação, ela tinha que ser planejada. Não poderia “melindrar” indivíduos que poderiam ser importantes mais adiante. A neutralidade jurídica já havia se mostrado inefetiva. Não era possível atingir todos, era necessário mirar naqueles inimigos definidos estrategicamente.
Não se trata de uma criminalização da política, mas sim de uma politização da justiça. Longe de instituições neutras e reativas, que se provaram fracas e incapazes de realizar o grande objetivo moralizador do país, era necessário uma justiça que fizesse o cálculo político e agisse diretamente nesse campo para atingir seu grande objetivo na estrutura social.
Fazendo assim, o que surgiu não foi um grande poder moderador. Os setores das instituições jurídicas que embarcaram nessa missão transcenderam o estatuto jurídico-político das organizações burocráticas da justiça e constituíram relações associativas que assentava seus pés no próprio campo político. E, por isso, deixaram de ser burocracias jurídicas e constituíram-se em partido.
O Partido da Imprensa Judiciária
Muitos cientistas políticos ficarão horrorizados com a utilização do conceito de partido político para essas relações associativas que estou definindo aqui. Isso por dois motivos. Primeiro, porque não se trata de uma organização formalizada. Segundo, porque ela não disputou eleições (pelo menos não até agora).
Considero válidas tais argumentações, e por isso, desde o início, destaco que o conceito de partido que será trabalhado aqui é bastante flexibilizado[xii]. Mas considero válida sua aplicação por duas razões. Primeiro, embora não possua organização formal, existem organizações informais entre os indivíduos a eles pertencentes. Segundo, que a forma de legitimação social de tais relações associativas é muito mais típica das organizações partidárias do que das burocrático-jurídicas. São essas duas dimensões do “Partido da Imprensa Judiciária” que será analisado aqui.
Sobre a dimensão organizativa da associação, iniciei a definindo como informal. Isso porque se trata de uma articulação entre sujeitos presentes em uma multiplicidade de instituições diferentes, e essa articulação transcende as conexões formais entre tais instituições. A legalidade ou ilegalidade de tais articulações ainda será objeto de investigação futura (acadêmica e criminal). Aqui, apenas apontarei a existência de algumas dessas conexões através de indicadores.
Elas são relativamente invisibilizadas. Nem tudo poderia ser mostrado, sob o risco de comprometer a aparência enganosa burocrático-jurídica dos processos. Isso traz grandes dificuldades para a sua própria investigação.
Considerando essa dificuldade, são dois indicadores que utilizo para desvendar os elos dessas conexões informais, mesmo que apenas na superfície dessas relações associativas. Primeiro, os vazamentos recentes publicados pelo jornal “The Intercept” de conversas do WhatsApp, e segundo, o resultado do caminho das ações dos agentes. Sobre a utilização do segundo indicador, seria identificar a causa através do seu efeito. Mesmo que não detalhe as interconexões, são indicadores daquilo que “seria necessário para tal evento ocorrer”.
Desse segundo tipo de indicador, é emblemática a escuta telefônica vazada à imprensa da conversa da então presidenta Dilma Rousseff com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal conversa teria ocorrido em 16 de março de 2016, às 13h:32. No mesmo dia da conversa, o então juiz Sergio Moro quebrou o sigilo de tais gravações, o que resultou em diversas matérias jornalísticas na imprensa[xiii]. Mesmo não ter sido observado nenhum fato relacionado com os processos judiciais nessas conversas, houve a liberação do áudio que, mesmo não contendo atos ilegais, foram fundamentais para os desdobramentos do impeachment naquele ano. Tal fato revela três coisas importantes. Primeiro, quebra com o argumento da reatividade dos processos jurídicos anticorrupção. Aquilo foi uma intervenção ativa desse aparelho judiciário no campo político. Mas quebra não apenas no sentido fenomênico. Não foi apenas um deslize, um erro. Aquele fato revela articulações pré-existentes que, sem elas, tal fato não seria possível. O fato revela uma articulação bem consolidada entre Polícia Federal, judiciário federal de primeira instância e imprensa. É plausível assumir a existência de uma articulação pré-existente extremamente hábil entre esses três elementos sociais dada a grande eficácia de tal ação (rapidez da circulação de informações e impacto político intenso)[xiv].
O fenômeno, além de mostrar a inexistência da reatividade judiciária e aspectos da estrutura organizacional do Partido da Imprensa Jurídica, também revela um terceiro elemento: um recurso extraordinário desse partido. Em 2016 se apresenta uma força política dotada da possibilidade de exercício de “espionagem legalizada”. Tal recurso inovador e eficaz altera não apenas um determinado equilíbrio de poder (impeachment de Dilma). Ele altera a cena política dali em diante, dada a sua eficácia. Tal recurso torna-se um risco para todos. Torna-se um recurso a ser utilizado e imitado por outros, legalmente e ilegalmente (tanto por empresários, como o caso da JBS, como também por agentes da sociedade civil contra o próprio Sergio Moro).
A legitimação da espionagem como recurso eleva os custos de tolerância na cena política, sendo portanto um dos elementos do processo de desdemocratização.
Sobre os diversos vazamentos do “The Intercept”, destaco as instruções de Sergio Moro à Deltan Dalagnol sobre a ordem das fases da investigação da “Lava Jato”[xv]. Um dos grandes argumentos que sustentam a reatividade do judiciário é de que ele apenas julga um processo produzido por outrem. Ele apenas é acionado pelo Ministério Público. Tais conversas desconstroem esse discurso da reatividade do judiciário, já que este estava ativamente participando da formulação do processo. Além disso, também revela outro aspecto da estrutura organizacional do Partido da Imprensa Jurídica: ele insere o Ministério Público nesta.
O último indicador aqui analisado, como não poderia ficar de fora, é o julgamento do “Triplex” que resultou no encarceramento de Luiz Inácio Lula da Silva em 2018. O principal elemento que ele revela é o quão profundo o Partido da Imprensa Jurídica está entranhado na estrutura judiciária brasileira. Ele se apresentou bastante articulado entre a primeira e a segunda instância. A velocidade do julgamento é evidência nesse sentido[xvi]. Essa velocidade não indica necessariamente comportamento ilegal, diferente dos anteriores. Porém, revela a aderência de determinada segunda instância judiciária federal (TRF-4) no projeto político do “Partido da Imprensa Judiciária”. Isso contrasta com a falta de articulação de tal partido com a terceira instância, em especial com o Superior Tribunal Federal (STF). Embora existissem lá sujeitos com mais aderência ao partido[xvii], isso não era suficiente para levar um processo com rapidez e com o resultado desejado (condenação)[xviii]. Por isso foi tão importante medidas paliativas, coma a aprovação da prisão em segunda instância. A função política desse debate era viabilizar o cárcere como recurso por parte do “Partido da Imprensa Jurídica”, para além do objetivo específico de manter Lula na cadeia.
Para questionar o caráter desse julgamento do Lula, não farei aqui uma análise jurídica. Não teria condições para emitir opinião sobre a sustentação do nexo causal estabelecido no julgamento de Moro[xix]. Farei aqui uma análise política. Inicio com a seguinte questão: seria possível, em 2017, após todos os embates públicos ocorridos, que Moro inocentasse Lula? Qualquer pessoa que tenha vivido nesse período histórico tenderá a responder negativamente tal pergunta. Como reagiriam as milhares de pessoas com o adesivo “Eu apoio a Lava-Jato”[xx] em seus carros se Sergio Moro declarasse inocente o líder do Partido dos Trabalhadores? Não se sabe, mas esse risco não existia. Lula passou por um processo de desconstrução de sua imagem pública ao longo de vários anos, e uma absolvição da liderança petista inverteria todos os rumos da dinâmica política do período. Para além do sentido jurídico, não fazia sentido político que Lula fosse absolvido. Lula perdeu. E perdeu na arena política. E essa perda na arena política teve como resultado o cárcere.
Isso não altera apenas as condições de Lula. Todos os presentes na cena política podem considerar razoavelmente que estão diante do mesmo risco. A ameaça do cárcere pode ser a explicação do comportamento de muitos atores políticos que virão na sequência.
Quando o cárcere torna-se um recurso político disponível para determinado ator, os custos de tolerância se elevam drasticamente.
A desdemocratização trata não apenas da elevação desse custo de tolerância, mas também da diminuição dos custos de repressão. Sobre a segunda tendência, preciso analisar o fundamento de legitimação do “Partido da Imprensa Judiciária”. Recorrendo à terminologia weberiana, sustento o caráter partidário daqueles associados porque a legitimidade das ações desses integrantes é menos por uma fundamentação racional-legal e mais por uma fundamentação afetiva.
Para iniciar a sustentação desse argumento, recorro novamente aos adesivos “Eu apoio a Lava-Jato”. Qual operação jurídica precisa de um apoio populacional e uma estruturação propagandística? Tais adesivos precisaram ser produzidos e distribuídos. A não ser que considero tais adesivos um acontecimento fortuito completamente deslocado da atividade concreta da Lava-Jato, fruto de um voluntarismo aleatório de determinados sujeitos dispersos, sou obrigados a localizar esse método de legitimação como componente concreto da atividade do Partido da Imprensa Judiciária. Considero mais plausível a segunda hipótese.
Como seria possível provar tal caráter afetivo? Se estivesse aqui escrevendo um texto acadêmico, destinado ao convencimento de uma comunidade acadêmica, seria necessário trazer pesquisas empíricas de opinião. Essa seria uma pesquisa interessantíssima, como os militantes do Partido da Imprensa Judiciária se pronunciam a respeito do seu vínculo com as peças jurídicas.
Mas como esse é um texto mais jornalístico, destinado ao convencimento individualizado, peço para que o próprio leitor faça o teste do meu argumento. Àqueles contrários à Lava-Jato, peço para que reflita sobre as conversas que teve com os defensores. A melhor forma de verificação do argumento é através da visualização das reações de tais indivíduos quando tem suas ideias confrontadas. O diálogo que se desenrola é um argumento racional-formal, sustentado em elementos presentes nas peças jurídicas? Ou se descamba para a dimensão moral, e a ideia de “inimigo” surge direta ou indiretamente? Para aqueles defensores da “Lava-Jato” que estejam lendo esse texto, eu faço a seguinte pergunta: o desconforto ao ler tais argumentações críticas é sentido mais na cabeça ou mais no estomago?
Falando de experiências subjetivas como forma de sustentação do argumento, apresento aqui a minha. Enquanto curitibano, residente a poucos metros da Justiça Federal, não me escapava essa dimensão absolutamente afetiva ao passar em frente do prédio e, durante anos, ver o acampamento dos indivíduos vestidos de verde e amarelo, apoiando ininterruptamente um processo judicial.
O esvaziamento de elementos racionais na fundamentação das ações anticorrupção podem ser observadas claramente no famoso Power-point do Ministério Público, que supostamente “provaria” a centralidade de Lula nos esquemas de corrupção[xxi]. Aquela figura, estabelecendo setas entre bolas sem conexão lógica alguma, só faria sentido na cabeça de alguém fortemente conectado sentimentalmente com o projeto de combate à corrupção. O papel dos sentimentos aqui deve ser observado não apenas na cabeça dos militantes do partido, mas também de seus organizadores. Se os membros do Ministério Público viam algum sentido naquilo, isso significa que os organizadores do partido estavam orientando seus comportamentos com base em sentidos afetivos, e não em sentidos racionais.
Por isso, sustento que o fundamento de legitimação do combate à corrupção no Brasil foi sustentado mais por relações afetivas do que por relações de tipo racional-legal. Qual o caráter de tais relações afetivas? Considero duas relações afetivas importantes nesse processo de legitimação.
O primeiro, clássico no debate weberiando, é a legitimação carismática. Sergio Moro pode ser considerado uma liderança carismática, tendo claro que isso não indica grande capacidade de oratória nem excepcionalidade intelectual. Frequentemente é o oposto. É por isso que a relação carismática é vista com tanta estranheza por aqueles de fora dessas ligações. O vínculo carismático é estabelecido pela relação afetiva, irracional, explosiva, entre líder e massa. O aspecto carismático pode ser estudado através da profusão dos “memes” que apoiavam tal figura.
Mas existe uma outra relação afetiva, que ouso classificar como mais importante para os acontecimentos políticos futuros. O sentimento do ódio. A construção de um inimigo público foi realizado. Não era suficiente, para mobilizar a população, um objetivo genérico de anticorrupção. Era necessário apontar determinados corruptos. O partido estabelecido no governo federal tornou-se o alvo. Termos como “PTralhada” e “CorruPTos” foram construídos na época, porque era necessário concretizar o inimigo.
Proponho aqui que esse segundo sentimento prevalece sobre o primeiro. O principal sentimento que os orienta é o ódio. Mais que a idolatria a um determinado juiz, era o ódio a um partido político específico o sentimento mais marcante, tanto que este transcendeu os militantes do Partido da Imprensa Judiciária e se incrustou em grande parte da classe média e alta no Brasil.
Ao eleger o sentimento de ódio como vínculo afetivo para mobilizar seus militantes, isso possui alguns efeitos. Primeiro, é necessário cultivá-lo na população. A articulação do judiciário com a imprensa, nesse sentido, torna-se fundamental. O problema é que tais sentimentos, se cultivados corretamente, se espalham por toda a cena política, e passam a ser utilizados pelas outras forças políticas. Tanto pelos opositores (os “esquerdopatas” tem esse sentimento elevado pelo simples fato de ter sua existência “odiada”) como por terceiros (que inclusive podem se tornar capazes de produzir processos catárticos mais intensos nessa destilação de ódio, como apresentarei mais adiante).
A periculosidade do uso desse sentimento na cena política é bastante discutida por Maquiavel n”O Príncipe”. O seu efeito na cena política brasileira recente foi o de diminuir os custos de repressão. Para todas as forças políticas nessa cena, os custos simbólicos da atividade repressiva praticamente desaparecem. Torna-se aceitável qualquer coisa com os opositores. Aliás, torna-se necessário. Nem se Moro quisesse inocentar Lula em 2017 ele poderia.
Assim sendo, concluo que o Partido da Imprensa Jurídica é organizado pela associação extra-formal de determinados setores judiciais de primeira e segunda instância, irradiando sua influência em alguns Ministros do STF, incluindo também setores do Ministério Público, Polícia Federal e veículos da grande imprensa brasileira.
Também defini que o Partido da Imprensa Judiciária possuía dois recursos políticos excepcionais. A espionagem legalizada e o encarceramento. Tais recursos produziram a elevação dos custos de tolerância na cena política brasileira. Para legitimar tais recursos, foi consolidado o sentimento de ódio em determinadas camadas da população, o que reduziu os custos de repressão nesta mesma cena.
Essas eram as vantagens do Partido da Imprensa Judiciária. Porém, este padecia de um grande defeito. A incapacidade de lançar candidato próprio em 2018. Futuramente é possível que o façam. Mas naquele momento não foi possível. Essa limitação, conjugada com dois resultados inesperados, ajudam a explicar o que ocorreu no Brasil em 2018.
O Partido[xxii] Fascista
O uso do termo Fascista também é controverso. Se fosse utilizar pronunciamentos de lideranças do governo como critério, talvez o termo mais adequado para a classificação seria nazista. Mas dado o caráter mais genérico do termo fascista (aplicado não apenas na Itália, mas também em Portugal e na Espanha), além do seu recorrente uso nos debates contemporâneos[xxiii], ele foi selecionado.
Ele não indica a aplicação de política econômica determinada. Não seria possível classificar o governo Bolsonaro por atributos econômicos, pois a precipitação de um ministro (Paulo Guedes) poderá alterar completamente os rumos desse setor. Também não é possível classificá-lo apenas por uma atribuição nacionalista, dado o caráter dúbio de suas políticas econômicas e o papel simbólico de sua adesão unilateral aos Estados Unidos. Seria fascista porque constitui identidade entre os partidários através da diferenciação “amigo-inimigo”, sendo esse inimigo mais definido na relação direita-esquerda do que na relação cidadão-estrangeiro. Inimigos, nesse sentido, é uma classificação utilizada diretamente a compatriotas que divergem politicamente da liderança.
A origem dessa posição política fascista no Brasil pode ser traçada desde muito antes do período aqui tratado. As releituras históricas da Escola Superior de Guerra[xxiv] e as intervenções polêmicas de Bolsonaro na imprensa na década de 1990 são indicativos dessa origem. Também é fundamental a cultura política conservadora se desenvolveu no Brasil desde a primeira década de 2000, como mostra o trabalho de Di Carlo e Kamradt[xxv], que correlacionam a cultura do politicamente incorreto com a ascensão política de Jair Bolsonaro.
Mas tal posição ainda não havia sustentado a viabilidade eleitoral para a obtenção do cargo de Presidente da República. Mesmo que embasados por um forte fundamento ideológico e uma grande articulação nas mídias digitais, dois resultados inesperados do processo de combate à corrupção são bastante explicativos no processo de tornar uma candidatura inicialmente desacreditada em quase vitoriosa no primeiro turno.
Primeiro, o combate à corrupção respingou em forças políticas para além do PT. Mesmo que ele não tenha atingido líderes daquilo que se chama no Brasil de “alto clero”, houve uma forte deslegitimação de vários partidos. Tratados, em 2018, como “a velha política”.
Como o Partido da Imprensa Judiciária não podia lançar candidatura própria e os partidos tradicionais não produziram candidaturas viáveis, era necessário apoiar alguma candidatura de algum personagem político marginalizado.
Mas porque Bolsonaro? Quais seriam as convergência que uniram tais forças políticas? Sustento que o ódio como sentimento afetivo de legitimação é o que uniu as duas forças políticas. Essa união ocorreu derivada de um segundo resultado inesperado na cena política de 2018, a sobrevivência do PT.
A prisão de Lula em 2018 efetivamente produziu um efeito catártico intenso sobre aqueles envolvidos no sentimento de ódio anti-petista. Porém, tal ação não produziu o resultado esperado, de “acabar com o PT de uma vez por todas”. A viabilidade eleitoral do candidato petista era prova concreta da limitação do encarceramento como fato político. Se houve um efeito catártico extremamente prazeroso entre aqueles que viam o encarceramento, e se constatou a limitação de tal procedimento, foi apenas um passo lógico criar a ideia do fuzilamento.
Não se deve subestimar tal fala do Bolsonaro[xxvi]. Ele não venceu as eleições de 2018 apesar dessa fala, mas por causa dela (incluindo outras causas, óbvio). Uma ideia precisa de tempo para tornar-se madura. Levou um tempo para legitimar a prisão de Lula. Como já diria Milton Friedman, é necessário alimentar uma ideia (uma crise) por um tempo até que esta deixe de ser politicamente impossível e torne-se politicamente inevitável[xxvii]. Foi assim com a prisão do Lula. Ela tornou-se inevitável. É possível que seja assim com a ideia do fuzilamento.
Houve uma confluência, pois as duas tratam de utilização de meios diretos de coerção física como forma de lidar com opositores políticos. O Partido da Imprensa Jurídica propunha o encarceramento, o Partido Fascista o fuzilamento. Muitos do primeiro partido não estavam inicialmente dispostos a dar tal passo, mas em termos de base de apoio populacional isso poderá mudar dependendo da crise a ser enfrentada no futuro. E claro, se o risco de fuzilamento passa a ser cogitado na cena política, os custos de tolerância passam da estratosfera. Assim como, se tal proposta (mesmo como piada) passa a ser referendada eleitoralmente, os custos de repressão caem drasticamente (torna-se aceitável).
Sustento que o Partido da Imprensa Jurídica apoiou o Partido Fascista em 2018 através de três indicadores. Primeiro, a Delação Premiada de Antonio Palocci, liberada em 2 de outubro de 2018, cinco dias antes da votação do primeiro turno (ocorrido no dia 07/10/2018). Uma interferência direta no processo eleitoral contra a candidatura petista. Ação completamente contrastante com a posição da Polícia Federal, que em novembro de 2018 lançou investigação contra relações do filho do presidente eleito, e segundo denúncias, vazou informações para esses envolvidos[xxviii]. Além desses dois fatos, o terceiro é ainda mais grave. Talvez em um ato falho, o vice-presidente Hamilton Mourão admite que foi prometido, durante a campanha, que Sergio Moro seria indicado para Ministro do STF[xxix]. Esses indicadores, claro, não são capazes de dar conta de todas as articulações ocorridas nos bastidores da cena política. Perguntas permanecem. Em qual momento tais partidos firmaram aliança? Qual a intensidade das relações? Qual a legalidade delas? De qualquer forma, considero indicadores fortes o suficiente para ao menos sustentar a afirmação de que em 2018 houve uma aliança entre o Partido da Imprensa Jurídica e o Partido Fascista.
Essa aliança durou? Para o leitor em 2020, com a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça e com a prisão de Queirós, ficará claro que a aliança se desfez. Mas sustento aqui que os ataques do Partido Fascista ao Partido da Imprensa Judiciária iniciaram-se no primeiro dia do governo Bolsonaro.
O conflito
Bolsonaro não é um sujeito reconhecido por seus atributos intelectuais. Porém, sua mera classificação como imbecil não nos ajuda a compreender seu comportamento. Sustento que alguma racionalidade, mesmo que precária e superficial, poderá ser encontrada na mente de tal sujeito detestável. Se não fosse, é provável que nem tivesse alcançado o cargo de presidente.
Sustento que, se existe alguma racionalidade naquela mente doentia, provavelmente é esta: “Não vou deixar fazer comigo aquilo que fizeram com o PT”. Considero plausível que tal raciocínio possa ter emergido considerando que Bolsonaro era um político ativo no meio do processo do impeachment, mesmo que ainda marginalizado. Provavelmente observou os atores, e identificou determinados perigos.
Os custos de tolerância se elevaram, e os de repressão diminuíram. Novos riscos foram colocados na cena política, assim como novas oportunidades. O PT, talvez por uma crença irresponsável na neutralidade do judiciário, talvez por avaliar que eram fracos demais para fazer frente ao Partido da Imprensa Jurídica, aceitou todos os ataques direcionados a eles. Por isso, naquele momento, a elevação dos custos de tolerância e a diminuição dos custos de repressão não produziram grandes atritos no funcionamento das instituições. O governo de Bolsonaro estava apenas começando. Ele iniciou sob essa nova conjuntura de elevação dos custos de tolerância e diminuição dos custos de repressão. Ao contrário do PT, ele ajustou seu comportamento a essas novas condições.
Por mais que fossem aliados, o Partido da Imprensa Judiciária sempre seria um risco para os Fascistas. Aqueles que cometem crimes tem mais razão em temer o cárcere, e por isso seus custos de tolerância são ainda mais elevados. São vítimas fáceis de um partido judiciário (que possuem suas armas especialmente moldadas para combatê-los), e por isso precisam lutar com especial intensidade contra essa força política.
Mas mesmo que os fascistas estivessem ávidos em atacar, o Partido da Imprensa Jurídica, mesmo dispondo dos meios, esteve especialmente paralisado diante de tal força. Talvez por um auto-engano em relação à sua posição diante do processo democrático (agem com pudor na preservação das instituições, mesmo esse pudor não existindo em momentos anteriores); mas muito provavelmente pela covardia intrínseca de seu caráter. São incisivos ao atacar forças políticas democráticas, pouco propensas a utilizar a força física, mas covardes diante das forças políticas dispostas a utilizá-la.
De qualquer forma, o início do governo do Partido Fascista foi marcado por uma forte ofensiva, e uma acomodação leviana do Partido da Imprensa Jurídica. A ofensiva dos fascistas teve duas frentes, uma escancarada e uma discreta.
A ofensiva escancarada foi contra a imprensa. As condições dos jornalistas na posse em 1 de janeiro de 2019 já deixavam claro como Bolsonaro pretendia tratar a grande imprensa[xxx]. Os ataques sequenciais a jornalistas e órgãos de imprensa foram uma constante durante o governo[xxxi]. Isso foi possível porque o Partido Fascista, ao contrário do Partido da Imprensa Jurídica, não dependia de tais meios de comunicação para atingir seus militantes. Alias, descreditar os veículos tradicionais parecia uma estratégia interessante visto que sua própria comunicação poderia inventar a história que quisesse sobre os acontecimentos do governo. Di Carlo chama isso de Matrix Bolsonarista[xxxii]. Isso produziu uma grande autonomia para Bolsonaro, já que não necessitava de instituições para fazer a mediação da comunicação.
A reação da imprensa, inicialmente, foi impressionantemente comedida. Eles criticavam os ataques especificamente dos quais eram alvos, mas apoiavam aspectos bastante significativos do governo, como as políticas econômicas. Mesmo sendo atacados abertamente, eram bastante moderados na reação.
A segunda ofensiva do Partido Fascista, mais discreta, foi sobre o aparelho judiciário. Ele conseguiu desarticular parte significativa das relações associativas estabelecidas entre os membros do Partido da Imprensa Judiciária ao tirar a liderança carismática do seu posto tradicional. Embriagados pelo sucesso político, Sergio Moro considerou adequado abandonar o cargo de juiz e tornou-se ministro. O sucesso político é o maior dos perigos para um político profissional. Sob sua embriaguez, ele é capaz de cometer os maiores erros[xxxiii]. Seduzido pelo prefixo super, talvez enganado pela possibilidade de passar projetos de lei que dessem mais autonomia ao judiciário, ele larga o cargo no judiciário e, muito provavelmente, desarticula todo o conjunto de relações que haviam se consolidado até então (que eram informais). Nessa conjuntura (dos anos iniciais do governo Bolsonaro) as grandes operações perdem a centralidade na cena política e os nomes do partido (delegados, procuradores e juízes) passam para o fundo do palco.
Apenas Moro permanece em uma posição central, mas sempre vinculado à figura de Bolsonaro, que como seu chefe impunha-se.
Apesar dos ataques do Partido Fascista serem constantes, o Partido da Imprensa Jurídica sempre agiu comedido. A relação entre os dois Partidos só se tornaria uma guerra aberta em 24 de maio de 2020, na demissão de Sergio Moro do super (sic) ministério da justiça.
A conjuntura política que vivemos hoje é a guerra aberta entre esses dois partidos. As críticas na imprensa tradicional se intensificaram. As operações policiais retornaram. O clima político é marcado por ameaças e conflitos, o que se soma à crise sanitária no mundo devido ao vírus Covid-19. A resiliência do partido fascista, assim como seu recuo, é bem tratado por Luis Filgueiras e Graça Druck[xxxiv]. O resultado da guerra ainda não está definido. Mas algumas considerações sobre as marcas que esse processo produzirá na cena política já podem ser feitos.
Considerações finais
O resultado do conflito entre esses dois partidos ainda está em aberto, e provavelmente será estrondoso. Mas independente dele, o processo de desdemocratização segue seu pleno curso. Independente de quem saia vitorioso, este irá encontrar uma cena política na qual não é mais racional tolerar a oposição, nem deixar de usar os meios de repressão disponíveis. A desdemocratização é o sentido que a história recente no Brasil vem tomando ininterruptamente, havendo uma sucessão de forças políticas sequencialmente dispostas a dar o próximo passo nesse processo.
Por isso, afirmo categoricamente. A democracia já acabou no Brasil. As instituições, anacronicamente, ainda existem. Mas a cena política está configurada de forma a tornar inefetivo qualquer comportamento democrático, e tornar efetivo apenas os comportamentos antidemocráticos. Da mesma maneira que foi necessário 1968 (AI-5) para os brasileiros perceberem o que ocorreu em 1964, ainda estamos por ver um evento que explique a magnitude do que ocorreu em 2016.
*Rodolfo Palazzo Dias é Pós-doutorando na UFRJ.
Notas:
[i] Esse é um texto descritivo, não explicativo. Existem duas grandes faltas nesse texto. Uma análise de como essa conjuntura se encaixa na luta de classes. Isso já está sendo desenvolvido nos trabalhos de Armando Boito Jr (https://aterraeredonda.com.br/a-democracia-em-pedacos/), apesar de que eu incluiria a importância da lumpemburguesia na base bolsonarista. E também uma análise da inserção dessa dinâmica brasileira no contexto internacional. Essa pesquisa está sendo proposta atualmente no grupo de pesquisa NESFI, presente na UFSC, que traz uma perspectiva de redes para estudar as conexões dos think tanks internacionais com os nacionais, mediados por grandes organizações internacionais e instituições universitárias e políticas dos países centrais. O presente texto foi discutido por esse Núcleo. E por isso agradeço a todos os seus membros, e especialmente a Ary Minella, Rodrigo Orlando Silva. Também agradeço a Josnei Di Carlo pela leitura atenta e pelas recomendações.
[ii] DALH, Robert. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1997.
[iii] Williamson, J. (1990) What Washington Means by Policy Reform. In: Williamson, J., Ed., Latin American Adjustment: How Much Has Happened? Institute for International Economics, Washington, 7-20.
[iv] Não faço uma caracterização pormenorizada da transformação do significado do termo corrupção. Essa visão de desvio de conduta pode ser remontada desde antes da doutrina neoliberal. Os neoliberais não criaram tal perspectiva, mesmo que a tenham utilizado. No Brasil, essa perspectiva é determinante no processo eleitoral de 1960, quando Jânio Quadros foi vitorioso. No presente texto pego apenas dois exemplos historicamente muito distantes para estabelecer contraste, pra mostrar que existe a possibilidade de pensar corrupção como algo diferente do sentido vigente atual.
[v] Um axioma fundamental da concepção atual de corrupção é a bondade intrínseca do juiz. Pois ele é o grande fiador do padrão correto de conduta a ser executado.
[vi] Moro, S. F. Preventing Systemic Corruption in Brazil. Daedalus, v. 147, p. 157-168, 2018.
[vii] “The judicial process is just a reaction against corruption, as the justice system cannot turn a blind eye to crime.”
[viii] http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/10/delegado-protogenes-e-exonerado-da-pf-pelo-ministerio-da-justica.html
[ix] Uma cronologia desta está sistematizada em: https://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalNoticias&idConteudo=214544
[x] O extremo interpretativo seria o simples pertencimento à organização como imputação de responsabilidade sobre a atividade criminosa, sem provas que demonstrassem a atividade direta do sujeito sobre o acontecimento.
[xi] Para uma análise detalhada do processo de transformação do sistema judiciário brasileiro a partir de 2003, recomendo a leitura do seguinte artigo: KOERNER, Andrei. Judiciário e moralização da política: três reflexões sobre as tendências recentes no brasil. Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 3, p. 681-711, dez. 2013.
[xii] Nesse sentido, esse conceito seria menos de Ciência Política e mais de Sociologia Política (menos formal), para utilizarmos uma distinção de Giovanni Sartori. O partido aqui tratado não seria uma “instituição” consolidada, mas sim “relações associativas” recorrentes, interessadas na obtenção e exercício de poder político.
[xiii] http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/03/pf-libera-documento-que-mostra-ligacao-entre-lula-e-dilma.html.
[xiv] Aqui considero unificado a imprensa e o judiciário em um único partido porque suas relações sustentaram mutuamente seu exercício do poder político. Tanto a intervenção publica fornecia legitimidade para o poder judiciário, como também o direcionamento das ações judiciais sustentavam a caracterização de “inimigos” por parte da imprensa. Algumas tensões podem ser observadas nesse processo histórico, mas até o presente momento histórico não existe um questionamento efetivo (bem sucedido) de alguma das partes em relação ao comportamento da outra.
[xv] https://theintercept.com/2019/06/09/chat-moro-deltan-telegram-lava-jato/.
[xvi] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/08/1912821-recurso-de-lula-foi-o-que-mais-rapido-chegou-a-2-instancia.shtml.
[xvii] https://veja.abril.com.br/politica/in-fux-we-trust-disse-moro-a-deltan-em-mensagem-vazada/.
[xviii] Os opositores de tal partido no STF podem ser identificados através da pesquisa dos ministros difamados nas redes sociais no período. As redes sociais digitais se mostraram recursos de legitimação valiosos, apesar que elas eram sempre articuladas aos veículos oficiais de imprensa. Tal articulação se desmontou no processo histórico e quem se apropriou dessas redes sociais será outro partido, analisado mais adiante no texto.
[xix] Apesar do termo jurídico “nexo causal” sequer aparecer na sentença emitida pelo juiz. https://www.conjur.com.br/dl/sentenca-condena-lula-triplex.pdf.
[xx] Tais adesivos também são fortes indicadores da articulação organizacional prática de tal partido. Qualquer militante partidário sabe das dificuldades organizacionais, de design, logísticas, que envolve a produção e distribuição de adesivos. Claro que essa é uma atividade pontual, mas uma atividade que foi realizada. Para que ela pudesse existir, era necessário alguma organização. O Partido da Imprensa Judiciária tentou um amadurecimento dessa organização existente através de recursos advindos da Petrobras, criando uma fundação, mas tal tentativa foi frustrada. (https://oglobo.globo.com/brasil/ministro-do-stf-suspende-fundacao-da-lava-jato-para-gerir-ate-25-bilhoes-da-petrobras-23525950).
[xxi] https://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2016/09/15/conheca-o-powerpoint-usado-pelo-ministerio-publico-contra-lula/.
[xxii] A definição de partido aqui aplicada é também flexibilizada. Nesse sentido, o PSL seria apenas uma instituição “encubadora”, para utilizarmos um termo de Rodrigo Mayer. Que chocou o ovo da serpente.
[xxiii] Sobre esse debate, é interessante o seguinte artigo: https://aterraeredonda.com.br/a-terra-e-redonda-e-o-governo-bolsonaro-e-fascista/
[xxiv] https://cartacampinas.com.br/2020/05/professor-descobre-origem-do-bolsonarismo-e-diz-que-consequencia-sera-catastrofica-ao-brasil/?fbclid=IwAR313Da4uGRqTJG9cxPwopP-sX-gfwqrEfLTvIcWR3sZ5Nfrnbk_5bBQsHs.
[xxv] DI CARLO; KAMRADT. Bolsonaro e a Cultura do Politicamente Incorreto na Política Brasileira. Teoria e Cultura. v. 13. n. 2. 2018.
[xxvi] https://exame.com/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-campanha-no-acre/.
[xxvii] FRIEDMAN, M. Capitalism and freedom. Chicaco: Chicago University Press. 1982. p. 7.
[xxviii] https://oglobo.globo.com/brasil/entenda-suspeita-de-vazamento-na-policia-federal-relacionada-flavio-bolsonaro-queiroz-24432339.
[xxix] https://valor.globo.com/politica/noticia/2018/11/01/moro-foi-convidado-para-ministerio-ainda-na-campanha-diz-mourao.ghtml.
[xxx] https://exame.com/brasil/jornalistas-relatam-serie-de-restricoes-em-posse-de-bolsonaro/
[xxxi] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/01/02/bolsonaro-fez-ataque-a-imprensa-a-cada-tres-dias-em-2019-diz-levantamento.htm
[xxxii] https://boletimluanova.org/2019/10/07/matrix-bolsonarista-para-a-acumulacao-sadica-do-capital/
[xxxiii] Grandes erros no início dos governos podem ser creditados à essa embriaguez. O Mensalão poderia ser o grande erro do PT nesse sentido. A entrada de Moro no governo Bolsonaro também pode ser considerado o grande erro do Partido da Imprensa Judiciária. Ainda devemos esperar as consequências para podermos qualificar as ações de Bolsonaro como erro.
[xxxiv] https://diplomatique.org.br/a-mudanca-de-conjuntura-e-a-resiliencia-de-bolsonaro/?fbclid=IwAR0PbSkCkz5wXxYNrfz6_tCAxaVDOmc5Mc-kF5znpjKasCljvA_Ohu3uKoY