Frente única burguesa sustenta Bolsonaro

Imagem: Stela Grespan
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Por MARCUS IANONI*

A preferência política dos grandes capitalistas e seus aliados: domesticar Bolsonaro e evitar o impeachment.

A principal alavanca estrutural de sustentação do presidente Bolsonaro, que já cometeu inúmeros crimes de responsabilidade, sendo o mais grave deles a gestão catastrófica da atual pandemia, é o seu compromisso de pulso firme, com pouca hesitação e com certificado de garantia militar, em relação ao programa ultraliberal da equipe econômica governamental, apoiado por uma ampla coalizão entre frações de classe da burguesia (finanças, indústria, agricultura, comércio e serviços e transporte) – incluindo o capital internacional que aqui tem investimento direto ou de portfólio –, e partidos e parlamentares com assento no Congresso Nacional, vinculados a essa agenda.

Sinal dos tempos. Uma das principais consequências da emergência internacional do neoliberalismo, desde os governos Thatcher e Reagan, é a mudança na relação de forças entre capital e trabalho, que implica a propensão estrutural à unidade do empresariado de todos os setores de atividade (a começar pelas grandes corporações e investidores institucionais), por intermédio de suas associações de classe, em torno de um núcleo de demandas dirigidas diretamente ao Estado e/ou por intermédio dos representantes políticos eleitos e seus partidos.

O eixo programático dessa tendência estrutural à unidade dos capitalistas assenta-se no lado econômico da oferta: visa fornecer ao business uma dupla redução, a de custos (salários e impostos) e a de regulação (flexibilização do contrato de trabalho, enfraquecimento dos sindicatos e liberalização dos negócios). A centralidade do combate à inflação (que produz também um custo) e as privatizações (novos negócios) também entram nessa receita. Menos Estado para os de baixo e mais mercado para os de cima.

Embora as preferências específicas e contraditórias dos distintos setores empresariais não desapareçam com a dominância da valorização financeira do capital, própria do neoliberalismo, esse padrão de capitalismo configura pontos de convergência, que as aproximam, sobretudo em conjunturas de crise. Foi assim na crise de estagflação dos anos 1970, que deu à luz politicamente o adeus ao compromisso histórico dos Trinta Gloriosos, e também no período aberto pela crise financeira de 2008, quando, após as medidas de salvação dos bancos e outras firmas, as políticas de austeridade passam a ganhar primazia no receituário decisório da política econômica no governo Obama, supostamente visando reduzir a relação entre a dívida pública e o PIB, para, assim, tentar conquistar a confiança dos investidores e a retomada do crescimento. As aproximações entre capital e trabalho que ocorreram nos anos 2000 em países da América Latina deram-se em um arcabouço conjuntural específico, que abrangia a crise das políticas neoliberais na virada do milênio, a capitalização político-eleitoral de partidos de centro-esquerda e esquerda, a chamada Onda Rosa, e o boom internacional de commoditiesA crise de 2008 foi, aos poucos, alterando essa oportunidade histórica favorável às experiências que apostavam na flexibilização da disciplina dos mercados.

No que diz respeito ao Brasil mais recente, o tucano Geraldo Alckmin foi o principal candidato orgânico dos empresários às eleições de 2018. Porém, com a crise dos partidos mais tradicionais da direita e centro-direita (PSDB, PMDB e DEM), decorrente do impacto da Lava Jato no sistema político, e com a força da ampla onda estrutural de coalização social e partidária de conteúdo antipetista e neoliberal, que já havia alavancado a deposição de Dilma Rousseff em 2016 e que se movia para impedir uma possível quinta vitória consecutiva do PT no pleito presidencial, o salvacionismo de extrema-direita alçou-se como a única alternativa efetiva a ser abraçada pelos donos do dinheiro.

E eles a abraçaram sem pestanejar. Pincelando um exemplo representativo, destacaria que Octavio de Lazari Jr., presidente do Bradesco, em nota pública sobre a vitória de Bolsonaro, emitida em 28 de outubro de 2018, logo em seguida à divulgação do resultado das urnas, afirmou: “A partir deste cenário, nos sentimos revigorados para dar início a um novo ciclo de reformas estruturais no sentido de modernização do Brasil”. Esse banco lucrará R$ 25,8 bilhões em 2019. Destacaria também que a bancada ruralista, então presidida pela deputada Tereza Cristina (DEM), hoje ministra da Agricultura, declarou a poucos dias antes do primeiro turno das eleições de 2018, seu apoio à candidatura de Bolsonaro. A Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) e o agronegócio em geral, setor com grande concentração de capital e várias multinacionais, mantêm seu apoio ao governo, inclusive ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, aquele que se dispõe a “passar a boiada” nas regulações ambientais.

Em 2016 e 2017, Temer e sua coalizão parlamentar, representando a frente única burguesa que interliga as instituições do Estado ao mercado e vice-versa, aprovaram a tão almejada emenda do teto de gastos públicos, a reforma trabalhista e reverteram, em prol do capital estrangeiro, a rota de inspiração social-desenvolvimentista da regulação do setor petrolífero. Bolsonaro e Guedes lograram emplacar a reforma da Previdência Social, em torno da qual a frente única burguesa alcançou seu auge no governo atual, quando nove confederações empresariais de todos os setores, em carta aberta dirigida ao presidente da República, demandaram sua aprovação. Todas as medidas mencionadas foram amplamente defendidas pelo espírito materialista da frente única burguesa, que tem aprofundado o capitalismo associado brasileiro, embora os resultados efetivos em termos de crescimento, emprego e do tão almejado equilíbrio orçamentário não apareceram nem mesmo antes da pandemia. O PIB do quarto trimestre de 2019 foi de apenas 0,5%; o do primeiro trimestre de 2020 caiu 1,5%. A mais recente previsão do Boletim Focus indica uma queda de 5,62% para este ano.

Em maio de 2019, uma pesquisa feita pelo BTG Pactual com empresários de pequenas, médias e grandes empresas concluía que 59% deles avaliavam bem o governo Bolsonaro, visto como ótimo por 20% e como bom por 39%. Apenas 10% viam o governo como ruim (3%) ou péssimo (7%). Para 27% dos entrevistados, tratava-se de um governo regular.

No mês anterior a essa pesquisa, Luiz Carlos Moraes tomou posse na Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), que representa 32 empresas multinacionais atuantes no país. Em sua posse, defendeu a reforma da Previdência, então em curso, assim como evocou outras reformas pró-mercado, como a tributária e a redução da burocracia. Mas note-se que, no mês anterior, Guedes havia renovado um acordo de livre-comércio com o México, iniciado em 2002, que previa, para março de 2019, o fim do sistema de cotas de importação e exportação. Apesar da Anfavea ter pedido que o ministro da Economia adiasse a plena vigência do livre-comércio, Guedes se negou a fazê-lo. Enquanto isso, a Associação Brasileira das Empresas Importadoras e Fabricantes de Veículos Automotores (Abeifa), fundada no contexto da abertura comercial promovida por Collor, elogiava a disposição de Guedes de reduzir de 35% (alíquota máxima permitida pela OMC) para 20% o imposto de importação de automóveis. Em 1º de agosto de 2019, o governo, que se esforça por atrair investimento externo direto e por radicalizar o livre-comércio, zerou por 17 meses as alíquotas de imposto de importação de 261 bens de capital e de informática, que até então era de 14%.

Em julho de 2019, segundo o Datafolha, Bolsonaro perdia apoio na classe média, mas ganhava entre os mais ricos. O presidente, então, andou dizendo que não havia fome no Brasil, que os dados oficiais sobre desmatamento na Amazônia estavam errados e que nordestino era “paraíba”. Mas, para Candido Bracher, presidente do Itaú, então entusiasmado com a aprovação em primeiro turno da reforma da Previdência, as turbulências políticas não influenciavam o avanço das reformas. Esse executivo avaliou que o alto desemprego propiciava crescer sem explosões inflacionárias. “Isso deixa a situação macroeconômica do Brasil tão boa quanto nunca vi na minha carreira” (UOL). Em novembro, seu colega de classe, o já mencionado presidente do Bradesco, empolgado com a conclusão da reforma da Previdência e com Guedes e desejando ir além, expressava interesse em concretizar a intenção do governo de transferir a gestão do FGTS, hoje nas mãos da CEF, para os bancos privados. No mês seguinte, a CNI divulgava a pesquisa “Sondagem Especial: Avaliação do Governo pelo Empresário Industrial”, que ouviu 1.914 empresários em todo o país. Sendo que 60% deles avaliaram o governo como ótimo ou bom, tendo à frente a satisfação com a legislação trabalhista e com a redução dos juros.

Em março de 2020, Bolsonaro esteve na sede da Fiesp para participar da primeira reunião do então recém-criado Conselho Superior Diálogo pelo Brasil. O evento reuniu mais de quarenta acionistas e executivos dos principais grupos empresariais sediados no Brasil, de todos os setores de atividade. O anfitrião, Paulo Skaf, assim se pronunciou ao final: “A tônica da reunião foi o otimismo, a confiança e o apoio dos setores produtivos de todo o Brasil ao governo e à agenda econômica. Há um consenso de que estamos no rumo certo”. Também presente, André Gerdau, presidente do Grupo Gerdau, assim se colocou: “Em 119 anos de atividades nunca estivemos tão animados com as propostas de um governo como estamos com esse”. Representantes do setor financeiro destacaram, além dos juros baixos, o controle da inflação e o crescimento do crédito.

Três fatos trouxeram algum ruído no flerte entre os capitalistas e o presidente Bolsonaro. A gestão da crise da pandemia, as manifestações antidemocráticas e a demissão do ministro Sergio Moro. Abordarei de trás para frente. Gabril Kanner, o entusiasta bolsonarista e presidente do Instituto Brasil 200, que se diz conservador nos costumes e liberal na economia, ficou indignado com a demissão de Moro e com suas acusações de que Bolsonaro estaria interferindo na Polícia Federal para proteger a si próprio e aos seus filhos e amigos. Mas, baixada a poeira, o grupo (Havan, Centauro, Riachuelo, Polishop, Smart Fit etc.) manteve seu apoio ao presidente da República. Alguns de seus membros foram alvo de busca e apreensão no âmbito do inquérito que investiga mentiras e ameaças dirigidas contra o STF, inclusive por suspeita de financiarem as irregularidades, casos de Luciano Hang e Edgar Corona.

O autoritarismo do presidente foi enfrentado, institucionalmente, pelo STF e pelo Congresso. As buscas e apreensões acima referidas inserem-se no enfrentamento do gabinete do ódio pelo STF. Além disso, instigado por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) do PDT versando sobre o papel constitucional das Forças Armadas, com pedido de medida cautelar, o ministro Luiz Fux, a quem a apreciação da demanda foi distribuída, deferiu-a parcialmente. Afirmou claramente que as Forças Armadas não possuem missão institucional que faculte “o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”. Por sua vez, Rodrigo Maia exortou o combate ao vírus do autoritarismo, associou ditadura à desordem e criticou as retóricas golpistas. Além disso, Maia atacou a influência de lunáticos (Olavo de Carvalho & Cia.) sobre Bolsonaro e chamou o presidente ao diálogo. Quanto à reação social ao autoritarismo, comentarei adiante.

Em relação à pandemia, há uma dupla dimensão, a sanitária e a econômica. Na saúde, o desgaste maior de Bolsonaro no meio empresarial fica por conta da Rede Globo. Na edição do Jornal Nacional da noite de 8 de agosto, quando o número de mortos por Covid-19 alcançou 100 mil, os apresentadores deixaram claro que o governo está desrespeitando a Constituição, ao descumprir o dever de garantir o direito à saúde, por não atuar para diminuir o risco de adoecimento. Quanto à economia, o descontentamento maior com as medidas veio das pequenas empresas. Em 16 de julho, o IBGE informou que 522 mil empresas haviam fechado as portas devido à crise da pandemia, sendo 99% delas de pequeno porte. A linha de crédito supostamente disponibilizada às micros e pequenas empresas, o Programa de Apoio às empresas de Pequeno Porte (Pronampe), não estava chegando aos interessados. A Câmara dos Deputados acaba de aprovar um reforço de R$ 12 bilhões no Pronampe.

Com o avanço das investigações sobre irregularidades envolvendo seus filhos e com a prisão de seu amigo Fabrício Queiroz, em meados de junho, Bolsonaro tem controlado, não sanado, sua incontinência verbal. Isso retrai sua base social de extrema-direita e neofascista, já freada com a prisão, também no mês passado, da líder dos 300 do Brasil, a ativista Sara Winter. Esses fatos políticos convergem no sentido de conformar a preferência política dos grandes capitalistas e de seus aliados no Congresso e no STF, como Maia, Alcolumbre, Barroso, Fux etc.: domesticar Bolsonaro e evitar ao máximo o impeachment. Um dia após a consultoria Atlas Político aferir que 55% dos brasileiros querem o impedimento presidencial, o pragmático business deixou novamente claro que o importante é a economia. “Saímos todos leves dessas reuniões. Sentimos um clima de pacificação e harmonia entre os chefes dos três Poderes. É disso que o Brasil precisa para iniciar a reconstrução com uma agenda de reformas e futuro”, disse Skaf em 3 de julho, após se reunir com Bolsonaro em Brasília, acompanhado de pesos pesado do Bradesco, da Cosan, Embraer e BRF.

Duas ações que bem expressam a frente única burguesa com Bolsonaro enquadrado no regime político de uma democracia desdemocratizada, hibridizada, militarizada, que mais se aproxima de uma semidemocracia do que de um sistema representativo democrático, estão registradas em publicações. Uma é o Manifesto Estamos Juntos, patrocinado por dois grandes bilionários apoiadores da deposição de Dilma Rousseff, que financiam a organização Pacto pela Democracia: Jorge Paulo Lemann  (3G, Ambev etc.) e Maria Alice Setúbal (Itaú). Em uma versão ampliada, publicada no sítio da referida organização (tinyurl.com/y34zbz2o), sob o título Manifesto “Juntos pela Democracia e pela Vida”, lê-se o seguinte: “é dever cerrar esforços para barrar a marcha bolsonarista, mobilizando a sociedade e as instituições para fazer falar essa maioria e trazer o presidente e seu governo à contenção e à responsabilidade por todos os meios legais disponíveis, existentes precisamente para prover os anticorpos necessários na proteção da democracia e da Constituição”.

Na outra publicação, um editorial intitulado “Os democratas precisam conversar”, o jornal O Globo expressou claramente, em 31 de maio, a convergência contra o impedimento do presidente: “Esta via política não deve excluir Bolsonaro, que, por sua vez, precisa fazer um gesto pelo entendimento, a melhor alternativa também para ele e seu governo. Com a pacificação, o presidente abrirá espaços de negociação no Congresso, para além do centrão, a fim de executar sua agenda, paralisada, como tudo, devido à crise política. E continuará assim com o fim da epidemia, se este momento não for superado”.

Enfim, a coalizão mais forte em curso no país é a frente única neoliberal com Bolsonaro. E daí? E até quando? E daí é que esse sólido bloco dificulta muito a perspectiva de desengavetar os projetos de impeachment acumulados na mesa do presidente da Câmara dos Deputados, a não ser que a evolução das investigações sobre o clã do presidente agrave ainda mais a sua situação. E daí também que o programa neoliberal não tem destravado a economia e nada indica que o fará, muito ao contrário. Em relação ao até quando, há dois problemas: em primeiro lugar, como o próprio Guedes acaba de reconhecer, sua equipe está debandando. Seu ultraliberalismo ideológico tem se chocado com a realidade da política e com a pretensão de Bolsonaro à reeleição, que implica liberar recursos orçamentários, por exemplo, para o Renda Brasil. O presidente parece estar cozinhando Guedes, apesar de sucessivamente reafirmar que se mantém compromissado com a continuidade das reformas (administrativa, privatizações, tributária, desburocratização) e com o teto de gastos. Guedes sobreviverá? Além disso, se Bolsonaro flexibilizar o neoliberalismo governamental, a frente única burguesa o acompanhará?

*Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF)

 

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