Por JOANA SALÉM VASCONCELOS*
Comentário sobre a trajetória intelectual e o legado do filósofo e educador
“Perguntado por que o depoente tem tanto horror à rigidez e mesmo à esquematização (…), não admitindo uma cartilha, que o depoente julga a todas reacionárias, respondeu o depoente que (…) não aceita os esquemas rígidos porque os considera limitadores da inteligência do homem” (Interrogatório de Paulo Freire em Inquérito Policial Militar. Recife, 1º de junho de 1964).
Se estivesse vivo, o educador e filósofo Paulo Freire faria 99 anos no dia 19 de setembro de 2020. Mesmo quando seu nome era muito menos conhecido, Freire já incomodava os algozes da ditadura militar. Conforme o tempo foi passando, a potência da filosofia freiriana cresceu. Seu prestígio se espalhou pelo mundo. O incômodo só aumentou, e os herdeiros da ditadura continuam o perseguindo.
A ditadura que expulsou Paulo Freire do Brasil em 1964, paradoxalmente, ajudou a espalhar sua pedagogia pelo mundo. Como um lutador de aikidô, Freire usou a energia repressiva do adversário como impulso da sua própria força. Hoje, ocorre novamente algo parecido: quanto mais a direita se esforçar em caluniar Freire, mais contribui inadvertidamente em espalhar o interesse positivo na juventude brasileira pelas ideias que inspiram uma pedagogia para a libertação. A perseguição parece ser incapaz de calar Freire, cuja mensagem se mostra hoje mais urgente que nunca.
A multiplicação da pedagogia do oprimido
Foi a ditadura que forçou Paulo Freire a pisar fora do Brasil pela primeira vez. Aos poucos, seu dedicado trabalho no exílio o projetou como um educador de renome global e um dos autores mais citados do mundo. Sua pedagogia se multiplicou e diversificou, chegando em todos os cantos do planeta, nas mais diferentes sociedades, tornando-se uma referência incontornável. Parte desse poder de proliferação teve a ver com uma das características centrais da filosofia da práxis freiriana: a descentralização do poder pedagógico.
O que é, afinal, a pedagogia do oprimido? É um encontro entre dois sujeitos coletivos, educadores e educandos, que constroem uma relação dialógica não hierárquica, rompendo a cultura do silêncio imposta aos oprimidos e praticando uma escuta ativa recíproca. Esses sujeitos aprendem um com o outro, se aliam na busca de uma consciência crítica sobre a realidade em que vivem e, como sujeitos históricos, atuam para transformá-la. O movimento da pedagogia do oprimido é sentipensante, prático e teórico, realista, crítico e esperançoso.
Quando o poder pedagógico é descentralizado, ele pode parecer invisível aos algozes, os guardiões da opressão. Por isso, o temem. Para enxergar a pedagogia do oprimido, é preciso ver a força subjetiva das pessoas que o sistema insiste em tratar como objetos. Em suma: humanizar o olhar sobre todos, coisa que os algozes se recusam a fazer. O que eles não sabem é que a pedagogia freireana não é uma cultura política passível de ser destruída embora eles tivessem tentado em 1964.
Lições de um interrogatório: o horror à rigidez
Na primeira tentativa de destruição da pedagogia de Paulo Freire, o prenderam duas vezes, antes do exílio. Entre junho e setembro de 1964, Freire passou 70 dias na Companhia da Guarda do Recife e na Cadeia de Olinda, onde sofreu castigos na solitária. Sentiu-se inquieto com a falta da família, conseguiu abraçar uma vez Francisco Julião e conversar com Clodomir Morais, como relatou a Sérgio Guimarães. Na cadeia, foi convidado por um capitão desinformado a alfabetizar os cabos do quartel. O capitão lhe perguntou: “professor, o senhor não quer aplicar seu método para nossos recrutas? Há muitos analfabetos”. E ele respondeu perplexo: “Mas capitão, é exatamente por causa do método que eu estou aqui!”.
Os algozes de 1964 estavam muito curiosos sobre os mistérios da pedagogia moderna e sua articulação com o marxismo. De onde vinha o encantamento do método de Paulo Freire? O coronel Ibiapino, no Inquérito Policial Militar de 1º de junho de 1964, o indagou sobre as teses de Dalton, Montessori, Mackinder, Decroly, Kilpatrick, Iena de Peterson, Cousinet, entre outros. Como numa prova oral da educação bancária, Freire respondeu calmamente qual era o argumento principal de cada autor e como sua pedagogia se relacionava com a deles.
A situação do interrogatório foi kafkiana. O inquisidor não se conformava que o “suposto método”, como gostava de repetir, não tivesse uma cartilha. Em busca de provas, os militares não encontraram os materiais subversivos de Freire. Onde estavam as cartilhas doutrinárias? Como estas nunca existiram fora da paranoia repressiva, a melhor prova de subversão que os militares encontraram foi o quadro de Francisco Brennand, guardado na sala do Departamento de Extensão da Universidade do Recife. O quadro retratava a situação existencial no4 (cultura letrada) da experiência de alfabetização em Angicos: um caçador com sua espingarda. Foi interpretado como apologia da luta armada.
“Perguntado por que o depoente tem tanto horror à rigidez (…), não admitindo uma cartilha, (…) respondeu o depoente que (…) não aceita os esquemas rígidos porque os considera limitadores da inteligência do homem”, mostram os documentos do interrogatório. Os interrogadores exigiam que ele explicasse as semelhanças de seu método com Hitler, Mussolini, Stalin e Perón. “Nenhuma”, respondeu. Indagaram sobre seus vínculos com o comunismo brasileiro e francês, com o Movimento de Cultura Popular, com Miguel Arraes, com Leonel Brizola. Freire explicou que trabalhou para os governos que quiseram contratá-lo, inclusive da UDN, com recursos da USAID.
Prosseguia o inquérito: “perguntado qual a diferença entre o seu método de alfabetização e os cursos básicos de marxismo ministrados inclusive em Pernambuco, respondeu que não conhece os cursos. Não sabe qual o método que se usava nesses cursos”. Finalmente, ao perguntarem sobre quem seriam seus inimigos, Freire contou que não os tinha.
Fico imaginando Paulo Freire, sereno, respondendo a tudo aquilo com uma sinceridade tão desarmada que chegava a ser constrangedora para os militares. Naquele momento, tiveram a chance de entender, mas se recusaram. Estava diante dos seus olhos, registrado com uma simplicidade luminosa: “Para o depoente, o fundamental é educar, jamais indoutrinar (sic)” registro o interrogador no inquérito.
Volta ao mundo em 16 anos
Para evitar uma terceira prisão, Freire escapou em novembro de 1964. Aos 43 anos, saiu do Brasil pela primeira vez, exilado. Poucos dias depois de desembarcar em La Paz, foi surpreendido pelo golpe na Bolívia, que derrubou o presidente Paz Estenssoro. Precisou atravessar a segunda fronteira clandestinamente até ser acolhido por chilenos e pelo grupo de exilados brasileiros em Santiago. Entre eles, o Paulo de Tarso, ministro de Jango que o havia contratado para coordenar a Campanha de Alfabetização do MEC, e Plinio de Arruda Sampaio, redator do projeto da reforma agrária brasileira, que nunca chegou a acontecer.
No Chile, Freire foi bem recebido pelo governo da Democracia Cristã (DC). O governo adotou seu método de alfabetização e lhe deu todas as condições para formar educadores, técnicos extensionistas e equipes de ação cultural para reforma agrária. Como consultor da Unesco, o professor brasileiro circulou entre o ministério da agricultura e o ministério da educação chilenos, sem nunca perder contato com as bases populares. Percorreu assentamentos e dialogou com o povo humilde nos rincões andinos. Em 1968, quando escrevia a Pedagogia do Oprimido, viajou ao México convidado pelo amigo Ivan Illich, onde semeou algumas de suas descobertas chilenas.
Em 1969, Freire partiu para os Estados Unidos, depois de uma forte cisão interna da DC. Rumores acusatórios davam conta de um “livro perigoso” que o brasileiro escrevia, cujo manuscrito foi presenteado ao casal Jacques Chonchol e Maria Edy Ferreira. Na Universidade de Harvard, trabalhou como professor visitante, publicou seus estudos em inglês e foi celebrado por intelectuais estadunidenses. Desde a primeira visita ao país, havia se encontrado com “o Sul que existe dentro do Norte” e participava das atividades de educação popular nas periferias negras e latinas.
Em 1970 partiu para Genebra, assumindo a chefia do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas. Dali se disseminou pelo mundo: além de tornar-se ainda mais influente na Europa e nos Estados Unidos, coordenou convênios de alfabetização e ação cultural na Guiné-Bissau, Angola, São Tomé, Zâmbia, Tanzânia, Gabão, Nicarágua, El Salvador, Granada, Haiti, Jamaica, República Dominicana, Austrália, Nova Zelândia, Papua Nova-Guiné, Fiji, entre outros.
Seus algozes nem poderiam imaginar que, ao voltar à sua terra em 1980, o recifense já seria um dos brasileiros mais conhecidos do planeta.
De volta pra casa
Ao voltar do exílio, em 1980, Paulo Freire foi celebrado pelo mundo educacional e convidado a liderar projetos culturais em ONGs (como a fundação Vereda e o Instituto Cajamar), além de lecionar na PUC de São Paulo. Em 1986, recebeu o título de cidadão paulistano proposto por Luiza Erundina na Câmara de Vereadores e o prestigioso prêmio da Unesco de Educação para Paz. No fim dos anos 1980, já tinha doze títulos de Doutor Honoris Causa, sendo cinco no Brasil. Ao falecer, em 1997, possuía 35 destes títulos.
Em 1981, se filiou ao PT. Como a presença de Freire nunca passava despercebida, a direita seguia no seu pé. Naquele ano, o cardeal Vicente Scherer, de Porto Alegre, declarou que a filosofia educacional de Freire era incompatível com os princípios cristãos – mesmo depois de frequentar por uma década o Conselho Mundial de Igrejas. Apesar da repressão contra a Teologia da Libertação pela ditadura, essa vertente ainda tinha força nos anos 1980, fazendo com que as autoridades clericais conservadoras sentissem necessidade de afastar Paulo Freire. Não adiantava: os movimentos das CEBs e das Pastorais permaneciam inspirados na ação cultural freiriana. Como o próprio brincou: “minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que eu parasse de ter reuniões com Cristo”.
A participação dos movimentos populares cristãos e de trabalhadores na formação do PT foi um dos aspectos que convenceu Freire a se filiar ao partido. Luiza Erundina, que foi alfabetizadora nos anos 1970, já era sua admiradora há décadas. Na sua candidatura à prefeita de São Paulo, em 1989, anunciou Paulo Freire como Secretário da Educação antes mesmo que ele tivesse confirmado o convite. A curta passagem de Freire pela gestão pública municipal foi cheia de criações, mas não isenta de conflitos.
Como secretário de educação da Erundina, Freire criou os Conselhos de Escola para que as comunidades participassem das decisões, aumentou salários de professores e fortaleceu a educação de jovens e adultos com o Programa de Educação de Adultos e o Movimento de Alfabetizandos Jovens e Adultos (Mova). Fez questão de substituir o nome “Delegacia de Ensino” por “Núcleo de Ação Educativa”. Seu objetivo era mobilizar a comunidade de educadores, pais e alunos para que todos se apropriassem coletivamente do processo educacional. Também foi fundamental na valorização dos funcionários das escolas (porteiros, secretários, merendeiras, faxineiras) como sujeitos educadores no cotidiano escolar.
A maior polêmica que Freire enfrentou como secretário foi sobre o currículo. Propôs a democratização dos conteúdos e investigação temática como método, descentralizando radicalmente as diretrizes curriculares. Apostava na horizontalidade. Mas os próprios professores ofereceram resistência e também começaram a surgir críticas dentro do PT (sem falar nos constantes ataques e distorções da imprensa). Depois de um ano e meio, Freire acabou renunciando à Secretaria em 1991, a despeito da insistência da prefeita.
Se dedicou, até sua morte em 1997, a escrever livros, construir diálogos, trabalhos educativos em universidades e ONGs, além da organização do Instituto Paulo Freire, para abrigar sua trajetória e continuá-la.
Onde está o legado de Paulo Freire hoje?
A pedagogia freiriana tem horror a rigidez, mas tem princípios bastante firmes na luta por igualdade e dignidade, na urgência da emancipação dos oprimidos e na criação de uma sociedade radicalmente solidária. No contexto histórico da Guerra Fria, em que os revolucionários lutavam pela clássica tomada do poder, a perspectiva de Paulo Freire confundia as classes dominantes, ao atuar de maneira molecular nos lugares periféricos, oferecendo uma ferramenta potente de diálogo e atuação emancipatória aos debaixo.
O legado político de Freire ensina que a mudança que precisamos construir só pode ser realizada pelo sujeito periférico coletivo, que se recusa a ser objetificado. O legado metodológico e pedagógico de Paulo Freire é visível em diferentes práticas, embora esteja bem longe de ser sistêmico ou institucionalizado. Essa inversão é uma tática propagandista dos seus mais novos perseguidores.
Onde se vê Paulo Freire hoje? O Brasil ainda tem um dos maiores patrimônios de Educação de Jovens e Adultos do mundo, cuja origem remonta aos anos 1940, mas cuja dinâmica e inspiração atuais resultam da filosofia educacional freiriana. O desmonte contra o sistema de EJA avança em disparada pelos governos e prefeituras neoliberais, que fecham turmas e dispensam professores. Hoje são 200 mil adultos analfabetos no Brasil, mas o maior problema é o analfabetismo funcional, que também se desdobra em analfabetismo político.
Na educação básica, curiosamente, o legado freiriano se concentra nas escolas das elites ilustradas. Escolas privadas de alto padrão se inspiram na pedagogia do problema e da pergunta, na autonomia e protagonismo dos alunos, nos círculos de diálogo e em uma série de concepções e ferramentas advindas de Paulo Freire. Enquanto isso, nas escolas públicas existe uma cultura freiriana muito difusa, bem mais frágil do que imagina a extrema direita. As práticas freirianas da escola pública decorrem mais da ação pontual de grupos de professores, do que das instituições em si, que preservam direções conservadoras. Ainda é bem mais comum do que gostaríamos que alunos passem aulas inteiras copiando páginas de livros didáticos, dentro de dinâmicas educacionais bancárias, ou simplesmente sem aulas.
Mas é sobretudo na pedagogia dos movimentos sociais que Paulo Freire vive em sentido integral. As práticas pedagógicas freirianas que fortalecem os movimentos populares têm sido fundamentais para a resistência dos oprimidos. O MST, com quem Freire se relacionou diretamente nos anos 1980 e 1990, ainda hoje cultiva práticas freirianas em seu interior, nas suas escolas populares e nas suas místicas para luta. O MTST, que cresceu no século XXI, estruturou núcleos e estratégias próprias de formação política e educação popular.
A coesão subjetiva das lutas periféricas é o que permite a muitos coletivos e movimentos atravessarem a maré fascista com saúde emocional, sentido comunitário, dinamismo próprio e cultivo da esperança. Neste século, despontaram novos movimentos de educação popular em todo país, respondendo à importante demanda de jovens periféricos para entrar em boas universidades. Inspirada em Paulo Freire, hoje, a Rede Emancipa de Educação Popular tem mais de 60 cursinhos populares em onze Estados do país e uma grande quantidade de projetos de ação cultural. A Uneafro tem mais de 50 sedes em São Paulo e Rio de Janeiro, coordenando mobilizações antirracistas e ações educacionais fundamentais junto às periferias. A educação quilombola, a educação indígena e a pedagogia dos movimentos populares são tributários diretos da cultura freireana.
Freire contra Bolsonaro
No Brasil de Bolsonaro, as esquerdas precisam reler e refletir sobre a Pedagogia do Oprimido para compreender mais a fundo os mecanismos psíquicos de internalização do opressor entre os pauperizados. Enquanto não existir uma alternativa alcançável de emancipação coletiva, é natural que os oprimidos compreendam que a única saída é tornar-se opressor e que desenvolvam mecanismos de admiração pelos “vencedores”, patrões e empresários. Na ausência de perspectivas, o mundo do trabalho é absorvido pela racionalidade neoliberal do indivíduo-empresa, que mimetiza a imagem daquilo que nunca será.
Em termos freirianos, foi precisamente a “aderência ao opressor” que nos trouxe até aqui. “O grande problema”, alertava em 1968, “está em como poderão os oprimidos, que ‘hospedam’ o opressor em si, participar da elaboração (…) da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram ‘hospedeiros’ do opressor poderão contribuir para o partejamento da sua pedagogia libertadora”. E segue: “o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto à violência que os cria, este ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor”.
No passado e no presente, os opressores sentem a necessidade de destruir Paulo Freire e o que ele representa. Seus algozes voltaram ao poder e seguirão disseminando medos e mentiras. Mas o bolsonarismo já parte derrotado na tentativa de destruir o legado freiriano. Hoje, uma cultura de luta cresce molecularmente no Brasil: cada vez mais pessoas sentem a necessidade de se organizar em coletivos, recriar sentidos comunitários, dar mais atenção ao seu entorno, estudar e se preparar para o combate. A juventude elabora seu potencial criativo, os movimentos populares acumulam forças para o próximo ciclo de lutas.
Freire dizia que era esperançoso por causa do “imperativo existencial e histórico”. Mais do que ninguém, ele sabia que a luta se faz com os pés no chão, com paciência e nem sempre com os megafones ligados. Chegará a hora de voltar às ruas.
*Joana Salém Vasconcelos é doutoranda em História Econômica na USP. Autora de História agrária da revolução cubana: dilemas do socialismo na periferia (Alameda).
Publicado originalmente na revista Jacobin Brasil.