Por FRANCISCO LOUÇÃ*
A ofensiva de Trump contra a China, tendo como alvos imediatos a Huawei, a TikTok e o WeChat, é a guerra fria do nosso tempo
O poder de mandar
A ordem da Casa Branca para proibir a partir deste mês o fornecimento de semicondutores é um golpe poderoso contra a Huawei. A empresa chinesa, que domina o 5G, depende da compra de chips e pode ficar sem acesso aos fornecedores. O efeito é mundial: uma empresa de Taiwan, a MediaTek, pediu às autoridades norte-americanas autorização para lhe continuar a vender, mas o Departamento do Comércio, que conduz a operação sob instruções do presidente, deve recusar a licença. Mesmo o principal fornecedor chinês, SMIC, pode ter que fechar os seus negócios com a Huawei, dado que depende de equipamento importado dos EUA e não pode arriscar-se a ficar sem essa capacidade.
Vários aliados de Trump, como Boris Johnson ou o governo australiano, já tinham obedecido à ordem de anular os contratos com a Huawei. Portugal fica numa posição curiosa, dado que sofre a pressão da Casa Branca para recusar a Huawei por ser uma empresa com ligações ao governo chinês, mas Passos Coelho vendeu as empresas de energia a capital oficialíssimo de Pequim. Em todo o caso, a Huawei, dada a sua vantagem efetiva no 5G, aumenta a sua quota de mercado, pelo que Washington decidiu atacar a sua cadeia de fornecimento. Esse bombardeamento é para já efetivo, dado que a indústria norte-americana ainda domina alguns segmentos de máquinas sofisticadas e tem vantagem científica em semicondutores. Mas tem uma consequência: a China procurará avançar depressa na produção desses equipamentos e na investigação em chips ou em sistemas operativos. E pode recuperar o atraso em poucos anos. Assim, as empresas chinesas podem tornar-se auto-suficientes em tecnologia de ponta.
A vingança
É por saber que o conflito não tem solução na guerra contra a Huawei e que se trata de uma disputa pelo mercado global, que Trump, que ainda controla os circuitos financeiros e alguma alta tecnologia, ataca também as redes de difusão e de fidelização de utilizadores. Foi por isso que tomou com alvo a TikTok, com cem milhões de utilizadores nos EUA, e a WeChat, duas das empresas chinesas que melhor penetram no mercado norte-americano.
O argumento das suspeita é escasso. De facto, tem havido muito mais evidência de abuso de posição dominante e de desrespeito pelos direitos dos utilizadores pelo Facebook e pelo Twitter do que pelo TikTok, sobre o qual só pende uma alegação sobre a nacionalidade da empresa proprietária e uma vingança pelo fracasso clamoroso de um comício eleitoral do presidente norte-americano. Mas, ao que se saiba, a Cambridge Analytica baseou-se em dados disponibilizados pelo Facebook e não pela empresa chinesa. Em todo o caso, temos aqui mais um processo de divisão do mundo em duas internets: na China, Facebook e Google são barrados e, se Trump se impuser, as empresas chinesas serão barradas no ocidente.
E ainda há os jogos
Tecnologia de produção e sistemas de acesso são assim as duas primeiras frentes desta batalha. E há uma terceira, os jogos. A chinesa Tencent, dona do WeChat e que já tem uma margem operacional maior do que o Facebook, está a apostar nos jogos em streaming, fundindo as plataformas Huya e a DouYu. Ficaria com 300 milhões de utilizadores na China, a somar a posições dominantes noutros mercados: quando a Tencent comprou a RiotGames norte-americana, adquiriu a League of Legends, cuja final do campeonato foi vista online por 44 milhões de pessoas, o dobro dos que assistiram à final do baseball. Neste domínio, é ainda a luta entre empresas que predomina, a Apple e a Google contra a Epic Games, que produz o Fortnite, ou todas as empresas norte-americanas contra a Tencent, mas depressa será entre governos.
As duas internets lutam pela atenção e pelos dados, as armas mais poderosas do nosso tempo. A guerra já começou.
*Francisco Louçã foi coordenador do Bloco de esquerda (2005-2012, Portugal). Autor, entre outros livros, de A maldição de Midas – A cultura do capitalismo tardio (Cotovia).
Publicado originalmente no semanário Expresso.