Por TADEU VALADARES*
Reflexões sobre o que podemos esperar dos anos Biden-Kamala
Desconfio de que os anos Biden-Kamala serão a explicitação de que o sonho americano que vem do New Deal se esgotou. Biden, impressão minha, a última tentativa meramente restauradora, projeto que só pela graça da fortuna será bem-sucedido. Uma volta a Obama, um ir adiante com os olhos fixos no passado recente é, no essencial, o cerne da plataforma de Biden e sua vice. Isso me parece impossível, dada a polarização sem remédio que há décadas se instalou no seio do regime político estadunidense.
A república imperial se tornou pouco a pouco, pelo menos desde Reagan, no país real em que metade dos eleitores pertence majoritariamente ao campo liberal democrata, para ele carregando uma fração da esquerda, ela mesma amplamente diversificada. Muitos, quase todos, a ala esquerda nisso aparecendo como parcial exceção, permanecem animados pela fé no excepcionalismo da Nova Jerusalém. Enquanto isso, a outra quase metade do eleitorado se construiu e foi construída de tal forma que terminou por se afirmar como nacionalista extremada, reacionária, xenófoba e autoritária que continua a ganhar força. Outro sonho americano. Outro pesadelo.
Os dados eleitorais são cristalinos. Eles, os xenófobos, sabem que sua chance é agora, ou seja, vivem o momento do equilíbrio catastrófico que lhes permite explicitar o até então impensável para a antiga maioria silenciosa, daí que os brutos lancem mão de todos os meios possíveis, jurídicos e antijurídicos para continuar a controlar o poder executivo. Para os neo-autoritários, o sonho americano liberal-democrático acabou. O que vem sendo ingenuamente celebrado como a grande virada em direção à reencontrada democracia ‘tocquevilliana’ fecha os olhos à realidade: o movimento da barbárie desencadeada com toda força por Trump, engendro que por um fio de cabelo não conseguiu manter o controle da Casa Branca, já tem nas mãos a mais importante das instituições, se pensamos no prazo longo, a Suprema Corte. Seis dos seus nove integrantes são considerados próximos, ou até mesmo alinhados, à visão “trumpiana” de mundo.
As eleições decididas tacada a tacada, cujos resultados ainda não foram reconhecidos pelo lado perdedor, dizem que o triunfo de Biden não deve ser lido como segura reafirmação da proposta Obama, como viável correção de rumos que chegou para ficar, nesse ficar enraizando-se. Antes, a meu ver, proclamam algo oposto, algo cada vez mais evidente: o movimento extremista se tornou tumor inextirpável, cada vez mais capaz de corroer os mitos fundadores da democracia tal como historicamente concebida pelos Pais Fundadores. O trumpismo, com ou sem Trump, alcançou novo patamar no show de horrores. As emoções populares que atemorizavam o político francês se tornaram paixões populares de extrema direita que deveriam sobressaltar os que ainda vivem no universo onírico anterior.
De uns 50 anos para cá se conforma o assalto à tradição liberal democrática tocquevilliana. Essa operação, iniciada muito antes de Trump, tem a ver com Goldwater, Nixon, Reagan, Tea Party, os Clinton e muito mais. O lado mais extremista de um movimento extremista foi vocalizado e magnificado por Trump, o líder que, embora derrotado, continua no controle do partido de Lincoln. A partir da Casa Branca, o presidente continua recalcitrante, não entrega os pontos e foge para frente: impulsa o mais que pode a dinâmica de dilaceramento do corpo social. Kantorovicz diria que o corpo místico do rei começa a cheirar mal.
Há meio século o extremismo de direita saiu da caixa em que a mítica Pandora da Declaração de Independência o aprisionou. Hoje, tem vida e desenvolvimento orgânico próprios. Ao longo dos últimos anos, tornou-se fator de poder cuja vigência tem como medida o tempo geracional. Trump pode desaparecer; o trumpismo, não. Em outras palavras, mesmo que o até agora inconteste líder dos republicanos saia de cena (assassinato, doença, o que seja), o movimento que o precede e a ele sobreviverá dispõe das condições para ao menos se manter em pé de guerra, e para, nesse manter-se, bloquear o projeto restaurador enquanto aposta máxima do establisment democrata.
A ver como estará o sistema político, quatro anos mais. De permeio, 2022 já à vista como momento em que os EUA viverão talvez as ‘midterm elections‘ mais carregadas de nuvens negras em toda a sua história. Os EUA enfrentam uma fieira de momentos decisivos, outro sinal da amplitude e profundidade da crise geral.
Enquanto isso, a China se afirma como grande potência ascendente, a Rússia de Putin se fortalece, o Sul Global conhece explosões sociais e políticas cada vez mais frequentes, e a Europa, tal como os EUA, perde o rumo iluminista, fio há tanto esgarçado, mas hoje ainda mais reduzido à fraca forma do falso, àquilo que ainda busca justificar o que resta do mito fundador da hegemonia oitocentista europeia, o fardo do homem branco. O neoliberalismo triunfou enquanto o extremismo direitista que lhe é afim se estruturava. Desse triunfo emerge seu fracasso, cifrado na incerteza completa quanto ao futuro. Simultaneamente, criou os seus coveiros. Em meio à crise planetária, as velhas toupeiras regressam transmutadas.
Tempos interessantes, desejam os chineses aos que veem como adversário ou inimigos. Tempos interessantes viveremos, nós que não somos adversários nem inimigos. E deles, outra ironia da história desse desastre global no qual a pandemia funciona como poderosa lente de aumento, ninguém escapará. Nem mesmo os chineses.
*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.