Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*
Comentário sobre as teses do grupo “Economia para a prosperidade inclusiva”
Desde logo, é preciso saudar (com alguma ironia, confessa-se) o fato de que surgiu mais uma voz dissonante no interior da academia norte-americana formada por economistas, a qual está dominada de fato por um unitarismo avassalador. Trata-se, no entanto, de uma vela titubeante numa escuridão imensa. Aqui se vai mostrar em que consiste sem abdicar do direito de crítica severa.
E se começa pelo título: esclarece-se que os prefixos “pós” e “pré” não indicam aí posições históricas, mas posições no campo da Economia contemporânea que, de um modo ou outro, ainda insiste em se autodenominar de Economics – abjurando assim o termo Economia Política preferido pelos economistas clássicos. Faz-se referência assim a um grupo de economistas de centro-esquerda que se reúnem atualmente sob uma bandeira que eles próprios chamam de Economia para a prosperidade inclusiva (isto é, Economics for Inclusive Prosperity – ou EfIP). Como essa iniciativa se considera pós-neoliberal e como, ademais, reclama situar-se numa posição moralmente superior àquela mais comum na tradição na qual estão inseridos, será aqui designada por EPI.
Pode-se cortejar uma demanda de prosperidade inclusiva em face da prosperidade realmente existente, a qual tem sido reconhecida como cruelmente discriminatória. Entretanto, essa avaliação nada diz sobre as teorias que embasam tais políticas econômicas alternativas. Pois, o que importa é saber se tais teorias são verdadeiras ou falsas. Por exemplo, a teoria da utilidade marginal pode embasar uma proposta para melhorar a repartição da renda. Mesmo se essa melhora for muito desejável, não é admissível sustentar ainda essa teoria, pois, como se sabe desde Walras, a proposição de que as pessoas reais maximizam utilidade é falsa. A teoria neoclássica, ademais, como também se sabe, é logicamente inconsistente: define preços pelo equilíbrio, mas a dinâmica de tâtonnement não garante que o equilíbrio possa ser atingido.
A teoria neoclássica é mantida incólume no campo da Economia não por ideologia, pelo menos no sentido de uma crença que favorece determinados interesses. Na verdade, ela abre algum espaço para a manifestação de interesses diversos entre si. Mas por causa de um horror subconsciente ou mesmo inconsciente das verdades sobre o capitalismo que teoria do valor trabalho criada pelos economistas clássicos já revelara ao seu tempo. Tanto no que se refere à miséria e exploração dos trabalhadores, mas também no que se refere à anarquia e propensão às crises, ambas inerentes a esse sistema econômico. Prefere-se enxergar apenas, por exemplo, o progresso e a prosperidade que ele foi capaz de produzir pelo menos até recentemente.
E o caráter progressivo do capitalismo foi acentuado também por Karl Marx em meados do século XIX. Mas ele não deixou, por isso, de mostrar as suas contradições e suas tendências perversas. Sob esse sistema, a riqueza cresceu como nunca, mas o seu evolver deixou também um rastro de violência, de sacrifícios e pobreza sob a capa de um anti-humanismo de fato.
Um manifesto dessa associação foi publicado, em 2020, na revista nota 10 com distinção e louvor da American Economic Association [1], totalmente dominada pelo neoclassicismo. Aí se diz que a iniciativa EPI visa “prover uma completa visão de política econômica, a qual se apresenta como alternativa genuína ao fundamentalismo de mercado”. Este último, alerta, costuma ser identificado com frequência – mas erradamente, conforme diz –com o saber econômico contemporâneo como um todo; eis que há, segundo ela, mais coisas entre a terra e o céu no campo da Economia. Assim, é digno de nota já de início que os participantes dessa nova corrente continuam abraçando o saber tecnocrático que se abriga sob o rótulo de Economics.
A motivação dos autores desse manifesto é clara: “vive-se hoje numa era de desigualdade espantosa, sustentada por uma política oligárquica”. Ademais, subsistem, ainda segundo eles, “ineficiências em setor chaves como educação, finança, saúde, mídias sociais, assim como uma crise climática espetacular”. Ora, eles acreditam que tudo isso são problemas solúveis dentro da atual “economia de mercado”, apenas mudando as instituições dentro das quais ele sobrevive. Tais ineficiências, note-se, são apontadas e calculadas com base numa economia de mercado ideal – idealizada, platônica– que a própria teoria neoclássica supostamente fornece.
Deve ficar clara também a orientação pragmática vulgar dessa iniciativa; eles não querem revolucionar a teoria econômica tal como John M. Keynes na década dos anos 1930. Eles não desejam criar uma teoria mais geral e mais profunda; no caso desse autor, ele queria recuperar teoricamente o que todo mundo sempre soube, ou seja, que o capitalismo gera desemprego involuntário endogenamente.
A meta mantida por eles parece ser bem mais modesta: eis que há, segundo dizem, “um consenso quanto à necessidade de uma alternativa genuína – um conjunto de políticas que sejam tanto efetivas quanto inclusivas, que respondam às queixas legítimas sem semear divisões na sociedade”. E aqui transparece algo importante. O estado de insatisfação de grande parte dos trabalhadores norte-americanos, as grandes manifestações políticas recentes nos Estados Unidos, parecem ser as causas de fundo, pré-conscientes e até mesmo inconscientes, dessa iniciativa. Talvez eles temam a eclosão de uma revolução espontânea no coração da sociedade liberal-democrática que, como se sabe, é muito liberal, mas pouco democrática de fato.
De qualquer modo, eles reconhecem que a Economia está passando por uma crise de legitimidade; desde Milton Friedman e Friedrich Hayek, ela tem adotado sem dúvida uma pauta reacionária, alimentando inclusive políticas de ditadores totalitários. Ou a se aliando à políticos protofascistas. Em face disso, eles desejam trilhar um caminho diferente. Julgam também que é preciso conter a deterioração do próprio sistema econômico, cada vez mais iníquo.
Mas essa crise não é, segundo eles, da teoria econômica enquanto tal. Eis o que dizem: “muitas das ideias politicamente dominantes nas últimas décadas não encontram suporte nem em na boa teoria (sound economics) nem em boa evidência empírica (good evidence). “O neoliberalismo – ou o fundamentalismo de mercado, o fetichismo de mercado etc. – não é consistente com a aplicação da moderna economia, mas sim com sua perversão simplista e primitiva”. Se é assim, então, basta articular uma versão mais complexa e mais moderna da teoria recebida sem contestá-la em seus fundamentos. Será? Apenas introduzindo mais e mais testes empíricos? Ou não?
Bem, eles reconhecem que o discurso dos economistas está forjado sobre os alicerces da matemática e não da realidade econômica enquanto tal. Nessa esfera, sóo discurso que se qualifica pela forma – e não pelo conteúdo, e não pela veracidade – é visto como científico. Tais escolásticos modernos desprezam, em consequência, as análises qualitativas e os argumentos apresentados na linguagem comum. No rés do chão, os estudantes de Economia que se esforçam em aprender esse saber tecnonormativo menosprezam como formigas atarantadas a “economia do blábláblá”. Porém, os promotores dessa nova iniciativa – ou startup acadêmica – pretendem também “desmascarar os estereótipos antieconômicos que se encontram na esquerda”.
Ademais, eles reconhecem aquilo que Joseph Schumpeter chamou de “vício ricardiano”, ou seja, a prática de usar modelos simplificados para tirar conclusões – e fazer recomendações de política econômica – válidas supostamente para um mundo bem mais complexo. “Os economistas” – dizem – “ficam frequentemente enamorados de modelos que focam um conjunto restrito de variáveis (…) às expensas de complicações potenciais e implicações adversas”.
Porém, sem medo de cair numa mistificação patente principalmente para aqueles que não são economistas, afirmam que a “ciência econômica” é um saber descomprometido com a continuidade e o funcionamento do capitalismo: “apesar dos hábitos ruins, a economia contemporânea não é um mero peão dos mercados e dos interesses egoístas”. Eis, em resumo, que ela se preocupa também – segundo eles – com as “falhas de mercado”. Ora, é assim porque eles querem ajustar o mundo real supostamente imperfeito à perfeição de um mercado ideal que só existe na cabeça dos próprios economistas. E mesmo quando os economistas se preocupam com a repartição da renda e com o desemprego, eles o fazem em nome da preservação do capitalismo, ou seja, do sistema que cria inexoravelmente e sem parar a má repartição da renda e o desemprego.
A fragilidade da argumentação desses “inovadores” é realmente impressionante; eis que não hesitam em cair em fragrantes contradições performativas. Contudo, o cerne do problema com essa proposta e com sua “novidade” se encontra no modo de compreender a cientificidade em geral. Eles começam afirmando peremptoriamente que a “ciência da Economia nunca produz conclusões políticas pré-determinadas. De fato, todas as suas predições e conclusões são contingentes”. Será? Ora, essa última afirmação não é verdadeira: o saber tecnonormativo que se chama Economia consiste justamente em construir “castelos nas nuvens” – matematicamente, é claro – justamente porque deles saem para regular o mundo real exatamente os “éditos” que eles desejam que saiam, ou seja, políticas econômicas que favorecem o desenvolvimento do capitalismo – eventualmente sob o nome mais agradável de “prosperidade inclusiva”.
Uma prova? Os leitores dessa nota querem uma prova? É exatamente eles próprios que fornecem essa demonstração. Eis o que citam, aliás, com aprovação entusiasmada (sic!), de outro economista da mesma espécie tecnocrática a que pertencem: “atualmente, qualquer estudante brilhante de pós-graduação, escolhendo as suas suposições (…), cuidadosamente é claro, pode produzir um modelo consistente que gera qualquer recomendação política que ele favoreça”. Como, é isso mesmo?!Ora, isso que replicam não é mérito, mas, ao contrário, consiste justamente no problema.
Esse tipo de “cientificidade” pragmática, aliás, só pode dominar num mundo governado pelo dinheiro. Há alguma dúvida de que as próprias recomendações de política econômica são frequentemente vendidas por dinheiro – e, mesmo quando isso não acontece diretamente – há todo um sistema de incentivo que corrompe largamente a cientificidade em Economia. Há incomodados com essa situação? Há, mas são exceções e elas vivem em guetos acadêmicos dentro dos departamentos ou deles são expulsos assim que for possível. A maioria dos economistas prefere o abrigo confortável das instituições capitalistas.
Numa ciência real, os praticantes não podem escolher as suas suposições de modo ad hoc; eles têm de justificá-las junto à realidade, mantendo assim um compromisso estrito com a verdade mesmo se esta é difícil de encontrar, submetendo-se para tanto aos melhores valores humanos. As conjecturas científicas não podem ter o caráter de idealizações “heroicas” tal como ocorre no mundo atual dos economistas, verdadeiro puxadinho do moderno reino de Hades – deus da riqueza que governa o mundo em silêncio, mas com a maior crueldade sempre que necessária de seu ponto de vista.
Não se pode dizer, no entanto, que eles não sabem disso. Havendo compreendido a “cientificidade” em Economia como instrumental, como produto da razão instrumental e da manipulação do mundo e, portanto, descompromissada com supostos realistas, eles se preservam dizendo que a “pesquisa em Economia se tornou significantemente mais empírica e aplicada desde os anos 1990”. Só agora! Só quando se tornaram disponíveis os grandes bancos de dados! O empirismo pode salvar as idealizações construtivas que melhor convém aos propósitos prático-utilitários dos economistas?
Bem, segundo eles, “isso é importante porque a busca sistemática de evidência empírica é um dispositivo que contraria as prescrições políticas ideológicas”. Ora, isso também não é verdade. E isto eles também sabem já que colocam numa nota de rodapé que as evidências empíricas nunca são decisivas. Pois, o que é realmente decisivo é um espírito crítico desassombrado que não cede diante de qualquer sacrifício para dizer a verdade e que despreza o poder do dinheiro e o seu cortejo de vantagens e prêmios.
No manifesto EPI aqui resenhado não há uma só referência às classes sociais e à distribuição dita funcional da renda. Há apenas referências à má repartição da renda recebida pelas pessoas e famílias e ao desemprego, as quais, entretanto, não chegam a repetir ao que se encontra, por exemplo, em John Stuart Mill e em John Maynard Keynes – pois não têm a mesma franqueza e a mesma força deles.
Como se sabe, no prefácio dos Princípios de Economia Política e Tributação, David Ricardo escreveu: “em diferentes estágios da sociedade… as proporções do produto total… destinadas a cada uma dessas classes, sob os nomes de renda, lucro e salário, serão essencialmente diferentes… determinar as leis que regulam essa distribuição é a principal questão da Economia Política”. Ora, é exatamente daí que surgiu o título dessa nota: pós-neoliberais, mas pré-ricardianos. Mas talvez seja justamente nesse tipo de enfoque, o qual fora adotado mesmo por economistas políticos de direita na época clássica, que eles veem a origem dos “estereótipos antieconômicos encontrados na esquerda”!
*Eleutério F S Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Complexidade e práxis (Plêiade).
Nota
Naidu, Suresh, Rodrik, Dani; e Zucman, Gabriel – Economics after neoliberalism: introducing the EfIP Project”. “Papers and Proceedings”, American Economic Association, 2020, p. 366-371.