Por EDUARDO PAPA*
Em todos os órgãos do governo encontramos militares ocupando cargos para os quais não tem nenhum preparo
Ao cabo de dois anos do governo Bolsonaro, gostaria muito de ver uma nova pesquisa dessas que aponta o conceito da população quanto a diversas categorias funcionais. Minha curiosidade é saber como anda o prestígio dos militares após a chegada da “nuvem de gafanhotos verde oliva” ao governo federal. Ninguém pode negar que vivemos em um “governo militar”, nenhum país da América Latina, quiçá do mundo tem tantos ministros militares dentro do Palácio do Planalto, todos quatro, um ainda na ativa inclusive, como o general paraquedista que comanda a tropa de ocupação no Ministério da Saúde. São milhares de militares das Forças Armadas e auxiliares encastelados nos cargos comissionados e o cordão cada vez aumenta mais. Quem sabe trazendo a impressão que trocamos o tão propalado “Partido da Boquinha” pelas “Forças Armadas da Boquinha”?
As patuscadas do almirante fundamentalista da ANVISA, as declarações estapafúrdias do ministro terraplanista do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República – GSI e do próprio vice-presidente, a visível incapacidade e comprometimento político do Ministro da Saúde – o grande especialista em logística que tem que ordenar a ampliação da validade de reagentes químicos que não conseguiu distribuir e continua defendendo a cloroquina -, o papel patético do Almirante do Ministério das Minas e Energia divulgando sucessivos prazos furados para o fim do apagão no Amapá. Enfim, uma atuação medíocre e desastrosa para a nação, deixando claro como água que essa gente não devia estar onde está.
Em todos os órgãos do governo encontramos militares ocupando cargos para os quais não tem nenhum preparo, no lugar de técnicos com a formação adequada, muitos com experiência comprovada escorraçados por perseguição ideológica. Sim, pois a justificativa para essa militarização é contar com “gente de confiança”, o que significa o alinhamento incondicional e a subordinação de sua atuação aos princípios ideológicos que emanam da presidência e, por consequência, a função primeira dessa gente de confiança é caçar e expurgar de seus domínios qualquer um que não esteja devidamente afinado com a cartilha oficial.
Está claro também que essa gente de confiança executa esse papel lamentável para engordar seus contracheques, empregar parentes e amigos, enfim locupletarem-se com os cargos públicos, não é crível que os milhares de militares guindados ao poder, estejam todos imbuídos da missão sagrada de combater o comunismo em defesa da família brasileira. Pode ser que um ou outro acredite nessa história da carochinha, mas a maioria veio mesmo atrás de mamar nas fartas tetas da República. E a nação bestializada assistindo a farra: os milhões de desempregados, os trabalhadores que perderam direitos sociais, os jovens que não encontram oportunidades, os funcionários públicos desvalorizados, a população submetida à extorsão de milícias paramilitares, todos acompanhando a volta do tempo do “amigo do gandola”.
Penso que quando sairmos desse túnel escuro, teremos que rediscutir o papel de nossas Forças Armadas. Por que um país como o nosso, que não tem hostilidade com vizinhos, que há dois séculos não entra em guerra tem que ter o décimo quinto exército do mundo? Por que nosso orçamento para a defesa é maior do que o do Estado de Israel, que vive em guerra? Por que em 2019 Bolsonaro e Mandetta remanejaram R$ 22 bilhões do SUS para um programa de construção de navios de guerra? Para que os 330 mil homens armados senão para o comandante do Exército ameaçar as instituições democráticas, como fez o general Villas Boas, depois generosamente aquinhoado e coberto de agradecimentos pelo governo?
A vocação intervencionista e o sentimento de ter um direito de tutelar a sociedade permeiam o Exército brasileiro desde sua fundação na Guerra do Paraguai. Foi preciso apenas a senha dada pela abolição, para os militares iniciarem uma rocambolesca sucessão de quarteladas, digna das Repúblicas de Bananas da América Central, iniciada com Deodoro, em 1889, e terminada por Floriano, em 1894, com direito a duas Revoltas da Armada, estado de sítio e o pacote completo. Nem mesmo o concerto da oligarquia regido por Prudente de Moraes e Pinheiro Machado, que mandou os soldados de volta para o quartel, diminuiu o apetite pelo poder dos militares. Com os generais apascentados foi a vez dos tenentes, então envolvidos com a messiânica missão de combater a velha e carcomida política, que promoveram motins armados, até que um foi bem sucedido em 1930, levando Getúlio ao poder.
O velho caudilho conseguiu por algum tempo manter a fidelidade da tropa, talvez como ele mesmo declarou, promovendo os tenentes a capitães. Fora o proscrito Prestes, que amargou horrores nas masmorras do Estado Novo, os “revolucionários” foram todos contemplados com posições no novo governo. O caso mais emblemático foi Juarez Távora, verdadeiro vice rei do Nordeste. Mas o Brasil foi à guerra e tudo mudou. Os generais, que eram abertamente simpáticos ao Eixo e não perdiam oportunidades de manifestar sua admiração pela Alemanha de Hitler, foram cooptados, de maneira extremamente eficiente, pelo lado americano em um processo que continua até hoje, quando nossas Forças Armadas nada mais são que uma força secundária integrada ao comando sul dos EUA.
Após terem deposto Vargas, os comandantes militares estiveram envolvidos em várias tentativas de golpe, apoiados e financiados pelo governo norte-americano, até que em 1964 deu certo. Nesse momento, as Forças Armadas se tornam um elemento monolítico. O expurgo de militares nacionalistas e esquerdistas da Forças Armadas – e não foram poucos, foi a classe mais atingida pelos Atos Institucionais – abriu o caminho para hegemonia de um pensamento baseado na ideologia da segurança nacional, no dever de lutar contra o comunismo, alinhado com os EUA na Guerra Fria, em defesa de valores religiosos e patriarcais, na justificação da violência para combater os inimigos internos, subversivos da ordem. Enfim, o que continua por aí entre nós, justificando a mortandade das operações policiais nas favelas, a opressão de minorias, a violência contra mulheres e a leniência do judiciário com tudo isso.
Comandaram da caserna duas décadas de uma ditadura sanguinária, que atrasou em um século o país, derrubaram Jango escandalizando o povo com uma inflação de 90%, que entregaram com 1350%, e o país de joelhos ante o FMI, reduziram o povo à miséria para transformar o país em paraíso dos grandes conglomerados internacionais, e saíram de fininho. Alguns mais extremados, sem remorsos de promover atentados à bomba, matando e ferindo pessoas, mas mesmo esses se acomodaram a uma anistia que os eximiu de responsabilidades. Muitos foram para a área de segurança pública e privada, alguns foram para dos esportes, outros foram simplesmente jogar vôlei na praia, mas a ideologia da segurança nacional continuou fortemente arraigada entre os eles. Em que pese a postura legalista assumida pelos comandantes do Exército desde então, basta ler o que escreve o Clube Militar para constatar o fato.
Parte integrante e ativa da Guerra Híbrida do Pentágono, que derrubou o governo brasileiro em 2016, tiveram que aceitar no processo um papel coadjuvantes, assistindo e apoiando o show das primas donna do Lawfare, Moro e Dallagnol. Com a ascensão de Bolsonaro nas pesquisas divisaram uma janela de oportunidade para recobrar o prestígio e poder perdidos e entraram de cabeça na campanha do capitão. Venceram a batalha e se dispuseram com avidez a saquear o campo dominado.
Garantiram aumentos salariais e a manutenção de privilégios funcionais, enquanto a maioria do funcionalismo, com seus salários congelados, via seus direitos a caminho de serem esbulhados. Adonaram-se velozmente de um importante naco dos cargos e das verbas federais. Encontraram na “nova direita” norte americana, importada pelo bolsonarismo pelas redes digitais, um rejuvenescimento das velhas ideias racistas, machistas e preconceituosas dos velhos tempos da ditadura, que passam a romantizar como modelo de felicidade e segurança, com os velhos e tradicionais valores cristãos, ânimo que faltava para a ideia de assumir poderes ditatoriais, começam a circular entre a “ala militar” do governo.
A hipótese de um golpe nunca esteve descartada pelos militares, objetivo manifesto e objeto da militância do Presidente e de sua prole. Foi, e certamente é ainda, considerada pelos militares, ou o que fazia o comandante da Forças Armadas sobrevoando em helicóptero militar com o presidente uma manifestação que pedia a ditadura militar? Treinando para ser o Papai Noel na festa de Natal do Exército por acaso? Claro que não, entretanto o sonho delirante dessa “gente de confiança” se tornou um terrível pesadelo a roubar a tranquilidade do sono. Perderam a chance que tiveram, talvez lá no auge da pandemia, com as milícias das PMs acossando os governadores, conseguissem um voo de galinha, mas hoje as condições geopolíticas internacionais inviabilizam completamente um golpe manu militari. Bolsonaro é um anão diplomático e o Brasil está completamente isolado internacionalmente.
E agora José? Como vai ser depois do Natal o governo dos generais? Vão ter uma catástrofe econômica, social e sanitária no colo, assediados pelos políticos dos velhos partidos de direita, dispostos a cobrar caro por seu apoio e ver pela frente uma encruzilhada difícil de enfrentar. Ou tentam manter popularidade para terminar o governo com alguma aceitação, ignorando a lei do teto de gastos e perdem o apoio do “mercado”, que aqui parece disposto a raspar o tacho, sem deixar uma migalha sequer para o populacho, ou apostam na continuidade de Guedes e sua política, com a consciência de terem que enfrentar fortes movimentos da população nas ruas após a pandemia. Eis a sinuca de bico em que se meteram e que, na minha opinião, não possuem condições de superar, a maioria sequer de compreender.
As fortes emoções que temos pela frente ninguém pode antecipar, mas o que quero é chamar a atenção para que, após superar esse infortúnio que passamos, quando forças democráticas voltarem a conduzir o país, a lição não seja esquecida e a sociedade tome medidas para afastar definitivamente esse fantasma do golpe militar, tanto no plano legal, com a introdução de dispositivos que impeçam com severas punições a atuação de militares da ativa na política, como fez nosso vizinho Uruguai e também no plano policial, com a destruição das milícias paramilitares acoitadas e à serviço da extrema direita. Do contrário, tentando fugir do destino de virar uma Venezuela, acabamos nos transformando em uma Colômbia.
*Eduardo Papa é jornalista, professor e artista plástico.
Publicado originalmente no Portal Disparada.