Por MARIANA MAZZUCATO, HENRY LISHI LI e ELS TORREELE*
Desenvolver vacinas para as pessoas, não para lucrar
Anúncios recentes sobre a eficácia comprovada em testes de vacinas para a Covid-19 fizeram com que a esperança de um retorno à normalidade se colocasse à vista. Os dados preliminares das novas vacinas de RNA mensageiro da Pfizer/BioNTech e da Moderna são extremamente encorajadores, o que sugere que sua aprovação para uso emergencial esteja a caminho. E notícias mais recentes sobre a eficácia (ainda que em uma taxa um pouco menor) da vacina da AstraZeneca e da Universidade de Oxford alimentaram o otimismo em relação ao surgimento de ainda mais avanços.
Em teoria, a chegada de uma vacina segura e efetiva representaria o começo do fim da pandemia de Covid-19. Na realidade, não estamos sequer no fim do começo da entrega do que é necessário: uma “vacina popular” que seja distribuída de maneira igualitária e gratuitamente disponível a todos que dela precisam.
Que fique claro, o esforço para criar vacinas em questão de meses merece elogios. A humanidade realizou um salto tecnológico monumental em direção ao futuro. Mas seu trampolim foram décadas de investimento público e massivo em pesquisa e desenvolvimento.
A maioria das vacinas em destaque fortalece as defesas do sistema imune contra a proteína viral “spike”, uma estratégia possibilitada por anos de pesquisa no Instituto Nacional de Saúde dos EUA. De forma mais imediata, a BioNTech recebeu 445 milhões de dólares do governo Alemão, e a Moderna recebeu 1 milhão de dólares da Coalition for Epidemic Preparedness Innovations e mais de 1 bilhão de dólares da Autoridade Biomédica de Pesquisa Avançada e Desenvolvimento dos EUA e da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada da Defesa norteamericana. A vacina da AstraZeneca-Oxford recebeu mais de 1 bilhão de libras esterlinas em financiamento público.
Mas, para que os avanços tecnológicos sejam traduzidos em Saúde para Todos, inovações criadas coletivamente devem ser governadas pelo interesse do público, não para o lucro privado. Isso é especialmente verdade quando se trata do desenvolvimento, da produção e da distribuição de uma vacina no contexto de uma pandemia.
Nenhum país, agindo sozinho, pode resolver esta crise. É por isso que precisamos de vacinas que sejam disponibilizadas gratuitamente e universalmente. No entanto, o atual sistema de inovações prioriza os interesses dos países ricos sobre aqueles do resto do mundo, e os lucros sobre a saúde pública.
O primeiro passo em direção a uma vacina popular é garantir a total transparência dos resultados dos testes clínicos, o que permitiria avaliações independentes e rápidas sobre sua segurança e eficácia. A publicação de dados escassos e preliminares por meio de comunicados de imprensa é direcionada aos mercados financeiros, não à comunidade de saúde pública. Tal prática cria um mal precedente. Enquanto o preço das ações de indústrias farmacêuticas explode, os profissionais de saúde e o público são forçados a questionar os resultados reportados. Conforme mais detalhes sobre as falhas no projeto e na implementação dos testes clínicos para a vacina da AstraZeneca-Oxford emergem, o mesmo acontece com as demandas por uma ciência aberta e pelo compartilhamento imediato dos protocolos e dos resultados.
Além disso, questões críticas sobre as principais vacinas candidatas continuam sem resposta. Atendendo à pressão política e econômica em países ricos, as companhias farmacêuticas estão apressando suas vacinas candidatas. Para tanto, elas projetaram seus testes clínicos de fase 3 para entregar o relatório positivo o mais rápido possível, em vez de enfrentar questões mais relevantes, como se a vacina é capaz de previnir infecções ou apenas protege o indivíduo da doença. Também não está claro quanto tempo a proteção durará; se a vacina funciona igualmente em jovens e idosos, ou em pessoas com comorbidades; e como as principais candidatas se comparam entre si (algo crítico para o projeto de estratégias efetivas de vacinação).
Mais ainda, interesses nacionais – especialmente aqueles dos países desenvolvidos – continuam sendo o fator dominante na liberação das vacinas. Ainda que a plataforma internacional de compra e distribuição COVAX represente um importante passo adiante, seu impacto tem sido ofuscado pelos massivos acordos bilaterais de pré-compra de países ricos que conseguem financiar a aposta em múltiplas vacinas. Por exemplo, países ricos já compraram cerca de 80% das doses das vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna que serão disponibilizadas no decorrer do primeiro ano.
No total, tais países já reivindicaram 3.8 bilhões de doses de diferentes fabricantes de vacinas, em comparação com 3.2 bilhões (incluindo cerca de 700 milhões de doses para a COVAX) para o resto do mundo. Em outras palavras, países de alta renda compraram antecipadamente doses suficientes para cobrir toda sua população por diversas vezes, deixando o resto do mundo com potencialmente menos do que o suficiente para cobrir até mesmo suas comunidades de maior risco.
Ao mesmo tempo, como a corrida pelas vacinas está focada primariamente em mercados Ocidentais, algumas candidatas são dificilmente viáveis fora do contexto de um país desenvolvido. A vacina da Pfizer/BioNTech deve ser mantida a -70ºC, uma temperatura menor do que a de um inverno Antártico. A distribuição desta vacina produzirá desafios logísticos caros e complexos, especialmente para países de baixa e média renda. Por mais que outras candidatas – como a vacina da AstraZeneca-Oxford – sejam estáveis em temperaturas mais altas, é notável que tais características gritantes da discriminação mercadológica estarão inscritas no primeiro produto a atingir a etapa de aprovação.
Para além do interesse nacional, está escondido o problema de interesses privados ainda mais estreitos, que surgem de um modelo biofarmacológico de inovação excessivamente financeirizado. O modelo de negócios para o desenvolvimento de futuras vacinas já esta sendo expandido, agora que a pandemia revelou-se uma potencial oportunidade para os investidores. Mas, enquanto eles se beneficiam de ações que decolam, de ganhos de capital altíssimos, e do dumping de ações no mesmo dia em que são anunciados resultados preliminares promissores de testes clínicos, entregar uma vacina popular tornou-se uma preocupação secundária.
A crise da COVID-19 é um teste perfeito para a possibilidade de uma estratégia de inovação mais orientada pela saúde publica prevalecer nos anos que virão. Enquanto a Pfizer insiste no modelo de maximização de valor para os acionistas, a AstraZeneca ao menos se comprometeu com não lucrar com sua vacina “durante a pandemia”. Contudo, apesar de todo o investimento público por trás destas inovações, o processo continuará sendo opaco, deixando-nos a duvidar se a AstraZeneca realmente está pronta para priorizar a saúde pública sobre os lucros e oferecer sua vacina a preço de custo.
Enquanto as notícias recentes sobre a vacina trouxeram esperança, elas também expuseram o modelo de negócios quebrado da indústria farmacêutica, pondo em cheque o perspectiva da entrega de uma vacina popular e a conquista de Saúde para Todos. O business as usual poderá até permitir que sobrevivamos a esta crise. Mas há uma maneira melhor de se fazer as coisas. Antes que a próxima pandemia chegue, devemos reconhecer que as vacinas são bens comuns globais de saúde, e começar a reorientar o sistema de inovação em direção a parcerias público-privadas simbióticas, dirigidas pelo interesse público.
O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, pode ter prometido um “retorno à normalidade”, mas a verdade é que não há mais volta. O mundo está passando por transformações fundamentais, e as ações tomadas nos próximos anos serão críticas para o estabelecimento das bases de um futuro sustentável, seguro e próspero.
*Mariana Mazzucato é professora de economia na Universidade de Sussex (EUA). Autora, entre outros livros, de O Estado empreendedor(Companhia das Letras).
*Henry Lishi Li é pesquisador na University College London (UCL).
*Els Torreele é pesquisadora visitante na University College London (UCL).