Por PAULO CAPEL NARVAI*
Os valores e crenças do bolsonarismo têm papel fundamental no descaso no combate à COVID-19. Não se trata apenas das muitas trapalhadas do governo federal
Fernando Haddad alertou, recentemente em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo (Terra de Trumps), para o fato de que o discurso de oposição ao negacionismo de Bolsonaro sobre a pandemia da COVID-19 e as possibilidades de vacinas, pode “passar a falsa impressão” de que quem o faz, sendo gestor, “esteja fazendo um bom trabalho, o que não é verdade”, referindo-se ao governador do estado e ao prefeito da capital paulista. E citou dados do estado e da capital como sendo “incontroversos”, pois os mortos nessas localidades “atingiram 909 por milhão e 1.131 por milhão, respectivamente”.
Haddad endossou a crítica (Plano São Paulo deve ser revisto) que vê nesses indicadores um “problema de gestão”, pois “São Paulo, cidade e estado, não adotaram as medidas que permitiram a países como China, Vietnã, Austrália e Nova Zelândia obter resultados sanitários e, consequentemente, econômicos satisfatórios: o protocolo TRIS (testagem, rastreamento e isolamento com suporte)”. Prevendo reações, antecipou-se: “para quem considera a solução utópica, basta conferir os resultados da cidade que adotou [o TRIS]. Araraquara, governada pelo PT, tem em torno de 250 mortes por milhão”.
Foi o que bastou para acusarem o ex-Prefeito paulistano de distorcer números e manipular indicadores, utilizando-os para sustentar críticas que teriam fundamento apenas político, por divergir de Doria e de Bolsonaro. Não bastaria, segundo esses críticos, reproduzir, com outras palavras, acusações que também aparecem nas redes sociais como “É um genocídio”; “Bolsonaro é um homicida”, dentre outras expressões. Um dos críticos de Haddad afirmou que ele e o PT “continuam tratando os eleitores como retardados, na convicção de que a retórica pode substituir resultados”. O próprio Bolsonaro rebate críticos de que ele não dá bons exemplos acusando-os de “idiotas, imbecis”.
Genocida, homicida, assassino, criminoso – respondem os críticos.
São palavras duras, de ambos os lados. Haveria, porém, alguma base para isso, para além dos aspectos políticos e ideológicos que motivam seu emprego? Não seriam esses termos exagerados? Seriam “retardados, idiotas, imbecis” os eleitores do PT? Seria Bolsonaro um homicida?
Ninguém desconhece as ameaças que fez no programa Câmera Aberta (TV Bandeirantes, maio de 1999), e reiterou quando candidato, de “matar uns 30 mil” promovendo “uma guerra civil”. Disse no Acre estar disposto a “fuzilar a petralhada” e “acabar com o comunismo” e a corrupção no Brasil, supondo ser ele uma espécie de campeão das liberdades. Se quis mesmo isso, não conseguiu até o momento, com as denúncias de corrupção adentrando o partido que o elegeu e até membros de sua família.
Há, porém, muitos modos de matar. As atitudes de Bolsonaro e ações e omissões do seu governo revelam isso, ainda que não fique claro para muitos que o apoiam, supondo-o “vítima da oposição” – para não reproduzir o meme de que “a culpa é do PT”.
As decisões de Bolsonaro – como é amplamente reconhecido – decorrem da desconsideração de conhecimentos científicos acerca do novo coronavírus e das características epidemiológicas da pandemia. Mas é necessário enfatizar que elas se assentam, sobretudo, na ideologia, ou seja, nos valores e crenças que se poderia identificar como ‘bolsonarismo’. Trata-se de um fenômeno que, para muitos, é mais abrangente e profundo do que o próprio governo de Bolsonaro. Para vários de seus críticos este é, aliás, o problema fundamental, uma vez que não se trata apenas das muitas trapalhadas do governo federal.
Na pandemia, o ‘bolsonarismo’ mata sem disparar um só tiro – ainda que os defensores de Bolsonaro acusem de exagero, de “viés ideológico”, afirmar que Bolsonaro seria um “genocida”, “homicida”. Seria irresponsável, dizem, acusá-lo de, deliberadamente, matar pessoas.
É certo que a pandemia é um fenômeno complexo, sob todos os pontos de vista e que não diz respeito, no Brasil, apenas ao governo federal. Estados e municípios também têm responsabilidades sobre a evolução da COVID-19 entre nós.
Mas os dados sobre a pandemia indicam que não há exagero e que o ‘bolsonarismo’, como expressão de crenças e valores (uma ideologia, ainda que se admita restrições ao uso desse termo para caracterizar esse fenômeno), é responsável por mortes decorrentes de COIV-19.
É o que busco demonstrar a seguir, a partir de dados disponíveis para Araraquara e outros 18 municípios paulistas que apresentam características socioeconômicas que permitem comparações estatísticas, disponibilizados pelo ‘Observatório COVID-19 BR’ (https://covid19br.github.io/), pelo Tribunal Superior Eleitoral (https://www.tse.jus.br/), Ministério da Saúde (https://egestorab.saude.gov.br) e Fundação SEADE (https://iprs.seade.gov.br/) e IBGE (https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/sp.html).
Araraquara, o município citado por Fernando Haddad, conta em 2020 com 238.339 habitantes. Nas duas primeiras décadas deste século, vem sendo governado pelo PT (2001-2008; 2017-2020) e PMDB (2009-2016).
Foram considerados os dados sobre óbitos por COVID-19 registrados até o dia 9/12/2020 nesses municípios, padronizados e controlados por idade, com base na proporção de habitantes com 60 anos ou mais de idade, porte demográfico (foram incluídos municípios com população entre 150 mil e 400 mil habitantes, conforme a estimativa populacional do IBGE) e características socioeconômicas (segundo o IPRS, Índice Paulista de Responsabilidade Social, incluindo os classificados pelo IPRS como “Dinâmicos” e excluindo-se os demais agrupamentos). O município de Araraquara foi, assim, avaliado comparativamente com os outros 18 municípios que apresentavam mais similaridade demográfica, socioeconômica e de desenvolvimento humano com aquela cidade. Análises mais abrangentes, com a inclusão de todos os municípios paulistas e emprego de métodos estatísticos compatíveis, são necessárias para aprofundar a compreensão do tema e superar restrições inerentes à abordagem feita em carácter apenas preliminar neste artigo.
As figuras 1 e 2 mostram a mortalidade atribuída à COVID-19 em relação à cobertura da atenção básica à saúde (AB) (Figura 1) e em relação à porcentagem de eleitores que, em cada município, escolheu votar em Bolsonaro no primeiro turno das eleições-2018 (Figura 2).
Observa-se na Figura 1, pela posição do município de São Caetano do Sul (SCS) no gráfico, que não basta às cidades contar com boa cobertura de AB. No caso específico de SCS, situado na região metropolitana de São Paulo, deve-se assinalar a cobertura abrangente de planos privados de saúde, o que requer cautela na interpretação dos dados sobre AB do setor público, informados pela Prefeitura ao Ministério da Saúde. É indispensável, porém, considerar o papel estratégico tanto do modelo de atenção quanto dos padrões de gestão do sistema de saúde. Eles devem ser compatíveis e dar suporte a práticas adequadas de vigilância em saúde, não se restringindo a atender doentes.
O fato de Marília contar com uma atenção básica bem organizada, abrangente e consolidada há várias décadas, deve ser levado em conta para compreender a baixa mortalidade relativa por COVID-19 naquela cidade. Nesse aspecto, nota-se na Figura 1 que ainda que a cobertura da atenção básica seja inferior à média para o estado de São Paulo, Araraquara e São Carlos apresentam mortalidade comparativamente mais baixa em relação aos demais municípios. Cabe admitir, portanto, em sintonia com a condição de Marília, que as características da gestão e os modelos de AB nesses municípios podem ter contribuído, de alguma forma, para suas posições relativas no cenário da pandemia no estado de São Paulo.
Mas a variável que, aparentemente, é a mais consistentemente envolvida nos padrões de mortalidade por COVID-19 nesses 19 municípios é a porcentagem de votos obtidos pelo então candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, no primeiro turno das eleições de 2018. Esta variável é admitida, nesta análise, como um indicador válido para o fenômeno ideológico do ‘bolsonarismo’, segundo o qual, mais do que votar e defender esse líder político, seus adeptos compartilham o conjunto de crenças e valores que o atual presidente vem assumindo publicamente, e que se expressam como negacionismo quanto aos riscos produzidos pelo novo coronavírus (o SARS-CoV-2) e, em decorrência, a desconsideração das medidas protetivas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e outros organismos científicos nacionais e internacionais. O desrespeito aos cientistas e o descrédito à ciência, simultaneamente às reiteradas recomendações de práticas místicas, orações e procedimentos médicos sem fundamento em evidências científicas, conformam um perfil de chefe de Estado anacrônico, populista e patogênico, coroado por uma extemporânea e inusitada pregação antivacinista que, dentre outras consequências nocivas, ameaça gravemente o Programa Nacional de Imunizações (PNI), um dos êxitos sanitários brasileiros, reconhecido e aplaudido mundialmente.
Reitero que o voto em Bolsonaro no primeiro turno, quando os eleitores tinham várias opções no amplo leque de coligações partidárias, pode ser admitido como um indicador válido desse perfil ideológico, cuja adoção implica seguir com fidelidade as orientações do líder.
A Figura 2 mostra que, ao seguir o líder, seus eleitores nesses 19 municípios adotaram atitudes e práticas que contribuíram para agravar a disseminação da pandemia nos seus territórios e que estão na origem das mortes que configuram o gráfico. Admite-se ainda que, embora com as conhecidas limitações (preventivas e terapêuticas, dadas as características da COVID-19), a organização e atuação do SUS nesses municípios pode ter contribuído para atenuar danos, sempre condicionando essa possível efetividade às referidas características do modelo de atenção básica e de gestão pública. Decerto que, oportunamente, análises mais robustas devem ser produzidas para confirmar ou rejeitar a hipótese que apresento neste artigo.
Os 19 municípios podem ser agrupados em quatro clusters. Observa-se que três desses quatro aglomerados correspondem aos municípios em que as porcentagens de votos em Bolsonaro no primeiro turno se situam acima da porcentagem obtida pelo candidato no estado de São Paulo. Desses três, um cluster reúne municípios que apresentam mortalidade relativamente muito alta e outro aglomerado é constituído pelos municípios que apresentam alta mortalidade relativa. O município de Marília se destaca pelo fato de ter apresentado expressiva votação em Bolsonaro (66,8%) no primeiro turno e, ainda assim, apresentar mortalidade comparativamente baixa em relação aos demais analisados, conforme mencionado.
O aglomerado composto pelos municípios de Araraquara e São Carlos é o único em que as porcentagens de votos em Bolsonaro foram inferiores à obtida pelo candidato no estado paulista (51,6% e 52,9%, respectivamente). Esses municípios registraram também as menores taxas de mortalidade por COVID-19 no conjunto analisado. Não votar em Bolsonaro e, portanto, recusar as crenças e valores por ele disseminados constituiu-se, nesses municípios, em importante fator de proteção, evitando óbitos. Registre-se que todos os 19 municípios apresentaram taxas de mortalidade por COVID-19 inferiores às registrados para o Estado de São Paulo.
Não é exagero, portanto, afirmar que o ‘bolsonarismo’ mata e que isso, infelizmente, por suas características ideológicas, não será resolvido juntamente com a solução política que os brasileiros derem, no momento apropriado, ao atual ocupante do Palácio do Planalto, pois trata-se de fenômeno cujas raízes mais profundas têm de ser identificadas, compreendidas e superadas em nossa formação social.
Por último, uma palavra sobre São Carlos, cujo atual prefeito foi reeleito justamente pelo PSL, o partido responsável por colocar Bolsonaro no mais alto posto da República: os dados de São Carlos não devem levar a conclusões apressadas, que busquem equivaler o PT (governo em Araraquara) ao PSL. São Carlos, cabe assinalar, foi governada pelo PT de 2001 a 2012 e pelo PSDB de 2013 a 2016. O atual prefeito (quem diria?), foi eleito em 2016 pelo PSB.
Todos esses anos deixaram, decerto, suas marcas no SUS de São Carlos, cujos efeitos se expressam nos dados sobre mortes decorrentes da pandemia. Se é para “ver” o PT nos dados de Araraquara, como fez (a meu ver, corretamente) Fernando Haddad, pode-se dialeticamente “vê-lo” também em São Carlos, ainda que o governo local tenha sido compartilhado com o PSDB e o PSB. Números, dados, indicadores quantitativos, por vezes, escondem o que deveriam revelar. O que o SUS é hoje, em cada município brasileiro, não foi construído em 2020, mas ao longo de vários anos.
Não se trata, portanto, de idiotia, imbecilidade ou retardo mental. Bem ao contrário: o ‘bolsonarismo’ é sim uma ideologia que mata. Pelo menos é isto o que a ciência está demonstrando, gostem ou não da ciência os adeptos de Jair Bolsonaro.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.