Lula no tempo certo

Imagem: Vincent Tan
image_pdf

Por TARSO GENRO*

O tempo de dar à segurança pública e à segurança do Estado a importância devida, não pode ser um tempo longo

Maquiavel no seu Livro VII do Da arte e da guerra diz que os príncipes italianos não compreendiam a necessidade de fazer as coisas no tempo certo “antes de experimentar os golpes dos guerreiros ultramontanos”. Imaginavam que o exercício de uma “resposta mordaz” e os “discursos de sutileza” poderiam lhes dar segurança para um mando sem sobressaltos, sem entender que poderiam se tornar “presa do primeiro assaltante.” E foi assim – prossegue o grande teórico da política moderna – “que três dos mais poderosos Estados italianos foram várias vezes pilhados e saqueados.” Penso que Lula, com esta viagem aos EUA, comprova que está fazendo as coisas no tempo certo, o que me faz lembrar que o tempo de dar à segurança pública e à segurança do Estado a importância devida, não pode ser um tempo longo.

No território Yanomami estão presentes vários problemas da globalização financeira do mundo, que, se é verdade que não foram previstos na estrutura do Estado – para serem atacados dentro dos limites do Direito Internacional e da nossa legalidade interior – não quer dizer que não existam. E não quer dizer que deixem de ser um poderoso acúmulo de fatos, que obrigam a reorganização das nossas defesas, em torno da soberania territorial nacional e da própria segurança do país: Segurança nacional, soberania territorial, segurança pública e segurança do Estado, nas suas funções de polícia e de proteção de direitos, estão ali vinculadas de forma plena e incontornável, até chegarem ao estatuto de naturalização de um genocídio.

No espaço do território Yanomami estão os grandes esquemas de depredação das condições ambientais, do tráfico de drogas, violação dos direitos das comunidades originárias, convivendo com a organização de regimes escravocratas de exploração do trabalho, tráfico de pessoas e animais silvestres, onde transita a circulação ilegal de vultuosas somas de dinheiro, rapidamente destinadas a circuitos “legais”, em transações internacionais obscuras, suspeitas ou simplesmente criminosas.

O contrabando e o roubo de riquezas naturais ganharam, a partir do garimpo estimulado por Jair Bolsonaro, cada vez mais espaço naquele território da nossa soberania, ocupado ilegalmente por grupos mafiosos – nacionais e internacionais – que instrumentalizam pessoas comuns para serem vanguarda de um processo de acumulação privada, sem lei e sem fronteiras. Na terra, entre o delírio da riqueza e a brutalidade dos bandeirantes da pós-modernidade, está o espírito do capitalismo periférico liquidando os Yanomamis. Cesare Pavese diria, vendo os olhos das meninas e meninos mortos, que às vezes “dá vontade de devolver o bilhete de entrada no universo”!

A penetração da “razão instrumental” – exercício de poderes sem abrigo em valores da comunidade política – no âmbito do sistema de poder moderno, já foi estudada de forma concreta por Maquiavel. Num exercício arriscado para atualizar seus conceitos pode-se dizer que aquela mesma “razão instrumental” – entrevista pelo veneziano – foi fortalecida e atualizada pela coerção dos organismos financeiros globais sobre o Estado, desnudando o déficit de organização da democracia liberal. Assim, mostrando como ela tem sido falha em atualizar os mecanismos de poder nacional estruturados na Constituição Federal de 1988, ainda sob o impulso da “guerra fria”.

O controle do território, a segurança do Estado e a segurança pública, compõem hoje a mesma ordem de problemas que refletem na segurança nacional, até hoje orientada para combater “ideias que vem de fora para alimentar grupos subversivos que estão dentro”, argumentos que – na verdade – se destinavam a proteger privilégios coloniais-imperiais, cada vez que a democracia permitia avanços sociais para os “de baixo.” Ocorre que hoje, “o dentro” e “o fora” não mais existem, nas questões fundamentais: são um mesmo tecido incindível de criminalidade comum, financeira e política, que opera em conjunto no espaço nacional e global.

Em nome de um anticomunismo para idiotas, Jair Bolsonaro se apropriou dos conceitos vencidos da “guerra fria” e passou a abrigar militares dentro do seu governo, para que ele pudesse se associar e associar seletivamente, alguns deles, a esta criminalidade, para torná-la então permanente, através de um golpe de Estado. Esta tentativa, de uma só vez, desmoralizou uma boa parte das nossas Forças Armadas e parte significativa dos aparatos de inteligência e segurança do nosso país, que simplesmente nada fizeram contra o genocídio Yanomami.

No Brasil, o desenvolvimento tecnológico (técnico e econômico, criminoso ou não) – neste momento – entra em franca contradição com a “racionalidade prático-moral da Constituição”, como ocorre em todas as sociedades que resistem ao assédio fascista. É que a estrutura do Estado não gerou instrumentos de defesa para situações novas, das quais é um exemplo o ocorrido no território Yanomami: indefeso, embora pacificado como território nacional e declarado na Constituição propriedade da União (art. 20 XI da Constituição Federal) – com direito de usufruto e posse para os indígenas (art. 231, par. 2º Constituição Federal).

É de esperar que o Presidente Lula retome o mais breve possível a ideia de compor um forte Ministério de Segurança Pública, que consiga abarcar as múltiplas e novas funções federativas e globais que, juntamente com as Polícias, os órgãos de inteligência do Estado e as demais estruturas com afinidade – com o apoio total das nossas Forças Armadas – possa ser um órgão superior de sustento institucional da segurança do Estado, na sua soberania em relação aos sistema de criminalidade global, e da segurança pública no país, como questão federativa de primeiro nível.

A questão que se coloca como estratégica, para que o Brasil possa compor uma irmandade sul-americana em defesa da democracia, é aglutinar em torno de alguns princípios a maioria significativa dos países da América do Sul, que respeitem as regras do jogo democrático. Não permitir uma reedição da barbárie que foi encetada contra o Yanomamis, é uma preliminar essencial de credibilidade perante o mundo.

Voltar o Ministério da Justiça para a sua missão histórica de coordenação das grandes políticas de Estado, na sua conexão permanente com os demais Ministérios e Secretarias de defesa de direitos e na sua relação com os poderes da República, é o segundo degrau do diálogo universal aberto neste momento. Coisa de estadista. Não de sociopatas que fazem “arminha”.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES