João Câmara e Jorge de Lima

João Câmara. Solstício guache sobre papel 100 x 70 cm, assinatura inf. esq.
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Por CELSO FAVARETTO*

Comentário sobre os dois primeiros volumes da coleção “Artistas Brasileiros” da Edusp

Atualmente, a reflexão sobre as condições e possibilidades da arte, de apresentar o inapresentável ou de nomear o informe, passa pela avaliação dos pressupostos e processos modernos. Este é um dos resultados da discussão sobre o pós-moderno, independentemente de qualquer positividade que se queira atribuir ao termo.

Também os artistas incluem a reflexão em seus trabalhos; deliberadamente articulam referências como tática para sugerir que a invenção não procede mais necessariamente da estratégia vanguardista de afirmação da novidade e da pergunta sobre a verdade da arte. Dedicam-se ao seu “pequeno trabalho” (é Diderot quem fala pela boca de Lyotard), elegendo suas referências ou referindo-se a si próprios, indicando-o como uma espécie de elaboração psicanalítica.

Estudos recentes, geralmente na forma de trabalhos acadêmicos, históricos e críticos, estão aos poucos levantando o silêncio sobre aspectos não contemplados pela visada modernista, que inclui e exclui produções projetando para trás e para frente valorizações derivadas apenas dos cálculos vanguardistas. Hoje, percebe-se que muita coisa ficou de fora dos projetos vanguardistas hegemônicos que, diga-se, por serem exemplares, foram merecidamente exaltados.

Mas é indispensável, ao menos instrutivo, passar um pente fino na arte brasileira para se verificarem as diversas referências que atuaram no impulso de modernização, sem necessidade de legitimações. Trabalhos pontuais que estudam os artistas em seu tempo são os que melhor contribuem para retificar o traçado, já amplamente feito, da arte brasileira.

A coleção “Artistas Brasileiros” da Edusp, responde à carência de trabalhos específicos sobre artistas de diversas épocas. Primorosamente editados (com capa e projeto gráfico de Moema Cavalcanti), os dois primeiros volumes são dedicados a um artista polêmico e a um poeta dublê de pintor. Portanto, um artista contemporâneo que vem dos embates dos anos 60 e um modernista, poeta consagrado cuja obra plástica é quase desconhecida.

Almerinda da Silva Lopes reconstrói a trajetória de João Câmara destacando a sua peculiar imagística de teor político, mitológico e amoroso, desmontando as suas metáforas rebuscadas, a atmosfera de energias, protestos e bloqueios. Deslinda o caráter narrativo das figurações que, na formação do artista, surgem do entrelaçamento de cultura literária, familiaridade com o imaginário popular nordestino (no qual a narratividade é constitutiva), interesse histórico e mitológico, além de uma grande erudição artística.

Fortemente referenciado nas fontes eruditas e populares da pintura e da gravura, as figurações de Câmara remetem, numa aproximação imediata, a um “realismo”. Este, entretanto, em consonância com as experimentações contemporâneas, é entendido por Almerinda como efeito das traduções recentes de procedimentos maneiristas no tratamento dos temas, nas técnicas e na articulação das imagens ao modo da ficção.

O Câmara que salta da análise de Almerinda, cruzando a pintura, os acontecimentos históricos e depoimentos, a crítica e a história, é o culto e sarcástico artista que, distante dos grandes centros de produção, desenvolve uma mitologia privada de forte significação alegórica, em que as obsessões individuais, a crítica política e o imaginário popular são reinterpretados segundo referências sacadas na tradição pictórica: Masaccio, De Chirico, Picasso, Grozs e Bacon, por exemplo.

Jogando com a ambiguidade, articulando estilemas comuns à iconografia dramática (como notou Gilda de Mello e Souza), com a variedade de registros dos gestos, sempre hieráticos, os signos políticos, amorosos ou mitológicos compõem um simbolismo feito de sequências que resulta em monumentalização grotesca do amor, da família, da moral burguesa, da política. Assim, o seu pretenso realismo é na verdade uma representação composta de excesso de imagens detalhadas e ornamentais.

Imagens descomunais, desarticuladas e rearticuladas mecanicamente, representam o corpo humano como construído por próteses, aludindo ao funcionamento que preside aos fatos históricos: paralisação. O efeito dessa técnica é a proposição do emperramento da história, com a crítica das significações consagradas. Trabalhando com restos de imagens e fingindo verossimilhança, Câmara compõe o conflito entre percepção e representação.

Talvez nisso possa se encontrar a resistência que sua obra despertou em críticos e artistas, no Salão de Brasília (1967) e, depois, numa época em que a produção artística brasileira estava quase inteiramente marcada pelo conceitualismo. Mas isto não explica a censura política de que foi alvo, debitada certamente ao fato de que seus quadros ironizavam os poderes, uma determinada construção da idéia de nacionalidade e a moral.

O “projeto poético” de Câmara, esmiuçado por Almerinda, traduz plasticamente o diálogo de passado e presente. Agressiva, a pintura de João Câmara rompe os limites entre estrutura narrativa e estrutura formal, encenando o fabulário que elide a distinção entre veracidade e ficção. Pelo seu intelectualismo, diz a autora, é anticlássico; pelo jogo plástico é maneirista ou “neobarroco”. O seu realismo intelectual, e não visual, é o que faz do quadro uma narrativa no plano: “Composição sem perspectiva ou profundidade, cores lisas e sem transparência, corpos distorcidos, fragmentados e mutilados, estaticidade das figuras, caráter narrativo”. Na narração, o jogo estético converte-se em interpretação, pois “viciado em contar histórias”, Câmara é intérprete apócrifo da vida brasileira.

Outro é o procedimento de Ana Maria Paulino para destacar a “carga plástica” da poesia, das fotomontagens e da pintura de Jorge de Lima. Sem constituir-se propriamente em análise interna e externa da obra plástica do poeta, prefere desentranhar o plástico na poesia e a poesia no plástico pelos temas recorrentes – a infância, a memória, o sonho, a vida, a morte –, tensionados pelo delírio onírico e imaginação.

O paralelismo que estabelece entre pintura e poesia lembra o dos antigos, cifrado no “ut pictura poesis” de Horário: “A poesia é como a pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais perto; outra, se te pões mais longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contemplada em plena luz, porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou uma vez; essa outra, dez vezes repetida, agradará sempre”.

Esquecendo-se, evidentemente, os usos retóricos destas idéias, pode-se reter a semelhança, operação prioritária na representação, embora Ana Maria não veja simples adequação de um sistema a outro, pois na poeira moderna o poético e o visual integram-se de modo menos óbvio. De qualquer maneira, o primado da significação é enfatizado, principalmente porque em ambas as manifestações de Jorge de Lima a poética surrealista é patente.

No poeta-pintor, diz Ana Maria, tudo alude a um estado transcendente, a um tempo suspenso, àquele ponto do espírito, como dizia Breton, em que as distinções entre real e imaginário, passado e futuro, vida e morte se desfazem. Iluminação e êxtase franqueiam os limites da vida regrada abrindo o espaço da imaginação e do sonho, o tempo da memória.

Nas fotomontagens, construídas com retalhos da memória, o fantástico e o onírico, é destacado o uso da colagem, raro no Brasil daquele período. Nas telas, nenhum estilo preciso é identificado, indo do academicismo dos retratos e naturezas-mortas ao expressivismo dos motivos religiosos, em que comparecem procedimentos construtivos modernos.

Referências diversas aí se manifestam: Ismael Nery, Chagall, Magritte, Dali, De Chiricco, Max Ernst. A tônica geral das pinturas é a sensação de estabilidade gerada pelo tratamento dos volumes e das cores (branco, azul, azul-verde, verde-água, cinza, tonalidades de rosa), gerando construções bem arquitetadas, sólidas.

Finalmente, Ana Maria associa o surgimento da pintura em Jorge de Lima, desde o início de sua produção poética, no uso dos tempos verbais, que dinamizam as imagens e no gosto plástico manifestado no cuidado gráfico e nas ilustrações (de Segall, Santa Rosa, Bandeira e outros). Mas, acima de tudo, além de a pintura estar presente no cotidiano de seu incrível consultório-ateliê, ela é denotada pela crise depressiva do final dos anos 30; pela pintura busca salvar- se do tempo, da memória, do remorso. Na pintura, diz Ana Maria, “perfaz um universo”, também refeito na palavra.

*Celso Favaretto é crítico de arte, professor aposentado da Faculdade de Educação da USP e autor, entre outros livros, de A invenção de Helio Oiticica (Edusp).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas no. 9, em dezembro de 1995

 

Referências


Almerinda da Silva Lopes, João Câmara. Prefácio de Annateresa Fabris. São Paulo, Edusp, 228 págs.

Ana Maria Paulino. Jorge de Lima. São Paulo, Edusp, 116 págs.

 

 

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