Por DOMINIQUE EDDÉ*
“Nós contra eles” acena inevitavelmente o início do obscurantismo e da cegueira.
“A grande maioria dos homens não conseguiria resistir a um assassinato sem risco, permitida, recomendada e compartilhada com muitos outros”, escrevia o Prêmio Nobel de Literatura (1981) Elias Canetti [1905-1994] em Massa e poder. Esta frase resume o trágico da condição humana. Ela nos remete ao papel decisivo da “pequena minoria” restante quando chega a hora da matilha e da fusão. Ela nos adverte contra os raciocínios tribais, adaptados ao conforto de nossas identidades de nascimento.
Sejamos israelenses ou palestinos, libaneses, sírios, judeus ou muçulmanos, cristãos ou ateus, franceses ou americanos, nunca desconfiaremos o suficiente do recurso ao “nós contra eles”, que fatalmente sinaliza o início do obscurantismo e da cegueira.
Atualmente, o uso dessas três palavras registra recordes terríveis, de um extremo ao outro do planeta. E se espalha a uma velocidade tão assustadora que varre mentes, como um furacão varre casas.
O bárbaro massacre do Hamas, em 7 de outubro, não fez apenas milhares de mortos e feridos civis israelenses, lançou uma bomba nas mentes e corações, parou o pensamento. Permitiu o desencadeamento das paixões contra as razões e as provas da história. Esse desencadeamento pode ser compreendido onde faltam os meios de saber, de um lado como do outro. Onde a dor é esmagadora. É inaceitável entre os poderosos: onde as guerras são declaradas, onde as chances da paz são decididas.
O que aconteceu para que um jovem que, nos anos 1980, lançava pedras para ser ouvido por um exército de ocupação todo-poderoso se tornasse o pai de outro jovem reduzido a cometer um massacre de civis para existir?
Desenrolou-se em silêncio, uma década após a outra, no desdém das consciências, longe dos olhares, um processo de sabotagem e destruição do povo palestino que aparece, com o passar do tempo, como uma limpeza étnica. E esse assassinato coletivo, no qual colaboraram todos aqueles que o permitiram ou encorajaram, no primeiro plano dos quais uma maioria de regimes árabes, gerou o horror ao qual assistimos hoje. Não estamos diante de um começo, mas de um termo. O termo de um longo processo de decomposição e desmembramento que despedaçou a região inteira e marcou a derrota colossal de todos os atores envolvidos.
Perder a razão
O que é agora amplamente aceito no Ocidente como um ataque da barbárie contra a civilização, bloco contra bloco, é na verdade o terrível escape do horror quando todas as outras saídas foram bloqueadas.
Quem nos dirá que uma paz baseada na manutenção e extensão da colonização não é uma impostura, um crime? Quem nos dirá que um povo, primeiro negado em sua existência, depois esmagado para sobreviver, traído por todos os lados, inclusive pela autoridade supostamente representando-o, não tem alguma razão para perder a razão? A salvação de Israel passa por sua mão estendida ao povo que ela coloniza.
Que aqueles que pensam que os habitantes de Gaza são animais descubram sua humanidade e sua vida cotidiana, descrita pela jornalista israelense Amira Hass, em seu livro publicado em 1996, Beber o mar em Gaza: Crônicas 1993-1996 (La Fabrique). Que leiam seu comentário, publicado no jornal Haaretz, em 16 de outubro: “A Alemanha, filha de pais internados em campos de concentração, faz um ‘cheque em branco’ a um Israel ferido, sofrendo, com uma licença para pulverizar, destruir e matar sem restrição, uma licença para ser bárbaro”.
O islamismo jihadista é uma chaga? É o mínimo que se pode dizer. Mas por quanto tempo ainda vamos fingir que o triunfo dos talibãs não tem relação com a política americana e que o surgimento da organização Estado Islâmico não tem relação com as duas guerras do Golfo, cuja segunda foi construída sobre uma mentira inteiramente fabricada? O ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama reconheceu expressamente. “O [Estado Islâmico] é um crescimento direto da Al-Qaeda no Iraque após a nossa invasão daquele país”, ele revelou à Vice News, em março de 2015.
Quem nos dirá que o Hezbollah não tem relação com a invasão israelense de 1982, data de sua criação como movimento de resistência? Quem nos dirá, ao olhar de perto o crescimento do Hamas, que ele não foi cofabricado pelos artífices da Grande Israel pós-Yitzhak Rabin [assassinado em 1995]? Quem nos dirá o que responder aos desprovidos, despojados de tudo, lançados nas estradas, quando eles confiam cegamente no Deus que lhes é vendido a preço baixo?
A sobrevivência e segurança de Israel não podem mais ser negociadas dentro dos quatro muros do capitalismo selvagem, da arrogância e do poder militar absoluto. Nem o dinheiro nem as armas silenciarão os vencidos. Eles não terão mais meios de responder? Sim, eles trarão a arma temível que é a paixão de Deus sem Deus. E esta se exercerá em todos os territórios que encontrar em seu caminho.
Pressão infernal
Para assegurar sua existência a longo prazo, Israel deve desistir da aniquilação de Gaza e da anexação da Cisjordânia. Seu futuro não pode ser garantido pela expulsão, extermínio, conquista do pouco de território que resta. Ele só pode ser alcançado por uma mudança radical de política. Uma renúncia à lógica de autoafirmação pela superioridade militar e a negação do outro. Então, os espíritos ignorantes ou limitados do mundo árabe-muçulmano compreenderão melhor o tempo do horror absoluto que foi o Holocausto. Será finalmente ensinado e transmitido às novas gerações. Aprenderemos, de ambos os lados, que nenhuma história começa consigo mesmo.
Os islamistas radicais não serão destruídos por declarações de guerra, serão enfraquecidos retirando-se, uma a uma, suas razões de existir e de instrumentalizar o Islã. Será longo? Sim. Mas digam-nos, que outro meio há de extinguir um incêndio sem fronteiras?
Ao retirar os “pretextos” da má-fé geral, talvez façamos surgir a paz que a grande maioria desesperadamente aspira. Os psicoterapeutas sabem o que os políticos se abstêm de considerar: expressar o sofrimento do outro, sua humilhação, ajudá-lo a expressar seu grito, sua raiva, seu ódio, é desarmá-los. É de uma luta contra o ódio que se trata agora. Ela envolve cada um de nós, se quisermos dar uma chance às próximas gerações.
Que os líderes israelenses e seus apoios cegos renunciem à sua dominação brutal, satisfeita e sem partilha desse lugar explosivo que é a “Terra Santa”. Que os árabes, os muçulmanos, os derrotados da história não esqueçam que, ao se entregarem ao antissemitismo, eles se rebaixam, caem em um mal que não é deles, se voltam contra si mesmos. Que se levantem, claro, contra o massacre em massa que está acontecendo, mas que não privem as famílias israelenses enlutadas de sua compaixão, que não confundam sua revolta com a fantasia do desaparecimento de Israel.
Não esqueçamos, nós árabes, que contribuímos massivamente para a nossa desgraça. Não esqueçamos que, em termos de horrores, registramos em nossos solos, desde 1975, uma série abominável de massacres. Do Líbano à Síria, ao Iraque, nossos prisioneiros foram encerrados em condições atrozes. Mulheres, homens foram torturados, sem que soubéssemos defendê-los. Nossas memórias, nossos cérebros, nossas almas foram torturadas. Nossas culturas. Nossa história milenar. Nenhum desses países conseguiu resistir às manipulações internas e externas, à pressão infernal das grandes potências, à sinistra aliança da corrupção, do desprezo pelos pobres e da mais abusiva das virilidades.
Não podemos mais levantar a cabeça com slogans e reclamações dirigidas exclusivamente contra Israel. O futuro não consiste em reivindicar o que se perdeu, mas em examinar o que resta para salvar. Israel existe. Do que foi um mal para muitos de nós pode sair um bem para todos.
Um projeto gigantesco
Não falhemos neste terrível e último encontro. Lembremo-nos de que a vida, a morte, o dia, a noite, a dor, o órfão, a terra e a paz se dizem da mesma forma em árabe e em hebraico. É hora de cada um de nós fazer um imenso esforço se não queremos que a barbárie triunfe em nossas portas, pior: dentro de cada um de nós.
O projeto é gigantesco? Sim. Implica uma mudança dos atores políticos. Sim. É muito cedo? Não. É um sonho? Sim, mas que me digam se há outro cenário que não seja um pesadelo. Na conclusão de seu livro, A questão da Palestina, Edward Said escreveu: “A Palestina está saturada de sangue e violência… A questão da Palestina é infelizmente condenada a se renovar em formas que conhecemos bem demais. Mas os povos da Palestina – árabes e judeus –, cujo passado e futuro estão inexoravelmente ligados, também são chamados a se renovar. Seu encontro ainda não aconteceu, mas vai acontecer, eu sei, e será para o benefício mútuo.”
Era 1980. Talvez tenha chegado o tempo para cada um, cada uma de nós fazer o seu trabalho de beija-flor, de preferir a caravana ameaçada da humanidade ao carro veloz das ideias remoídas. Que aqueles que têm o poder façam pressão sobre Israel para colocar imediatamente um fim ao suplício que seu exército inflige aos moradores de Gaza, ao seu empenho selvagem e suicida em um território saturado de desgraças, atacado por todos os lados e sem portas de saída.
Todos os destinos dos países vizinhos estão ligados. É precisamente essa mensagem que as potências estrangeiras fingem não entender: a região pede para ser tratada como um único corpo gangrenado, mortalmente ferido. Ao repetir o passado em vez de iniciar um novo, corre-se o risco de sacrificar o projeto prioritário deste século XXI: a sobrevivência da espécie humana.
*Dominique Eddé é escritora e ensaísta libanesa. Autora, entre outros livros, de Edward Said: Le roman de as pensée (La Fabrique).
Tradução: Lucius Provase.
Publicado originalmente no jornal Le Monde.
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