A batalha da Maria Antonia

image_pdf

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Comentário sobre o recém-lançado Livro Branco dos acontecimentos da Rua Maria Antonia – dias 2 e 3 de outubro de 1968

Em boa hora a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP resolve empreender uma reedição de fôlego. Trata-se do Livro Branco dos acontecimentos da Rua Maria Antonia – dias 2 e 3 de outubro de 1968.

Ao primoroso projeto gráfico os organizadores, Irene Cardoso e Abílio Tavares, acrescentaram um histórico do próprio livro, estampando em anexo a documentação. A tal ponto que o volume dobrou de tamanho.

A Introdução, de autoria da organizadora e maior autoridade no assunto, troca em miúdos as circunstâncias, mas também avança uma interpretação do papel de vanguarda da Faculdade de Filosofia, desde sua fundação pelos mestres europeus, em 1934. Vieram italianos, alemães e franceses, todos dedicados ao saber, para superar a ideia de que este só servia quando aplicado à Engenharia ou à Medicina.

Para o saber não-aplicado, ofereciam-se agora disciplinas teóricas como a Física, a Química, as Matemáticas etc., de pesquisa pura. Tudo isso reunido às humanidades, na mesma Faculdade de Filosofia. Era de fato uma concepção inédita no país, idealmente multidisciplinar e derrubando muros compartimentadores do saber. Em defesa de tudo isso e de mais alguns princípios democráticos, os alunos tinham ocupado o prédio.

A presente reedição reúne depoimentos propriamente ditos, da autoria de testemunhas de vista, que estavam dentro do prédio quando ele foi bombardeado e incendiado: entre elas se contam alguns de nossos maiores intelectuais. Afora isso, só a trajetória percorrida pelo livro dá uma boa ideia dos horrores que este país já viveu.

A Congregação da Faculdade nomeou imediatamente uma comissão de professores para preparar a documentação, ouvindo testemunhas e colhendo depoimentos. Antonio Candido foi eleito relator – e de como se desincumbiu da tarefa é o que se verá a seguir.

A batalha da Maria Antonia travou-se nos dias 2 e 3 de outubro de 1968, e pouco mais de um mês depois, a 6 de novembro, o relatório foi redigido e apresentado. E a gravidade do que ocorrera assim o exigia: quantas vezes já se ouviu falar no Brasil de uma respeitável instituição de ensino superior ser bombardeada e incendiada?

Entretanto, depois o registro se torna nebuloso. Tudo rápido e eficientíssimo até aí. Mas daí em diante… O relator entregou o livro pronto à Congregação que o encomendara. Tempos depois, como o livro não surgia, espalhou-se a notícia de que os originais tinham desaparecido. E ninguém sabia o que acontecera – tamanhas foram as convulsões à época.

Logo se deu a prisão de perto de mil delegados do Brasil inteiro ao congresso da UNE em Ibiúna, assim decapitando o movimento estudantil que tinha sede na Maria Antonia. E também a invasão do Crusp, o conjunto residencial da USP, pelas forças armadas, prendendo e expulsando os moradores.

Coroando tudo sobreveio o AI-5 mutilando a Universidade, expulsando alguns de seus  professores mais renomados. A própria Faculdade seria banida para os confins de São Paulo, onde era então a futura Cidade Universitária – um lamaçal sem calçamento, sem sarjetas, sem iluminação.

Felizmente o relator, que tinha vivo senso da História, guardara uma cópia, bem como todo o material de comprovação. Assim, exatamente 20 anos depois, quando a ditadura já se fora e a democracia se reinstalara, o livro seria finalmente publicado, em 1988.

Talvez tenha caído no vazio. O fato é que pouco se ouviu falar dele.

Nesse ínterim, quando Irene Cardoso se dispôs a dedicar-se ao campo, Antonio Candido repassou-lhe tudo: a cópia dos originais e mais o material de comprovação. Inclusive uma bomba de gás lacrimogêneo, que por muito tempo permaneceu à mão do professor, à vista de todos que iam à sua casa. Era item gravíssimo, evidência da intervenção do aparelho policial-militar na batalha da Maria Antonia, que absolutamente não foi o que as autoridades e a mídia rotularam como uma mera rixa de estudantes dos dois lados da rua, os esquerdistas da Maria Antonia e os direitistas do Mackenzie.

Irene Cardoso tornou-se uma grande especialista: fez tese de doutoramento em Sociologia, A Universidade da Comunhão Paulista (1982), e escreveu Para uma crítica do presente (2001), livros que até hoje são de importância ímpar, com perquirições aprofundadas sobre a ocupação e a batalha, sobre o papel da Universidade, sobre o pensamento progressista de que a Faculdade de Filosofia sempre foi um farol. Teve a coragem de falar em dor, em tragédia, em terror e interdição do passado, visando a história da Universidade, mas também a da Geração 68.

Esta reedição foi, bem a propósito, publicada em companhia de outra, o livro Maria Antonia: uma rua na contramão, organizado por Maria Cecília Loschiavo dos Santos (1988), numa linhagem que se tem multiplicado tanto em livros quanto em filmes. São 31 textos do maior interesse, escritos por gente que refletiu tanto sobre sua participação quanto sobre o “fenômeno” Maria Antonia. Traz um texto seminal e muitas vezes republicado, que é o de Antonio Candido, “O mundo coberto de moços”.

Sempre lúcido, o professor percebeu que ocorrera uma mudança de paradigma mundo afora, segundo a qual os jovens em rebelião desejavam assumir a vanguarda do processo histórico. Sob o signo do antiautoritarismo em qualquer nível – família, trabalho, escola, saber -, foi nas trincheiras planetárias de 68 que se contestou pela primeira vez o poder discricionário do homem-adulto-branco-heterossexual. Uma tal contestação só cresceria com o passar do tempo, a bandeira do Outro sendo empunhada pelos jovens, pelas mulheres, pelos não-brancos em geral (negros, asiáticos, árabes, indígenas) e pelos homossexuais.

A reedição foi organizada por Maria Cecília Loschiavo dos Santos e Abílio Tavares, com projeto gráfico igual ao do Livro Branco, de modo que, irmanados, possam ser visualmente reconhecidos como um par.

Ambos constituem documentos incontornáveis da luta perpétua contra o obscurantismo no país, que nunca esmorece.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (SESC-SP/Ouro sobre azul).

 

Referências


Irene Cardoso e Abílio Tavares (orgs.). Livro Branco dos acontecimentos da Rua Maria Antonia – dias 2 e 3 de outubro de 1968.

São Paulo, FFLCH-USP, 2020.

Maria Cecília Loschiavo dos Santos e Abílio Tavares (orgs.). Maria Antonia: uma rua na contramão. São Paulo, FFLCH-USP, 2020.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES