A crise acelerada

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Osvaldo Coggiola e Edgar Azevedo*

A operação ideológica em curso apresenta a crise econômica como um produto da crise sanitária quando, na verdade, aquela precedeu a pandemia, que a manifestou de modo aberto e a aguçou.

A fala alucinada (objetivamente homicida) do titular do Poder Executivo do Brasil, a 24 de março, reclamando a “volta à normalidade social” do país, ignorando todas as normas e prevenções sanitárias universalmente reconhecidas, com consequências potencialmente catastróficas em virtude da pandemia do coronavírus, tudo em nome de “salvar a economia”, é a tentativa atabalhoada (mas não carente de bases políticas) de impor uma espécie de poder de fato, situado por cima do Legislativo, do Judiciário e até mesmo, parcialmente, do próprio Executivo. Um “Chefe Supremo”, um Duce.

Aproveitando a emergência, a decretação do estado de sítio entrou na agenda política. Bolsonaro, além disso, exonerou 30 generais com mando de tropa a designou um novo Chefe de Estado Maior, Marcos Antônio Amaro dos Santos, que foi ministro-chefe da Casa Militar de Dilma Rousseff. A empreitada de Bolsonaro reconhece um antecedente (portanto, uma lógica política) nas mobilizações, tendo como alvo o Congresso e o Judiciário, convocadas e apoiadas pelo próprio presidente a 15 de março passado. A intervenção em rede nacional de Bolsonaro foi condenada por prefeitos, governadores, senadores e deputados (com exceção da bancada do PSL, 10% do Congresso, que qualificou a fala bolsomínia de “intervenção de estadista”), porta-vozes dos trabalhadores da saúde, e até pelas suas ordens profissionais (tradicionalmente conservadoras) que a qualificaram literalmente de “criminosa”.

Um dos cenários oficiais previstos pela Abin (Documento nº 015/2020 – 23 de março de 2020) trabalha com uma projeção máxima de 5.571 mortes até 6 de abril, exibindo o Brasil um comportamento semelhante às curvas epidêmicas de Irã, Itália e China. O comparativo da Abin das curvas de crescimento a partir de cem casos confirmados, Brasil x Europa, mostra um crescimento semelhante dessas curvas no nosso país e as da Alemanha, Itália, Espanha, França e Reino Unido.

O relatório da agência de inteligência cita fontes científicas: “Duas em cada três infecções do novo coronavírus foram causadas por pessoas que não foram diagnosticadas com o vírus ou que não apresentavam sintomas. Isso significa que as pessoas infectadas que se sentem saudáveis ou têm sintomas muito leves estão espalhando o vírus sem perceber, representando um grande desafio para a contenção da pandemia. Os cientistas dizem que a probabilidade é que haja entre cinco e dez pessoas sem diagnóstico para cada caso confirmado. As autoridades de Nova York (EUA) solicitaram que todos os cidadãos se comportassem como se já estivessem expostos ao novo coronavírus”. O ministro da Saúde, Luiz Mandetta, que qualificou inicialmente o coronavírus como “mais uma gripe”, anunciou a probabilidade (talvez uma certeza) de um colapso do sistema sanitário brasileiro.

Os panelaços de protesta contra o presidente, com estridentes “Fora Bolsonaro” dominando as vozes, se fizeram ouvir em todas as capitais e até em cidades de médio e pequeno porte do país. A Rede Globo agiu e age como uma sorte de porta-voz midiático oficioso, se não oficial, do heterogêneo conjunto. Curiosamente, ou nem tanto, nenhuma das entidades oficialmente protestantes, principalmente o Legislativo, abriu qualquer iniciativa institucional destinada a impedir (impeach) quem se transformou em um perigo iminente e imediato para a sobrevivência da população, em especial a mais pobre.

Essa estranha preguiça (ou “prudência”) contrasta com a celeridade com a qual legisladores (de quase todas as cores políticas) passaram a tratar medidas como a suspensão de contratos e o corte de salários de funcionários públicos e privados, atingindo até 50% do ordenado, supostamente para conter gastos estatais (no caso dos servidores públicos), destinando mais recursos ao combate à pandemia, e para “evitar o fechamento de empresas”, enxugado a folha salarial.

Para inúmeros trabalhadores, empenhados com despesas de créditos imobiliários, empréstimos consignados, débitos automáticos de gastos condominiais e de serviços, pensões alimentícias, créditos de bens móveis, etc., tais cortes significariam, em muitos casos, receber no fim do mês um contracheque negativo, criando uma onda de miséria social e de inadimplência e retomada de bens (móveis e imóveis) em massa, e especulação desenfreada, com um só grande beneficiário na ponta da corrente, o grande capital financeiro, já amplamente beneficiado pelo Banco Central, que anunciou a disponibilidade de R$ 1,216 trilhão para os bancos brasileiros, o que equivale a 16,7% do PIB.

Compare-se essa cifra com o “pacote” anunciado pelo governo (a 23 de março) de R$ 88,2 bilhões para combater a pandemia: ele equivale a 7,5% dos fundos “disponibilizados” para o grande capital financeiro. Os fundos “humanitariamente” anunciados pela equipe econômica, por outro lado, referem-se basicamente a rolagem ou reestruturação de dívidas de estados e municípios, e a possível (e custoso) uso de linhas de crédito, sendo um percentual bem menor do montante anunciado o destinado ao efetivo incremento da capacidade sanitária do país.

A “ajuda” a desempregados e “autônomos” (ambulantes) não chega sequer a ser um paliativo. Ou seja, o “pacote” se situa perfeitamente dentro da linha “salve-se quem puder” da clique bolsonariana, que segue, para além das manifestações de ignorância e brutalidade do presidente (que obrigaram a pedidos de desculpas públicos da parte de seu vice e de seu ministro da Saúde) a uma estrita lógica de classe, que se manifestou de modo explícito nos dias precedentes aos comunicados e falas governamentais. Por trás da pandemia, há uma verdadeira guerra de classes em andamento.

Ela é aguçada pela própria crise capitalista (não apenas “do neoliberalismo”). O neoliberalismo foi definido, mais empírica do que teoricamente, como a política que deveria revigorar o capitalismo, restaurando o “espírito animal”, empreendedor e investidor, supostamente amortecido pela mão intervencionista do Estado. No entanto, nunca fez isso. As taxas de crescimento nas últimas quatro décadas permaneceram consistentemente abaixo daquelas do período “estatista” do pós-guerra, os chamados “Trinta Anos Gloriosos” do capitalismo.

Em vez disso, o sistema de produção capitalista ficou tensionado. Espacialmente, cingiu o mundo. Ficou tenso com a produção just-in-time, com pouco ou nenhum estoque e pouca margem de manobra financeira para lidar com contingências. Por fim, socialmente, pressionou trabalhadores e fornecedores terceirizados de pequenas empresas, fazendo com que produzissem trabalho e produtos com base em baixos salários e preços e descarregando todo tipo de riscos sociais e financeiros sobre eles.

A operação ideológica em curso consiste em apresentar a crise econômica como sendo um produto da crise sanitária (um fator supostamente aleatório e fora de controle, o que não é verdade) quando, na verdade, aquela precedeu a pandemia, que a manifestou de modo aberto e a aguçou. O “pacote econômico” anunciado, nos EUA, por Donald Trump, “modelo” e mandatário de Bolsonaro, foi qualificado, pelo seu montante impressionante (US$ 3,2 trilhões, que equivalem a 150 vezes o “pacote” brasileiro) como uma manifestação da segurança econômica do país devida aos grandes recursos econômicos nas mãos do Estado.

Na verdade, nos EUA assistimos a uma ascensão espetacular da chamada “dívida corporativa”; no contexto de décadas de acesso a “dinheiro (crédito) barato”, as empresas não financeiras viram seu endividamento mais que dobrar, de US$ 3,2 trilhões em 2007 para US$ 6,6 trilhões em 2019, mais do que o dobro do pacote de Trump. A dívida corporativa é uma bolha gigante funciona como fator de crise global, como as hipotecas chamadas subprime em 2007-2008. Nessa situação, um choque repentino no sistema pode desencadear uma onda de inadimplência corporativa, colocando a economia global em risco de colapso.

Os EUA elevam qualitativamente sua dívida pública, situando-se no limiar da falência financeira do Estado e de uma hiperinflação, apenas para adiar provisoriamente o colapso de todo o sistema: “A economia global está arruinada. Cadeias de suprimentos e redes de viagens foram severamente perturbadas, as bolsas de valores afundaram e uma recessão agora parece quase inevitável. Até o mercado dos títulos públicos dos EUA, normalmente um bastião de segurança durante períodos de turbulência no mercado, tornou-se extremamente volátil.

A situação é fluída e incerta, tornando tênues e improváveis as projeções sobre as consequências de curto prazo. Mas, dada a gravidade da situação, vale a pena perguntar: a chegada do Covid-19 significa que o dia do acerto de contas para tomadores de empréstimos corporativos sobrecarregados está próximo? Realizamos pesquisas que mapeiam a estrutura de endividamento de empresas não financeiras dos EUA listadas no mercado de ações. As evidências descobertas sugerem que os especialistas têm razão em se preocupar com o aumento da alavancagem corporativa.

“Mas precisamos ter cuidado ao especificar quais corporações são mais suscetíveis à inadimplência. Ao classificar os níveis de endividamento para empresas de diferentes tamanhos, nossa análise produz resultados impressionantes. O que descobrimos é que as pequenas e médias empresas enfrentam os encargos mais significativos da dívida, tornando-os especialmente vulneráveis a uma desaceleração do mercado. Enquanto isso, as empresas no escalão superior parecem ser mais robustas financeiramente do que há quase meio século. Se o Covid-19 é realmente o catalisador de uma catástrofe da dívida corporativa, ela vai atingir os que estão no fundo do poço. O resultado provável? Mais turbulência no mercado, mais concentração e menos investimento” (Joseph Baines e Sandy Brian Hager. Covid-19 and the Coming Corporate Debt Catastrophe, 13 de março de 2020). Uma recolonização do mundo pelo grande capital monopolista, em especial norte-americano, está na pauta geopolítica, com consequências para todo o planeta, em primeiro lugar para a China. O Brasil é um peão nessa disputa.

Não estamos diante de uma crise que só afetaria, ou afetaria principalmente, o setor financeiro: “Nossa estrutura produtiva, superconcentrada, exagerada e altamente enfraquecida, já devia ser avaliada. A segunda semana de março, quando a OMS atualizou o Covid-19 para “pandemia global”, testemunhou um abalo sem precedentes nos mercados mundiais. As bolsas de valores nos EUA sofreram o maior declínio em um dia desde o craque de 1987, apesar do corte na taxa de juros do Federal Reserve e da promessa de injetar trilhões no sistema.

Não foi uma “correção” confortável. Invulgarmente, as bolsas de valores, geralmente consideradas mais arriscadas, não estavam sozinhas na turbulência. Os mercados de títulos menos arriscados também sofreram, assim como os mercados nos ‘mais seguros’ de ativos, títulos dos EUA e mercados de ouro, à medida que os investidores buscavam liquidez. Além disso, a dor era mais do que financeira. Como país após país impôs paralisações e restrições de viagens, companhias aéreas, companhias de cruzeiros, aeroportos e outras empresas relacionadas a viagens, juntamente com vastas áreas do grande setor de serviços, provavelmente inflado, que depende principalmente da produção e consumo face a face, sofreram fechamentos, cortes e demissões.

Cadeias de suprimentos interrompidas e mercados em colapso pressionaram a produção. Além disso, em outro desenvolvimento, a desunião entre a Opep e seus aliados levou a uma guerra de corte de preços que fez antieconômica a produção de xisto dos EUA, uma das estrelas mais brilhantes do firmamento econômico em uma década sombria, pois ela é dependente de altos preços do petróleo” (Radhika Desai. The Unexpected Reckoning: Coronavirus and Capitalism, 17 de março de 2020).

Nesse quadro mundial de crise, as disputas sobre o custo, e sobre quem paga o custo, da pandemia, é o aspecto central da luta de classes no atual cenário mundial, pondo, desta vez, em jogo a vida e a sobrevivência da maioria dos explorados. Exemplos históricos não faltam. As pestes e pandemias do passado não “unificaram”, como se costuma propalar, a sociedade, mas, a contrário, a dividiram e enfrentaram como nunca antes: a “Peste Negra” de 1347-1350 presidiu e acelerou o declínio da ordem feudal na Europa (e foi o pano de fundo da ascensão de novas classes sociais, das lutas entre as quais a burguesia capitalista emergiu finalmente como vitoriosa); a “gripe espanhola” de 1918-1921, contra o pano de fundo das destruições provocadas pela guerra mundial, viu uma onda revolucionária varrer a Europa e o mundo, da qual a Revolução de Outubro e sua consolidação foi a expressão mais avançada.

Voltemos, porém, a nosso país e a “nossa” pandemia, ainda em estágio inicial. O Brasil é o país da América Latina com o maior número de casos de coronavírus confirmados, com o maior número de mortes e a maior subnotificação. Para os explorados, deixar a administração da crise nas mãos da burguesia e de seus representantes políticos significa um desastre humanitário. Assim que declara um plano de guerra contra os trabalhadores em prol da preservação dos seus lucros e uma política cosmética contra a epidemia, a burguesia brasileira se refugia em suas casas de praia e suas fazendas, enquanto milhões de trabalhadores habitam favelas sem saneamento básico, sem comida garantida e sem a menor possibilidade de distância social.

O roteiro liderado do governo brasileiro corresponde à política geral do imperialismo sobre o coronavírus. A rejeição da quarentena para permitir a disseminação em massa do vírus foi anunciada pelo britânico Boris Johnson como o “método” de melhor custo-benefício para o capital financeiro. A fantasia de que o contágio em massa provocaria imunidade natural foi imediatamente rejeitada por todos os especialistas em saúde, e a pressão popular levou Johnson a voltar parcialmente e iniciar uma política de mitigação. Os EUA seguiram uma linha similar, com a única diferença de que sua implementação abandonou qualquer protocolo e foi imposta mediante as habituais mentiras de Donald Trump. O resultado foi um cenário assustador, que levou governadores e autoridades locais, como no caso de Nova York, a agir contra o relógio.

Bolsonaro viajou à Flórida para receber ordens de Trump – conseguindo que o vírus se espalhasse em toda sua comitiva, tornando-se responsável por tornar o DF a terceira unidade da federação em número de casos de Covid-19. Ao contrário dos britânicos, que anunciaram o experimento de “imunização natural” para todo o país, o governo Bolsonaro manobrou e ocultou informações para uma política de fato consumado. A subnotificação de casos foi resultado de uma política do governo, com a cumplicidade da grande mídia.

Quando o número de casos suspeitos saltou após o Carnaval, começando a aparecer contágios em todas as regiões do país, o Ministério da Saúde começou a relatar apenas os casos confirmados, ficando atrás dos números relatados pelos secretários de Estado. A plataforma on-line que registrava os casos foi retirada do ar, paralelamente à insistência de Bolsonaro de que o coronavírus fosse descrito como uma “gripezinha” e defendesse a concorrência de multidões nas igrejas evangélicas. A OMS alertou que a luta contra a epidemia exigia não apenas restrição total, mas também testes maciços para detectar em detalhes o avanço do vírus. O governo brasileiro decidiu não fazer nem uma coisa n outra, causando contaminação geral. A ocultação da situação real promovida pelo Ministro da Saúde – elogiada por unanimidade pela imprensa como “o adulto na sala” – foi funcional à política ditada por Bolsonaro.

A reação inicial do governo e da grande burguesia foi aproveitar a epidemia para extorquir o Congresso, através de Paulo Guedes, a fim de exigir a aprovação do pacote de reformas contra os trabalhadores (privatizações, reforma administrativa, etc.). Há mais de duas semanas, Guedes foi informado de um estudo reservado do Banco Central que mostrou uma disseminação do coronavírus no Brasil em uma escala maior do que na China e na Itália. Um novo pacote econômico de “anticoronavírus” autorizou as empresas a reduzir os salários em 50%, um auxílio mensal insignificante de 200 reais (menos de US$ 40), durante três meses, para 40 milhões de trabalhadores que foram lançados na informalidade, benefícios fiscais para as grandes empresas e compra de títulos públicos pelo Banco Central, em resposta à seca no mercado financeiro. O embate com o Legislativo acabou elevando esse montante para R$ 600, para evitar uma catástrofe social que poderia virar um terremoto político.

A 20 de março, o ministro da Saúde admitiu que até final de março a pandemia deveria iniciar uma curva ascendente acentuada e que “claramente” o sistema de saúde brasileiro entraria em colapso no final de abril. A fase de crescimento exponencial dos casos deve durar em abril, maio e junho, com platô a partir de julho, para começar a cair a partir de setembro. Isso significa que, a partir de maio, não haverá capacidade de atender casos graves que precisem de cuidados intensivos, fazendo com que dezenas ou centenas de milhares morram por falta de cuidados. Em vez de responder a essa realidade com a única política possível, ou seja, com uma política de restrição de movimentos e testes maciços, haverá apenas “algumas interrupções”.

A promessa de milhões de testes em um futuro incerto, quando a catástrofe será inevitável, é apenas uma cortina de fumaça para esconder a política real do governo. O ministro Mandetta repetia diariamente, até há pouco, que testes em massa seriam um “desperdício de recursos”. Os principais funcionários do grande capital brasileiro, com a FIESP no comando, comemoraram a decisão do governo de “não parar” e o pacote de benefícios de Guedes.

O apoio ao governo trouxe novos benefícios ao setor, com a autorização para suspender os contratos de trabalho por quatro meses durante a epidemia, sem pagamento de quaisquer salários, além de isenções fiscais e pagamento de cargas sociais. Bolsonaro apareceu determinado a enviar a classe trabalhadora para o matadouro. O escândalo nacional provocado pelo anúncio da MP obrigou Bolsonaro a recuar (por quanto tempo?), tergiversando mediante o anúncio de medidas “complementares” que surtirão feitos semelhantes em um curto prazo.

Sob o comando de Donald Trump e em busca de um bode expiatório, o bolsonarismo lançou uma provocação contra a China, que abriu uma profunda fissura em sua base política de apoio. A pressão da burguesia do agronegócio (a China é o maior parceiro comercial do Brasil, responsável por 30% de suas exportações) colocou o governo em uma situação de extrema fraqueza, no meio de uma crise política que dança ao som dos panelaços diários e do aumento diário do número de casos de contágio e de mortes.

A classe capitalista brasileira está profundamente dividida, e seu sistema político fraturado. A principal empresa de consultoria mundial para avaliação de “risco político”, a “Eurasia”, detectou (e decretou, para os potenciais investidores) a possibilidade de “crise institucional” no Brasil (O Estado de S. Paulo, 24/3/2020), acelerando uma fuga de capitais que já é mensurável cotidianamente. A crise é tão profunda e acelerada que a burguesia começou a se voltar para uma tentativa de enfrentar a crise sanitária, tornando as necessidades de saúde uma fonte de negócios. Foi aberta uma disputa para definir que classe social liderará a administração da crise. A classe capitalista usará o aparato estatal para preservar a ordem, as relações de propriedade, e salvar grandes as empresas da falência, às custas da vida de milhões de brasileiros.

A única saída viável para os trabalhadores e explorados em geral é impor uma centralização compulsória de todos os recursos do país, com base em um único plano social e econômico, sob a mobilização e liderança dos próprios trabalhadores. As empresas começaram a demitir (inclusive no crítico setor de transportes, responsável por toda a logística de distribuição de alimentos e medicamentos!): devemos exigir a proibição de toda e qualquer demissão em situação de emergência nacional e social. O controle do sistema financeiro pelos trabalhadores do setor, para evitar a fuga de capitais e o esvaziamento do país, também está na ordem do dia, pondo na agenda a perspectiva de sua nacionalização.

O combate à epidemia requer uma ação centralizada que coloque todos os recursos econômicos, materiais e humanos, da nação a serviço do travamento do contágio, garantindo segurança alimentar e de saúde para toda a população trabalhadora, ampliando a capacidade do sistema de saúde para atender todos os doentes, priorizando a produção e distribuição de itens de trabalho para os profissionais de saúde. É necessário transformar o sistema de produção em função das necessidades postas pelo cenário de crise.

Os profissionais de saúde denunciam a falta de equipamentos e suprimentos médicos. O governo chega ao ponto de impor que médicos e enfermeiros reutilizem as máscaras de proteção. Trabalhadores de call centers e telemarketing, trabalhadores industriais, distribuidores de alimentos e remédios iniciaram processos de luta para exigir garantias de segurança e higiene. Nas favelas e periferias, comitês de bairro e comunidade assumem a tarefa de estabelecer vigilância sanitária para reduzir a propagação da praga. A greve dos metalúrgicos em São Paulo exigindo férias remuneradas é a ponta de um iceberg que tende a crescer sem parar. É necessário formar comitês sanitários nas fábricas, nos locais de trabalho, nas comunidades, que se unifiquem em um grande movimento nacional.

No “Manifesto em Defesa do Mundo do Trabalho”, assinado por entidade sindicais e profissionais e diversas personalidades, se repudia a eventual decretação de estado de sítio e se defende um programa que reproduzimos a seguir in extenso:

1. Proibição da demissão de empregadas e empregados, servidoras e servidores públicos.

2. Proibição da redução de salários de empregadas e empregados, servidoras e servidores públicos.

3. Interrupção imediata da prestação de trabalho, nos setores público e privado, em todas as atividades não relacionadas, de forma direta, à preservação da vida, sem prejuízo do integral recebimento de salários.

4. Interrupção imediata da prestação de trabalho, nos setores público e privado, dos trabalhadores e trabalhadoras com mais de 60 (sessenta) anos, gestantes e demais inseridos nos grupos de risco, independente da atividade exercida, sem prejuízo do integral recebimento de salários.

5. Nas atividades essenciais à preservação da vida, que não possam ser interrompidas, obrigação do fornecimento, pelo empregador público e privado, inclusive quanto às trabalhadoras e trabalhadores terceirizados e informais, dos meios necessários ao deslocamento seguro ao ambiente de trabalho e dos equipamentos de proteção individual e de proteção coletiva necessários à redução de riscos.

6. Diálogo e efetiva negociação com o sindicato de trabalhadores, como condição necessária para a implementação das medidas de restrição de riscos, tais como definição dos equipamentos imprescindíveis para trabalho dos profissionais de saúde, vedação da sobrejornada, prática de revezamento e a redução da jornada sem diminuição de salários, observando-se as notas técnicas emitidas pelo Ministério Público do Trabalho.

7. Determinação do imediato pagamento de adicional por risco de vida a todos profissionais que não tenham como interromper sua atividade.

8. Proibição de contratação de pessoas para realização das atividades essenciais por meio de contratos precários (intermitente ou que não asseguram direitos trabalhistas – legais e convencionais – mínimos).

9. Formalização imediata do vínculo de emprego dos trabalhadores que prestam serviços a empresas proprietárias de plataformas digitais, impondo-se, ainda, a criação de um fundo a cargo dessas empresas para proteger, de forma emergencial, a renda de seus trabalhadores.

10. Fornecimento e custeio, pelo empregador, dos meios necessários para a realização, dentro dos padrões de saúde e segurança, do trabalho em domicílio, quando se mostre viável.

11. Observância da limitação da jornada das trabalhadoras e dos trabalhadores sujeitos ao teletrabalho.

12. Vedação de qualquer medida que implique enfraquecimento dos instrumentos disponíveis para a fiscalização das condições de trabalho das e dos profissionais que atuam em atividades essenciais.

13. Apoio institucional às formas de auto-organização, organização social e sindical e de solidariedade coletiva, inclusive financeiro, como caminho fundamental para ajudar no combate à pandemia.

14.Pagamento de renda básica de cidadania para todas as famílias com renda inferior ao mínimo necessário indicado pelo DIEESE, em fevereiro de 2020, no importe de R$ 4.366,51 (quatro mil, trezentos e sessenta e seis reais e cinquenta e um centavos).

15.Extensão do período de recebimento do seguro-desemprego por prazo indeterminado, para quem está fruindo ou vier a fruir o benefício, nesse caso, com cancelamento do tempo mínimo exigido para o acesso.

16. Revogação da Emenda Constitucional 103/19 (Reforma da Previdência), da Emenda Constitucional 95 (limitação de gastos na esfera das políticas públicas sociais) e da Lei 13.467/2017 (“reforma” trabalhista), vez que destruidoras das bases do Estado Social.

17. Imediato pagamento das aposentadorias de todas e todos que já alcançaram esse direito, mas que, devido às políticas governamentais de retardamento de concessão dos benefícios, esperam na fila há meses.

18. Renúncia fiscal para famílias com renda inferior ao mínimo necessário indicado pelo DIEESE e para pessoas jurídicas com até 10 empregados que não usem meios fraudulentos para mascarar vínculos de emprego.

19. Remissão de dívida bancária de empréstimos, para famílias com renda inferior ao mínimo necessário indicado pelo DIEESE.

20. Proibição de ordens de despejo por falta de pagamento de aluguel e vedação à interrupção de fornecimento de energia elétrica, gás, água, por inadimplemento de famílias que tenham renda igual ou inferior ao mínimo indicado pelo DIEESE.

21. Suspensão de cobrança de tributos e contas relativas aos serviços essenciais, durante o período de crise sanitária.

22. Direcionamento prioritário do orçamento público às atividades essenciais ligadas à saúde pública.

23. Suspensão do serviço da dívida, grande responsável pela crise fiscal.

24. Suspensão imediata dos benefícios fiscais e proibição de prorrogação de prazos para pagamento ao estado de dívidas ordinárias, relativamente às grandes empresas.

25. Cobrança imediata e com rito sumaríssimo dos maiores devedores do Estado.

26. Exigência de aporte de dinheiro por parte das instituições financeiras, equivalente ao lucro líquido obtido em 2019, a ser destinado para a construção de hospitais temporários e fornecimento gratuito de alimentos e remédios para todos que deles necessitarem.

27. Permissão de estatização de hospitais para o atendimento imediato de necessidades da população em geral.

28. Determinação de utilização imediata de prédios públicos ou privados que não estejam atendendo sua função social, assim como de hotéis e congêneres, para que sirvam de abrigo à população de rua, para centros de atendimento à saúde das pessoas infectadas, para pessoas em isolamento e para aqueles que dependem de cuidados de terceiro e este esteja em isolamento ou infectado.

29. Imposição às grandes transportadoras e companhias aéreas e rodoviárias que viabilizem o transporte gratuito de alimentação e medicamento a todas as cidades brasileiras.

30. Controle e fiscalização de preços de medicamentos, combustíveis e alimentos, para evitar a exploração oportunista de situação extremamente grave e delicada.

31. Quebra de patentes de remédios necessários ao tratamento médico da Covid-19.

32. Subvenção à fabricação em larga escala de respiradores mecânicos, produtos de esterilização e assepsia e equipamentos de proteção individual e coletiva para a área da saúde, a serem distribuídos em todo o território nacional.

33. Manutenção da totalidade de bolsas de estudos de pós-graduação e intensificação das políticas de permanência a estudantes cotistas, bem como dos demais programas de fomento educacional e de pesquisa, inclusive como forma de estímulo ao desenvolvimento de soluções à crise sanitária.

34. Concessão imediata de benefício proveniente do orçamento da União, com subrogação do Estado na dívida salarial, para assegurar o recebimento dos salários de empregados e empregadas de microempresas.

35. Necessária ampla divulgação de informações, em meio acessível, para pessoas com deficiência (sensorial e intelectual) e respeitados os seus plenos direitos.

36. Garantia do o acesso à internet de todas as pessoas com celulares pré-pagos ou planos populares, sem a redução de velocidade, corte ou cobrança de conexão enquanto durar o isolamento social necessário ao combate do Covid-19.

O programa para enfrentar a crise passa também por defender, para todas as indústrias encarregadas de produzir para a saúde e para o abastecimento da população, uma jornada de trabalho seis horas, na qual a “distância social” e todas as medidas de segurança e higiene sejam observadas, o que implica estabelecer um quarto turno de trabalho. A reconversão de grandes instalações industriais para a produção de respiradores e outros dispositivos médicos deve ser realizada sob o controle dos trabalhadores. O controle de preços e de abastecimento por comissões de trabalhadores e vizinhos deve ser posto na ordem do dia, haja vista a escassez e o encarecimento de gêneros de primeira necessidade nos supermercados, pondo na agenda política o controle operário da produção. O princípio essencial que deve orientar a resposta à crise é que as necessidades dos trabalhadores devem ter prioridade absoluta sobre os interesses do benefício privado. A classe trabalhadora deve exigir testes universais e acesso livre e igual aos cuidados de saúde; o fechamento de toda a produção não essencial, com garantia de salário para os afetados; condições seguras de trabalho em setores essenciais para o funcionamento da sociedade; e um programa de emergência para construir a infraestrutura de assistência médica e garantir que todos os trabalhadores da saúde tenham acesso ao equipamento médico e de segurança necessário. Só para começar.

*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP.

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