Por MICHEL GOULART DA SILVA*
A barbárie capitalista se aprofunda, mas a revolução não advém. O maior obstáculo não é a falta de condições objetivas, mas a crise de direção: a covardia e o reformismo das organizações que, ao se conciliarem com o regime, traem o potencial revolucionário da classe trabalhadora
1.
O processo de exploração capitalista suga a vida dos trabalhadores, não se importando se isso leva ao adoecimento ou mesmo à morte, sendo as crises cíclicas uma forma de diminuir os custos de produção. Marx e Engels destacavam que “cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas”.[i]
Para os capitalistas, o lucro precisa ser elevado o máximo possível, ampliando a exploração, por meio da reorganização do trabalho e da retirada de direitos até então garantidos pelo Estado.
O cenário visto nos últimos anos, com a onda de desemprego e de retirada de direitos, em que os trabalhadores se viram desolados ou mesmo desesperados diante da postura conciliadora das organizações de esquerda, lembra em grande medida aquele no qual Leon Trotsky escreveu o Programa de transição, principal documento de fundação da IV Internacional, em 1938. O contexto em que foi escrito esse documento estava marcado pelo ascenso do nazismo e pelas tensões que levaram, no ano, seguinte à Segunda Guerra Mundial.
Leon Trotsky, diante desse cenário, afirmou, logo nas primeiras páginas: “As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais a um crescimento da riqueza material. As crises conjunturais, nas condições da crise social de todo o sistema capitalista, oprimem as massas com privações e sofrimentos cada vez maiores”.[ii]
Leon Trotsky chamava a atenção para o caráter destrutivo assumido pelo capitalismo, em sua fase de crise, na qual se observa a estagnação no desenvolvimento das forças produtivas. Em texto anterior, havia afirmado: “O capitalismo levou os meios de produção a um nível tal que eles se encontram paralisados pela miséria das massas populares, arruinados por esse mesmo capitalismo. Por isso mesmo, todo o sistema entrou num período de decadência, de decomposição, de putrefação”.[iii]
O contexto em que Leon Trotsky escrevia estava marcado pela crise do Partido Comunista da União Soviética e da Internacional Comunista, provocada pela burocratização stalinista. Fazia parte de aa perspectiva de Leon Trotsky o combate aos métodos autoritários utilizados pelo stalinismo na condução do governo e do partido soviéticos, a derrota da revolução chinesa de 1927 e os erros políticos dos comunistas alemães que contribuíram para a chegada de Hitler ao poder em 1933.
Na década de 1930, além da ameaça dos fascismos em todo o mundo, entre os trabalhadores havia uma grande desilusão com a socialdemocracia e com os partidos comunistas. Diante desse cenário, afirmava Leon Trotsky: “A situação política mundial, em seu conjunto, caracteriza-se principalmente pela crise histórica da direção do proletariado”.[iv] O Programa de transição apresentava como princípio a articulação das reivindicações mais imediatas dos trabalhadores com aquelas que apontassem para a superação do sistema capitalista.
Leon Trotsky assim explicava: “A IV Internacional não rejeita as reivindicações do velho programa ‘mínimo’ na medida em que elas conservam algo de sua força vital. Defende incansavelmente os direitos democráticos dos operários e suas conquistas sociais, mas realiza este trabalho cotidiano no marco de uma perspectiva correta, real, ou seja, revolucionária. Na medida em que as reivindicações parciais – ‘mínimas’ – das massas se chocam com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isso ocorre a cada passo –, a IV Internacional propõe um sistema de reivindicações transitórias, cujo sentido é dirigir-se, cada vez mais aberta e resolutamente, contra as bases do regime burguês. O velho ‘programa mínimo’ é constantemente superado pelo programa de transição, cujo objetivo consiste numa mobilização sistemática das massas para a revolução proletária”.[v]
2.
Há cerca de cinco anos, a pandemia provocada pelo coronavírus exacerbou a crise econômica, que se arrasta sem que os capitalistas consigam concretizar qualquer solução, desde pelo menos 2008. Sua principal expressão são governos como o de Donald Trump e Jair Bolsonaro, marcados pela perseguição contra os trabalhadores e por ações conscientes do Estado que colocam em risco a vida da população mais pobre.
A crise abalou a economia de países que, poucos anos antes, tinham atacado os trabalhadores com a retirada de direitos trabalhistas, e privatizado, total ou parcialmente, serviços como saúde e educação. Enquanto o Estado salvava bancos e empresas, estivessem os postos de governo ocupados por partidos de direita ou de esquerda, os trabalhadores cada vez mais eram arrastados para a pobreza e para piores condições de trabalho. Esse cenário de crise, marcado pelo avanço da pobreza e da omissão do Estado no que se refere a algumas políticas públicas mínimas, se mostrou propício para que se espalhasse o o coronavírus, em 2020.
Em diversos países, as tímidas políticas estatais, em especial por meio de programas assistenciais, como o Bolsa Família no Brasil, que dividem os restos de migalhas deixados por banqueiros e burgueses, se mostraram incapazes de diminuir os impactos sobre o número crescente de trabalhadores pobres e de desempregados.
Essas políticas de reformas, ainda que alguns consigam melhorar de forma temporária a situação imediata dos trabalhadores, pouco depois são reduzidas ou mesmo retiradas. Leon Trotsky afirmava, se referindo ao seu contexto: “A crise atual, que ainda está longe do seu fim, já demonstrou que a política do New Deal nos EUA, assim como a política da Frente Popular na França, não oferece qualquer saída ao impasse econômico”.[vi]
Uma emergência internacional, como a causada pela pandemia do coronavírus, mostrou que o Estado enquanto amenizador da miséria chegou a seu limite. Depois de todos os ataques promovidos em nome do lucro da burguesia, a pandemia encontrou grandes aglomerações de pessoas sem saneamento básico, um sistema de saúde dominado por setores privados, universidades e centros de pesquisa sucateados, o crescimento constante de trabalhadores informais e um sistema de seguridade social enfraquecido pelo capital financeiro.
Naquele cenário, para que as ações do estado tivessem um impacto concreto na vida dos trabalhadores, seria preciso levar a cabo um programa que atacasse nos lucros da burguesia e apontasse para a superação do capitalismo.
Leon Trotsky afirmava, em texto publicado poucos anos antes do Programa de transição: “Se os meios de produção continuam em mãos de um pequeno número de capitalistas, não há salvação para a sociedade. Ela está condenada a seguir de crise em crise, de miséria em miséria, de mal a pior. De acordo com cada país, as consequências da decrepitude e decadência do capitalismo se expressam sob formas diversas e com ritmos desiguais. Porém, o fundo do processo é o mesmo em todos os lados. A burguesia conduziu a sociedade à bancarrota. Não é capaz de assegurar ao povo nem o pão nem a paz”.[vii]
3.
Qualquer saída para os trabalhadores passa pela apropriação dos lucros dos capitalistas, implementando um amplo sistema de proteção à saúde e ao emprego, além da garantia de salário e trabalho para todos. Uma ação como essa visa garantir a sobrevivência material de bilhões de trabalhadores em todo o mundo. No contexto da década de 1930, marcado pelo fascismo e pela iminência da guerra, Leon Trotsky apontava que “trata-se de preservar o proletariado da decadência, da desmoralização e da ruína. Trata-se da vida e da morte da única classe criadora e progressiva, e, por isso mesmo, do futuro da humanidade”.[viii]
O Estado, apesar desse cenário em que a barbárie se avizinha no horizonte, na pandemia, continuou a garantir que as empresas paralisadas ou com funcionamento parcial não quebrassem, colocando o lucro da burguesia em patamar de importância superior à saúde e à vida dos trabalhadores. As principais organizações construídas historicamente pelos trabalhadores, em especial os partidos e os sindicatos, se mostraram inertes diante do crescimento da miséria e da retirada de direitos.
Leon Trotsky alertava que os sindicatos “desenvolvem poderosas tendências à conciliação com o regime democrático-burguês”.[ix] Os trabalhadores sofrem com demissões, cortes de salário, precarização das condições de trabalho, entre outras coisas.
Percebe-se, ainda, a crise das perspectivas reformistas, quando se pensa na organização política dos trabalhadores. Trotsky dizia que, em seu período de decadência, “o capitalismo não pode dar aos trabalhadores novas reformas sociais”.[x] Uma crise como a atual evidencia as engrenagens da exploração do trabalho. Políticas como o Auxílio Emergencial no Brasil, mesmo que provisoriamente tenham ajudado uma parcela da população, estavam longe de garantir a continuidade da vida dos trabalhadores. Para a maior parte da esquerda, sempre esteve em jogo somente a manutenção da disputa institucional e a construção de alternativas eleitorais, mostrando que “a crise atual da civilização humana é a crise da direção proletária”.[xi]
4.
Contudo, apesar dessa situação a que foram colocados os trabalhadores, não houve qualquer transformação social. Leon Trotsky destacava haver um cenário em que “a premissa econômica da revolução proletária já alcançou, há muito tempo, o ponto mais elevado possível de ser atingido sob o capitalismo”.[xii] Contudo, não basta que as condições objetivas estejam dadas para que haja uma revolução. Segundo Leon Trotsky, “as oscilações conjunturais são inevitáveis e, mesmo com o capitalismo doente, vão perpetuar-se enquanto ele existir”.[xiii]
O revolucionário russo destacava que nenhuma crise, por si só, pode ser mortal ao capitalismo, na medida em que “[…] as oscilações da conjuntura criam somente uma situação na qual será mais fácil ou mais difícil para o proletariado derrotar o capitalismo. A passagem da sociedade burguesa para a sociedade socialista pressupõe a atividade de pessoas vivas, que fazem sua própria história. Não a fazem por acaso nem segundo seu gosto, mas sob a influência de causas objetivas determinadas. Entretanto, suas próprias ações – sua iniciativa, sua audácia, sua devoção ou, pelo contrário, sua estupidez e sua covardia – entram como elos necessários na cadeira do desenvolvimento histórico”.[xiv]
Portanto, ainda que as condições objetivas sejam determinantes nesse processo, não garantem a transformação da sociedade. Leon Trotsky afirmava que “o capitalismo não desaparecerá de cena por si mesmo. Somente a classe operária pode arrancar as forças produtivas das mãos dos exploradores que as estrangulam”.[xv]
O fator subjetivo é fundamental nesse processo, ou seja, é fundamental a construção de uma direção revolucionária que tenha central o avanço na consciência e na organização dos trabalhadores.
Um dos maiores empecilhos nesse processo tem sido a construção dessa direção revolucionário, desde o século XIX. O esforço de mobilização e organização dos trabalhadores acaba por esbarrar na crise de direção. Leon Trotsky apontava que “[…] o principal obstáculo no caminho da transformação da situação pré-revolucionária em situação revolucionária consiste no caráter oportunista da direção do proletariado, sua covardia pequeno burguesa diante da grande burguesia e a traidora conexão que mantém com esta, mesmo em agonia”.[xvi]
Qualquer saída para os trabalhadores deve apresentar um programa que articule as reivindicações mais básicas – saneamento, saúde, salário, educação, entre outras – com aquelas que se choquem diretamente com o capitalismo – controle operário de fábricas, expropriação de grandes fortunas, entre outas.
Essa articulação de um programa de transição deve estar ligada diretamente ao processo de auto-organização dos trabalhadores na luta contra o capitalismo e em defesa da revolução socialista.
*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).
Notas
[i] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 45.
[ii] TROTSKY, Leon. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 39.
[iii] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? São Paulo: Sundermann, 2020, p. 40.
[iv] TROTSKY, Leon. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 39.
[v] TROTSKY, Leon. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 43.
[vi] TROTSKY, Leon. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 40.
[vii] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? São Paulo: Sundermann, 2020, p. 35.
[viii] TROTSKY, Leon. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 44.
[ix] TROTSKY, Leon. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 45.
[x] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? São Paulo: Sundermann, 2020, p. 40.
[xi] TROTSKY, Leon. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 78.
[xii] TROTSKY, Leon. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 39.
[xiii] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? São Paulo: Sundermann, 2020, p. 79.
[xiv] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? São Paulo: Sundermann, 2020, p. 79.
[xv] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? São Paulo: Sundermann, 2020, p. 78.
[xvi] TROTSKY, Leon. O Programa de transição e outros documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2023, p. 40.
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